Estudo mostra que reforma agrária reproduz
o padrão social e cultural vigente
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A
economista dominicana Zoraida Garcia Frias, que desde 1994 trabalha
em Roma como especialista da divisão de gênero
e desenvolvimento agrário e rural da FAO Organização
das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação
, esteve, em outubro, no Instituto de Economia da Unicamp
para acertar os últimos detalhes da publicação
do documento Estudo de Gênero em Processos de Reforma
Agrária no Brasil.
Trata-se de uma parceria do organismo internacional com o Instituto de Economia da Unicamp, e que conta com a participação da Universidade de Uberlândia e Universidade Federal do Ceará. Zoraida protagonizou um acordo de trabalho de dois anos, cujos resultados estão sendo finalizados agora. O estudo da FAO, coordenado pelo professor Antônio Márcio Buainain, do IE/Unicamp, envolveu seis Estados - São Paulo, Minas Gerais, Pernambuco, Bahia, Maranhão e Ceará -, 20 estudos de caso e uma ampla pesquisa junto aos assentados do Incra, aos beneficiários do Programa Cédula da Terra e aos agricultores familiares.
"Foi uma amostra significativa com 3 mil famílias", informa Buainain. Buscou-se estudar a agricultura familiar em toda sua complexidade e diversidade, e a amostra inclui desde os mais pobres, com pequeníssimas áreas insuficientes para produzir a sobrevivência da família, até agricultores familiares em melhores condições de vida e produção. Também incluiu os vários tipos de produção e culturas, cuja representatividade muda de região para região.
A intenção, ainda, foi investigar o papel da mulher no processo de reforma agrária, na luta pela terra, na gestão dos lotes, nas decisões tomadas pela comunidade e na condução da própria família. O resultado não surpreende. A reforma agrária reproduz o padrão social e cultural vigente, ainda marcado pelo domínio masculino. A grande maioria dos lotes é concedida aos homens: 87% nos assentamentos do INCRA; 93% nos assentamentos do Programa Cédula da Terra e 92% em propriedades familiares.
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A economista Zoraida Garcia Frias: "A mulher é vista como não-produtora, o que limita o acesso à terra, ao crédito e dificulta a melhoria de suas condições de vida" |
O
objetivo da parceria, patrocinada em US$ 26 mil pela FAO, é
realizar uma investigação de gênero nos
assentamentos de reforma agrária em comparação
a pequenas unidades agrícolas independentes. Compreender
também a posição que homem
e mulher ocupam em relação à terra e as funções sociais e produtivas dos gêneros no interior dos assentamentos. A assessora técnica da FAO salienta que esta não é uma análise exclusiva do papel da mulher, mas dos diferentes papéis assumidos pelos vários membros da família na estratégia de reprodução e subsistência.
Jornal da Unicamp- Qual o objetivo da FAO em patrocinar esse tipo de estudo?
Zoraida Garcia- Relações de gênero implicam em relações de poder, o que se traduz em acesso a recursos financeiros, ao manejo da terra, ao controle do uso da terra e de equipamentos, de benefícios oficiais para a produção agrícola. O interesse de nosso programa é pesquisar agricultura dentro de economias não-industrializadas e sua lógica econômica; identificar os aspectos sociais e humanos que, em geral, ficam de fora das análises econômicas de estruturas agrícolas.
JU- Qual o papel da mulher na estrutura agrária?
Zoraida - A mulher é quase 50% da população agrícola, portanto é uma mão-de-obra potencial, é uma força de trabalho que deve ser considerada em qualquer planejamento econômico. É da constatação de sua existência produtiva que depende o êxito da maioria dos programas agrárias, pois ela deve ser considerada enquanto custo e receita, igualmente. No entanto, a mulher é vista como não-produtora nessa estrutura, o que limita o acesso à terra, ao crédito e dificulta a melhoria de suas condições de vida.
JU- Por que é importante qualificar por gênero a função produtiva no campo?
