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Unicamp firma-se como gestora de políticas públicas
Universidade consolida perfil de fornecedora de quadros para todas as instâncias do poder público
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No eixo das decisões
Trata-se de uma onda crescente, iniciada há mais de três décadas: a cada mudança de governo - seja municipal, estadual ou federal - docentes e pesquisadores da Unicamp ocupam seus assentos na condução do que se convencionou chamar de políticas públicas. O retrato acabado do entra-e-sai pode ser visto hoje no âmbito federal. Descontadas as turbulências de praxe, integrantes das equipes de transição têm mantido encontros civilizados com interlocutores de matizes ideológicas opostos, mas originários da Unicamp. As razões passam longe da sensaboria tecnocrática, ávida por indicações sazonais típicas do rescaldo das urnas e do seu respectivo loteamento de cargos. Residem num pré-requisito transformado em grife nos gabinetes: a Unicamp é, efetivamente, sinônimo de excelência.
Não é tarefa fácil localizar no calendário o início dessa tendência, mesmo para uma universidade com pouco mais de 35 anos de vida. As pistas, apelando ao rigor histórico, levam a Zeferino Vaz, fundador, idealizador e reitor da Unicamp entre 1966 e 1978. "Foi ele quem lançou as bases dessa excelência, não há nenhuma dúvida. Zeferino arrebanhou pessoas de grande preparo intelectual que amadureceram dentro da Universidade", testemunha o professor e médico José Aristodemo Pinotti, detentor de rodagem considerável nos círculos do poder.
Para o reitor Carlos Henrique de Brito Cruz, a presença constante de docentes da Universidade em instâncias de definição de grandes políticas públicas é uma prova do amadurecimento da instituição e da qualidade de seus cérebros. "São poucas as universidades que apresentam essa capacidade e que a partir de uma determinada etapa de sua existência passaram a fornecer quadros de primeira linha a todos os patamares do poder público, inclusive o federal", pondera Brito Cruz, que antes de tornar-se reitor da Unicamp em abril de 2002 foi por seis anos presidente da Fapesp em paralelo a suas atividades acadêmicas no Instituto de Física. A presidência da Fapesp é hoje ocupada por outro nome da Unicamp, o lingüista e ex-reitor Carlos Vogt.
No século 19 esse papel era cumprido sobretudo pelas faculdades de direito - do Rio de Janeiro, São Paulo, Recife etc - e no século passado, a partir de 1934, muito freqüentemente pela Universidade de São Paulo. Fundada em fins de 1966, já na década de 1970 a Unicamp passou a fornecer os primeiros quadros para o primeiro escalão administrativo do Estado. Em meados da década forneceu seu primeiro secretário de Estado: o então vice-reitor Paulo Gomes Romeo, que ocupou a pasta da Educação. "Já nessa época a Unicamp mostrava que tinha excelente massa crítica a oferecer, com idéias novas e uma visão social que combinava o conhecimento acadêmico com capacidade de gestão", completa Brito Cruz.
Quadro dirigente - Pinotti, por exemplo, antes de ser alçado à Secretaria da Educação do Estado, foi por duas vezes diretor da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp e em seguida reitor da Universidade (1982-1986). Posteriormente foi secretário da Saúde e deputado federal. Na eleição de outubro de 2002, após um hiato de quatro anos, foi reconduzido à Câmara dos Deputados levando na bagagem exatos 209.105 votos, número surpreendente para quem mantinha distância já havia um bom tempo da vida pública, de onde não pretende sair, é bom que se diga. Essa certeza é pavimentada numa trajetória marcada pelo gerenciamento de crises tidas como insolúveis, pelo empreendedorismo - termo usado à larga pela nova geração de gestores públicos - e pela convivência com representantes da elite política, qualificados por Pinotti de "quadro dirigente" do País.
Não é eufemismo. Puxando pela memória em sua clínica na Avenida Brasil, no coração dos Jardins, em São Paulo, Pinotti toma fôlego e, olhando para a ampla janela que o separa do barulho infernal do trânsito na saída para o feriado de 15 de novembro, narra um episódio emblemático. Ainda na década de 1970, durante sua segunda gestão à frente da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp (1976-1980), foi despachar na sala do então reitor Zeferino Vaz. Lá chegando, deu de cara com Dílson Funaro, secretário da Fazenda do governo Abreu Sodré, que estava acompanhado dos professores João Manuel Cardoso de Mello e Luiz Gonzaga Belluzo, ambos do antigo Departamento de Economia e Planejamento Econômico (Depe), embrião do Instituto de Economia (IE), e assessores de Funaro na época. Estavam ali os mentores do Plano Cruzado, implantado no início do governo Sarney, em 1986, pelo próprio Funaro, coincidindo com o final da gestão de Pinotti à frente da Unicamp.
