199 - ANO XVII - 18 a 24 de novembro de 2002
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Reforma agrária
 
Estudo mostra que reforma agrária reproduz 
o padrão social e cultural vigente

A terra da mulher (e do homem)

WANDA JORGE

A economista dominicana Zoraida Garcia Frias, que desde 1994 trabalha em Roma como especialista da divisão de gênero e desenvolvimento agrário e rural da FAO – Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação –, esteve, em outubro, no Instituto de Economia da Unicamp para acertar os últimos detalhes da publicação do documento Estudo de Gênero em Processos de Reforma Agrária no Brasil.

Trata-se de uma parceria do organismo internacional com o Instituto de Economia da Unicamp, e que conta com a participação da Universidade de Uberlândia e Universidade Federal do Ceará. Zoraida protagonizou um acordo de trabalho de dois anos, cujos resultados estão sendo finalizados agora. O estudo da FAO, coordenado pelo professor Antônio Márcio Buainain, do IE/Unicamp, envolveu seis Estados - São Paulo, Minas Gerais, Pernambuco, Bahia, Maranhão e Ceará -, 20 estudos de caso e uma ampla pesquisa junto aos assentados do Incra, aos beneficiários do Programa Cédula da Terra e aos agricultores familiares.

"Foi uma amostra significativa com 3 mil famílias", informa Buainain. Buscou-se estudar a agricultura familiar em toda sua complexidade e diversidade, e a amostra inclui desde os mais pobres, com pequeníssimas áreas insuficientes para produzir a sobrevivência da família, até agricultores familiares em melhores condições de vida e produção. Também incluiu os vários tipos de produção e culturas, cuja representatividade muda de região para região.

A intenção, ainda, foi investigar o papel da mulher no processo de reforma agrária, na luta pela terra, na gestão dos lotes, nas decisões tomadas pela comunidade e na condução da própria família. O resultado não surpreende. A reforma agrária reproduz o padrão social e cultural vigente, ainda marcado pelo domínio masculino. A grande maioria dos lotes é concedida aos homens: 87% nos assentamentos do INCRA; 93% nos assentamentos do Programa Cédula da Terra e 92% em propriedades familiares.

A economista Zoraida Garcia Frias: "A mulher é vista como não-produtora, o que limita o acesso à terra, ao crédito e dificulta a melhoria de suas condições de vida"
O objetivo da parceria, patrocinada em US$ 26 mil pela FAO, é realizar uma investigação de gênero nos assentamentos de reforma agrária em comparação a pequenas unidades agrícolas independentes. Compreender também a posição que homem

e mulher ocupam em relação à terra e as funções sociais e produtivas dos gêneros no interior dos assentamentos. A assessora técnica da FAO salienta que esta não é uma análise exclusiva do papel da mulher, mas dos diferentes papéis assumidos pelos vários membros da família na estratégia de reprodução e subsistência.


Jornal da Unicamp- Qual o objetivo da FAO em patrocinar esse tipo de estudo?

Zoraida Garcia- Relações de gênero implicam em relações de poder, o que se traduz em acesso a recursos financeiros, ao manejo da terra, ao controle do uso da terra e de equipamentos, de benefícios oficiais para a produção agrícola. O interesse de nosso programa é pesquisar agricultura dentro de economias não-industrializadas e sua lógica econômica; identificar os aspectos sociais e humanos que, em geral, ficam de fora das análises econômicas de estruturas agrícolas.

JU- Qual o papel da mulher na estrutura agrária?

Zoraida - A mulher é quase 50% da população agrícola, portanto é uma mão-de-obra potencial, é uma força de trabalho que deve ser considerada em qualquer planejamento econômico. É da constatação de sua existência produtiva que depende o êxito da maioria dos programas agrárias, pois ela deve ser considerada enquanto custo e receita, igualmente. No entanto, a mulher é vista como não-produtora nessa estrutura, o que limita o acesso à terra, ao crédito e dificulta a melhoria de suas condições de vida.

JU- Por que é importante qualificar por gênero a função produtiva no campo?

