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Tesouros de outros séculos

Uma das coleções especiais da Biblioteca Central
tem mais de 3 mil obras raras

LUIZ SUGIMOTO

"Em meio às estantes imensas e escuras da escola, a frágil menininha, já assustada com os muitos perigos que do livro pareciam derramar-se pela sala, acaba sorvida pelas páginas escancaradas, como que tragada por um monstro terrificante. Eis que, de uma árvore fronteira, mais de mil besourinhos azuis de patinhas de ouro surpreendem as garras e bocarra desse gênio do mal, invadem a biblioteca e salvam a menininha indefesa".

Mais ou menos com essas palavras, a professora Quinita Ribeiro Sampaio recordou a trama imaginada por uma aluna de 12 anos, numa redação para a qual deu nota dez, há muito tempo. Ao publicar a lembrança da professora em um diário de Campinas, o cronista Moacyr Castro quis saber da então pequena autora: "E se alguém souber da Sandra Lane, avise".

Sandra Lane Bruno, que completou 50 anos de idade em 9 de novembro, atualmente é responsável pela Área de Coleções Especiais da Biblioteca Central (BC) da Unicamp. "Hoje em dia sou absorvida pelos livros antigos e os besourinhos continuam me puxando de volta, mas para a realidade de que preciso mantê-los longe. Tornaram-se meus inimigos, eles atacam as obras", brinca a bibliotecária, que afinal fez das bibliotecas seu cenário de vida. Solicitada a falar sobre a Coleção de Obras Raras -- realmente raras -- da BC, a primeira preocupação de Sandra é agradecer à Fundação Vitae por uma estante deslizante para melhor aproveitamento da área climatizada - os volumes, que vão dos séculos 15 a 20, ficam sob controle de temperatura e umidade por 24 horas, livres de insetos.

Sandra Lane e Marta do Val: vida entre estantes, manuseando obras com luvasA coleção é formada por mais de 3.000 obras, dificilmente encontradas em outras bibliotecas e arquivos. Do século 15, cantos gregorianos, num manuscrito ilustrado com iluminuras e doado por Pietro Maria Bardi. A temática brasiliana, dos séculos 16 a 19, é particularmente atraente porque traz narrativas de viajantes sobre o Brasil desses períodos: economia, política, costumes, religião, poesia, história natural, as missões de jesuítas, expedições científicas, guerra com os holandeses, conquistas e descobertas, indígenas, pirataria, literatura, monarquia, rebeliões, abolição da escravatura, guerra do Paraguai, gramática, almanaques, periódicos...

"Os livros desta coleção são analisados como artefatos de museu", observa Sandra. Eles são selecionados, avaliados de acordo com papel, data, conteúdo, e devidamente catalogados, pesquisando-se ainda nomes famosos citados em cada obra. A BC está preparando um inventário para publicação, possivelmente em parceria com outras bibliotecas da Unicamp que possuem obras raras, como a do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), que já enviou uma listagem.

Luvas - A bibliotecária Marta Regina da Silveira Ribeiro do Val, que passou uma temporada na Universidade de Illinois para se especializar em obras raras, é quem vem cuidando especificamente delas na Biblioteca Central, depois que Sandra Lane assumiu a direção do setor. Com máscara e luvas, Marta manuseia cuidadosamente folhas feitas com pele de cordeiro -- que na época era o "material belo" utilizado em encadernações especiais --, mostrando algumas relíquias (veja quadros).

O volume contendo iluminuras e melodias (1585) é um diário de viagem de Jean de Léry, que acompanhou o comandante Villegagnon numa incursão ao Rio de Janeiro, de onde acabaram expulsos. Maurício de Nassau trouxe com ele dois pintores, um deles Albert Eckhout, que pintava as paisagens apreciadas pelo invasor holandês. Uma gravura com equipamentos náuticos e frutas nativas ilustra o livro Notícias do Brasil, do padre Simão de Vasconcellos, cuja impressão só foi autorizada pelas autoridades da época depois de o autor suprimir três páginas nas quais localizava e descrevia "o paraíso terrestre" no Brasil.

A Coleção de Obras Raras está à disposição dos pesquisadores, mas a consulta precisa ser feita no local. Sandra Lane espera disponibilizar os conteúdos para um público maior, mas precisaria de uma mesa microfilmadora (planetária), além da leitora digitalizadora de microfilmes já adquirida, via Fapesp, graças a um projeto da coordenadoria da BC. "Com a filmadora, a pessoa poderá levar no bolso, em um CD, todas essas histórias", promete. Mas, por enquanto, só virando página por página com luvas de pelica.

Censurado

Natural do Porto, Simão de Vasconcellos foi padre da "Companhia de Jesus do Estado do Brasil". A obra é considerada pelos bibliófilos como uma das mais belas produções dos prelos portugueses do século 17, fonte importante para estudo e conhecimento da história do Brasil. O frontispício foi gravado por A. Clauwet da Antuerpia e decorado com desenhos tirados da flora e fauna brasileira (acima). Vários jesuítas são vistos dentro da embarcação, um deles sustentando o estandarte da Companhia de Jesus com a inicial I.H.S. Este exemplar apresenta falhas na seqüência numérica. Os setes parágrafos sobre a questão da localização do "paraíso terrestre" , no Brasil, foram suprimidos pelo "padre geral" e toda a explanação do paraíso foi omitida.

Vasconcellos, Simão de. Chronica da Companhia de Jesus do Estado do Brasil: e do que obrarão seus filhos nesta parte do Novo Mundo... algumas notícias antecedentes curiosas, e necessárias das cousas daquelle Estado. [Lisboa: H. Valente de Oliveira, 1663].

1ª Melodia

Léry. Jean de. Histoire d´un voyage faict en terre du Bresil, autrement dite Amerique: contenant le comportement de Villegagnon... les moeurs & façons de vivre estranges des sauvages bresiliens...

animaux, arbres, herbes... 3.ed., avec les figures, reveve, corrigee & bien augm. de discours notables. Genova: A. Chuppin, 1585. Col. PD.

Jean de Léry, pastor protestante francês (Margelle, 1534 – Isle, 1611), faz uma narrativa de viagem ao Rio de Janeiro, com descrição da fauna e flora, dos índios, etc. O livro contém iluminuras e traz impressa a primeira melodia que se tem notícia, sendo considerado o primeiro documento musical brasileiro.

Corsário

René du Guay-Trouin, corsário francês e tenente general das Forças Navais (Saint-Malo, 1673 - Paris, 1736), comandou um ataque ao Rio de Janeiro em 1711. Na obra, o autor (retratado ao lado), que nunca se confessa um pirata, descreve suas campanhas. Em meio às edições "Pirata", somente as publicadas após 1740 são reconhecidamente de sua autoria.

Du Guay-Trouin, René. Memoires de M. du Gué-Trouin... A amsterdam: chez pierre Mortier, 1730.

Mais bela

Gaspar Barleu conta os feitos praticados sob o governo de João Maurício, conde de Nassau (no retrato ao lado), durante oito anos no Brasil e em outras partes. A obra, a mais bela de todo o período colonial, publicada em Amsterdã (1647), foi traduzida para o alemão (1659), o holandês (1923) e o português (1940). Fonte importante para estudo do período holandês no Brasil (1637 a 1644). O autor, poeta e humanista holandês do século 17 escreveu em latim essa obra clássica, enaltecendo o governo de Maurício de Nassau em Pernambuco. Contém gravuras do famoso pintor Franz Post, intérprete do Brasil.

Barleu, Gaspar. Rerum per octenium in Brasilia. Amsterdam: Ex typographeio Ionnis Baev, 1647.