E foi justamente durante o seu mandato que se intensificou a ida de docentes da Unicamp para os gabinetes. Antes, porém, Pinotti teve de colocar à prova toda a sua habilidade - mais tarde reconhecida - de administrador de crises. Assumiu em abril de 1982 uma universidade convulsionada - segundo ele, "na iminência de ser incorporada pela USP", cujo estatuto vigorava no campus de Barão Geraldo. Oito diretores de unidade foram exonerados e 14 diretores da Associação de Servidores (Assuc) demitidos por Paulo Maluf, governador na época, que finalmente decretou a intervenção na Universidade em outubro de 1981.
Pinotti adotou uma estratégia que funcionou como manual de sobrevivência: "Fiquei à margem das inúmeras brigas internas. Ignorei-as por saber que mais cedo ou tarde elas desapareceriam". Em paralelo, envolveu docentes, funcionários e alunos na costura necessária para a elaboração do estatuto próprio da Universidade, num verdadeiro processo de constituinte. "Ao final da minha gestão, a Unicamp estava pacificada, institucionalizada e construída - incluindo o Hospital das Clínicas e o Centro de Atenção Integral à Saúde da Mulher (Caism)", lembra. Mas, de todas as realizações, a que mais o envaidece é a criação dos centros e núcleos. Cita de enfiada nomes que saíram dessas unidades para ocupar cargos públicos de relevância. No entender de Pinotti, trata-se de um diferencial que coloca a Unicamp no atual patamar de qualidade.
Papel maior - Para o ex-reitor, os centros e núcleos são instâncias interdisciplinares que rompem em certa medida com o engessamento departamental e abrigam pesquisadores dedicados às soluções para os problemas conjunturais do país. "A Unicamp tem um papel maior na nossa história recente porque ela é uma universidade mais moderna, livre e aberta", diz Pinotti, atribuindo os méritos da arquitetura dos centros e núcleos ao professor Paulo Renato Costa Souza, seu assessor à época. "Foi ele o artífice", relata.
O que pode parecer um rasgo de benevolência na verdade traduz o grau de aproximação entre o ex-reitor e o atual ministro da Educação. Ambos protagonizaram uma troca de postos inédita. Por indicação do próprio Pinotti, Paulo Renato deixou temporariamente a Unicamp em 1984 para assumir a Secretaria Estadual da Educação no governo de Franco Montoro. Deixou o cargo em 1986 para assumir a Reitoria da Unicamp, enquanto Pinotti o substituiu na pasta, onde desenvolveu um dos primeiros projetos de ampla aplicabilidade integralmente desenvolvido por pesquisadores da Unicamp.
"O programa, o maior do gênero feito até hoje na América Latina, foi o que mais me deu satisfação na vida", revela, referindo-se ao Profic - Programa de Formação Integral da Criança. De acordo com o ex-reitor, o projeto, elaborado sob a coordenação do matemático Ubiratan D'Ambrósio, que na sua gestão fora coordenador geral dos Institutos - possibilitou a matrícula em tempo integral de 513 mil crianças de baixa renda com dificuldade de aprendizado. "Em 86% das escolas, os estudantes que participaram do programa tiveram rendimento escolar melhor do que aqueles que ficaram à margem", contabiliza.
O ex-reitor tem suas convicções, duas delas construídas ao longo de sua trajetória. A primeira, tida por ele como "questão nuclear", é a necessidade de a academia - formadora de cérebros por excelência - interferir pela qualidade que tem de antever e solucionar os problemas, o que não significa necessariamente participar da política ou de administrações. Mas às vezes é preciso interferir também como agente político, diz ele. "Se a universidade - que tem qualidade - não interferir, o processo político vai ficar na mão de quem?", questiona.
A outra convicção, de natureza pessoal, é a crença no poder multiplicador das ações políticas. Pinotti recorre mais uma vez a um projeto desenvolvido na Unicamp para amparar sua tese. Idealizador e fundador do Caism, Pinotti espalhou por todo o Estado de São Paulo, quando era secretário da Saúde, o mesmo programa pioneiro de controle do câncer uterino implantado na unidade da Unicamp. "Milhares de vidas foram salvas", diz. Ao colocar de um lado da balança o ônus da práxis e, no outro, as realizações, o professor resume o que pensa. "A razão moral kantiana é muito presente na academia. É um contraste doloroso com a atividade política". Pinotti garante que a dor é passageira. E que vale a pena experimentá-la.
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