Zoraida- Do ponto de vista da economia, é fundamental que esses dados produtivos da mulher estejam contidos no planejamentos de tais recursos. Se a mulher é uma força social de transformação semelhante ao homem, ela necessita do mesmo acesso a recursos para exercer seu papel transformador. Se isto não ocorre, os projetos econômico estão perdendo 50 % de seus potencial. E note que, por enquanto, só falo da perspectiva econômica.
JU- Essa miopia quanto à função produtiva da mulher varia de acordo com a estrutura política e social de cada país?
Zoraida - O que se observa nesses levantamentos patrocinados pela FAO, em países de formação tão diferenciada seja na América Latina ou na África, é que são elementos culturais que definem os papéis econômicos do homem e da mulher. É uma construção social e histórica dos papéis e não-natural. Eles devem ser modificados para que realizem efetivo desenvolvimento econômico. Na sociedade patriarcal, os papéis domésticos e produtivos são separados. É necessário o conhecimento dos fatores sociais que impõem esses estereótipos para que se possa desconstruí-los e compreender os novos papéis, baseado no entendimento destas práticas culturais e de crenças e dos marcos institucionais como legislação que dá acesso à terra e ao crédito agrícola.
JU- A legislação brasileira não se modernizou com o aumento do trabalho feminino no campo?
Zoraida - A lei da terra e o Código Civil já modificaram um pouco a restrição à mulher, mas a legislação trabalha com a família tendo o homem no papel de chefe de família- o que impõe, já em princípio, uma situação de submissão da mulher. O homem é o chefe de família e o agricultor; a mulher é a cônjuge.
Nesses termos, ela não é identificada como agente econômico. Só aparece na esfera doméstica, não produtiva e sem valor econômico mensurável.
JU- Mas nos assentamentos estudados em várias regiões brasileiras, onde a mulher tem atuação política na briga pela terra, a situação não seria um pouco diferente?
Zoraida - Não. Nos assentamentos se reproduzem as mesmas relações de poder que em outras estruturas agrárias. A mulher não tem reconhecido seu papel produtivo como valor econômico. São necessárias medidas econômicas e legais para modificar essas relações. O acesso ao emprego urbano, porém, começa a interferir no sentido de uma auto-definição de seu papel produtivo na sociedade.
JU- Por que uma análise de gênero, que parece ter um cunho mais sociológico, é importante como indicativo de políticas econômicas?
Zoraida - A pesquisa de gênero tem uma lógica econômica, pois terá impacto nas mudanças econômicas e tecnológicas que se queira implantar no campo.
Se há dificuldades em quantificar o trabalho da mulher, pois é visto como ajuda, a conseqüência é que se subestima a necessidade de mão-de-obra e se calculam erradamente custos da produção, por exemplo.
JU- Qual o papel de um estudo com esse perfil num momento em que o Brasil caminha para um ajuste de seu modelo econômico?
Zoraida - Este é um momento fundamental no Brasil, quando se preparam ou se esperam mudanças produtivas com o novo governo, para que se busque uma compreensão aprofundada da lógica produtiva rural. Disso pode depender o acerto de políticas agrárias que venham a se implantar. Qualquer projeto de política agrícola precisa levar em conta como fator produtivo a identidade feminina. Se não, há um forte risco de se reproduzir o modelo do passado em políticas novas.
JU- Quais os objetivos da FAO ao patrocinar tais estudos?
Zoraida - A idéia é promover a igualdade de oportunidades: acesso à terra e ao crédito, controle e manejo dos recursos naturais de forma equânime entre homem e mulher. Para tanto, é preciso documentar essa situação nas mais variadas localidades. Análise de gênero é um elemento intrínseco à definição de um modelo de desenvolvimento. Não é um fator externo. O interessante, nas conclusões já obtidas com esses estudos, é que em situações muito diferentes em termos de políticas de Estado ou mesmo históricas e culturais, acabam reproduzindo-se , no campo, práticas semelhantes na estrutura de poder.
JU- E que conclusão se pode tirar dessa experiência?
Zoraida - O padrão cultural não foi tocado, não foi desconstruída esta relação histórica e social dos papéis do homem e da mulher na sociedade rural, mesmo em países que viveram revoluções.
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