Zoraida- Do ponto de vista da economia, é fundamental que esses dados produtivos da mulher estejam contidos no planejamentos de tais recursos. Se a mulher é uma força social de transformação semelhante ao homem, ela necessita do mesmo acesso a recursos para exercer seu papel transformador. Se isto não ocorre, os projetos econômico estão perdendo 50 % de seus potencial. E note que, por enquanto, só falo da perspectiva econômica.

JU- Essa miopia quanto à função produtiva da mulher varia de acordo com a estrutura política e social de cada país?

Zoraida - O que se observa nesses levantamentos patrocinados pela FAO, em países de formação tão diferenciada seja na América Latina ou na África, é que são elementos culturais que definem os papéis econômicos do homem e da mulher. É uma construção social e histórica dos papéis e não-natural. Eles devem ser modificados para que realizem efetivo desenvolvimento econômico. Na sociedade patriarcal, os papéis domésticos e produtivos são separados. É necessário o conhecimento dos fatores sociais que impõem esses estereótipos para que se possa desconstruí-los e compreender os novos papéis, baseado no entendimento destas práticas culturais e de crenças e dos marcos institucionais como legislação que dá acesso à terra e ao crédito agrícola.

JU- A legislação brasileira não se modernizou com o aumento do trabalho feminino no campo?

Zoraida - A lei da terra e o Código Civil já modificaram um pouco a restrição à mulher, mas a legislação trabalha com a família tendo o homem no papel de chefe de família- o que impõe, já em princípio, uma situação de submissão da mulher. O homem é o chefe de família e o agricultor; a mulher é a cônjuge.

Nesses termos, ela não é identificada como agente econômico. Só aparece na esfera doméstica, não produtiva e sem valor econômico mensurável.

JU- Mas nos assentamentos estudados em várias regiões brasileiras, onde a mulher tem atuação política na briga pela terra, a situação não seria um pouco diferente?

Zoraida - Não. Nos assentamentos se reproduzem as mesmas relações de poder que em outras estruturas agrárias. A mulher não tem reconhecido seu papel produtivo como valor econômico. São necessárias medidas econômicas e legais para modificar essas relações. O acesso ao emprego urbano, porém, começa a interferir no sentido de uma auto-definição de seu papel produtivo na sociedade.

JU- Por que uma análise de gênero, que parece ter um cunho mais sociológico, é importante como indicativo de políticas econômicas?

Zoraida - A pesquisa de gênero tem uma lógica econômica, pois terá impacto nas mudanças econômicas e tecnológicas que se queira implantar no campo.

Se há dificuldades em quantificar o trabalho da mulher, pois é visto como ajuda, a conseqüência é que se subestima a necessidade de mão-de-obra e se calculam erradamente custos da produção, por exemplo.

JU- Qual o papel de um estudo com esse perfil num momento em que o Brasil caminha para um ajuste de seu modelo econômico?

Zoraida - Este é um momento fundamental no Brasil, quando se preparam ou se esperam mudanças produtivas com o novo governo, para que se busque uma compreensão aprofundada da lógica produtiva rural. Disso pode depender o acerto de políticas agrárias que venham a se implantar. Qualquer projeto de política agrícola precisa levar em conta como fator produtivo a identidade feminina. Se não, há um forte risco de se reproduzir o modelo do passado em políticas novas.

JU- Quais os objetivos da FAO ao patrocinar tais estudos?

Zoraida - A idéia é promover a igualdade de oportunidades: acesso à terra e ao crédito, controle e manejo dos recursos naturais de forma equânime entre homem e mulher. Para tanto, é preciso documentar essa situação nas mais variadas localidades. Análise de gênero é um elemento intrínseco à definição de um modelo de desenvolvimento. Não é um fator externo. O interessante, nas conclusões já obtidas com esses estudos, é que em situações muito diferentes em termos de políticas de Estado ou mesmo históricas e culturais, acabam reproduzindo-se , no campo, práticas semelhantes na estrutura de poder.

JU- E que conclusão se pode tirar dessa experiência?

Zoraida - O padrão cultural não foi tocado, não foi desconstruída esta relação histórica e social dos papéis do homem e da mulher na sociedade rural, mesmo em países que viveram revoluções.