Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 235 - de 27 outubro a 2 novembro de 2003
Leia nessa edição
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Diário de Lisboa
Trangênicos: o eixo da guerra
HES: entre os melhores
A Cena viva de Renato Cohen
Pesquisa: droga vasodilatadora
Avaliação: José Dias Sobrinho
Deficientes: atividades físicas
Diplomacia Econômica
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Plantas: novos antibióticos
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Da greve dos cadeados
à imigração brasileira

EDGAR DEDECCA

Músico romeno nas escadarias do Elevador de Santa Justa, na Rua do Ouro, situada na região lisboeta da Baixa Pombalina

A semana começou agitada nas universidades portuguesas. Os estudantes deram início a uma greve nacional contra o aumento das propinas (pagamento das taxas anuais da universidade pública), que teve um acréscimo nominal de 56,8%, em uma inflação anual de 2%. As taxas cobradas pelas universidades públicas variam de curso para curso e, tomando-se por base a menor propina, 463 euros, a arrecadação total estará em torno de 158,6 milhões de euros. Entretanto, há de se levar em consideração que a maioria dos cursos já arrecada propinas superiores ao piso mínimo. De acordo com estas estimativas, estarão ingressando nos cursos superiores das universidades e dos institutos públicos portugueses em 2003 algo em torno de 352 mil estudantes, número muito significativo, se levarmos em conta que há dez anos entravam para o ensino público superior apenas 40 mil. Além do aumento das propinas, a ministra da Educação já informou que os gastos por estudante terão um acréscimo de apenas 0,8%, que, subtraídos da taxa de inflação, representará uma diminuição de 1,2% nos gastos por estudante.

Para termos uma noção mais clara deste problema, precisamos considerar que as propinas não fazem parte do orçamento do Ministério da Educação para o ensino superior, mas são parte substancial dos fundos de gestão das universidades públicas. A crítica dos estudantes pode ser avaliada de modo muito claro. Até 2002, as propinas das universidades públicas estavam indexadas ao salário mínimo em Portugal (356 euros), e agora, com a desindexação, o aumento pretendido pressiona, principalmente, a vida dos estudantes mais carentes, na medida em que também não cresce de modo proporcional o número de bolsas de estudo oferecidas pelo Ministério da Educação.

Enfim, estamos tendo uma semana bastante agitada, com mobilização estudantil em todos os prédios da Universidade de Lisboa. De acordo com o jornal Última Hora, “cerca de 90% dos estudantes da capital aderiram ao protesto nacional, segundo dados de 14 associações estudantis da capital. Os estudantes exigem a revogação da lei do financiamento e contestam a redução do peso dos alunos nos órgãos das universidades, assim como o regime de prescrições. Em pelo menos três escolas – Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa, Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação de Lisboa e Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas – os portões foram fechados a cadeado.”

Não vivia esta experiência havia muito tempo! Entretanto, foi muito instrutiva. Aproveitando-se da arquitetura dos prédios (na maioria deles há apenas algumas portas de acesso), os estudantes passaram cadeados nas portas de todos eles e ninguém conseguiu entrar para as aulas no dia de ontem (21 de outubro). Todos nós ficamos, literalmente, para fora dos prédios, incluindo professores e estudantes. Com a presença de dezenas de pessoas em volta dos prédios, os estudantes improvisaram salas de estudo ao ar livre, aproveitando o belíssimo dia de outono em Lisboa.

A novidade da greve ficou, sem dúvida, por conta dos cadeados. O movimento estudantil mostrou capacidade de articulação, com adesão quase completa de todas as universidades públicas do país, e durou apenas um dia. A criatividade e a ação direta marcaram as manifestações pacíficas de 21 de outubro. Com certeza, elas irão pesar nas negociações futuras com as reitorias e o Ministério da Educação. Há tempos não presenciava um movimento estudantil de adesão nacional, sem os desgastes das greves por tempo indeterminado.

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A agitação estudantil me manteve distante das pesquisas em torno da tese de mestrado inédita de Sérgio Buarque de Holanda. De certo modo, isto me fez tomar alguma distância do texto e apreciá-lo com outros olhos. Apesar de se tratar de um texto inédito, às vezes me vejo indo além do conteúdo da tese. Para mim, isto tem sido muito estimulante e acho que, mesmo estando em Lisboa por outros motivos, novos horizontes foram abertos.

Instigou-me nestas duas semanas perceber a cidade de Lisboa como um anfiteatro, com as suas sete colinas. Metaforicamente, seria ela um anfiteatro de onde podemos apreender todo o passado, que construiu Portugal e também nossa identidade. A idéia de um anfiteatro da história permitiu-me a liberdade de criação de um outro conceito para a compreensão da história. O conceito de encenação do imaginário. Terei algum tempo para desenvolvê-lo, mas posso adiantar que ele tem afinidades com o contextualismo de Quentin Skinner e também com o jogo de escalas das análises da micro história italiana. O conceito de encenação do imaginário tornou-se apropriado para minha percepção da teatralização e da ritualização sociais necessárias para a construção dos mitos e dos enredos literários que comandaram os descobrimentos portugueses.

Este conceito não fui encontrar na tese de Sérgio Buarque; quando muito, a tese indicia a elaboração do conceito. Tem sido a minha vivência na cidade de Lisboa que, de muitas maneiras, me coloca em um anfiteatro que permite assistir ao espetáculo de encenação do imaginário dos achamentos portugueses. Esta encenação tem também afinidades com os estudos antropológicos e, neste sentido, os estudos da sociedade portuguesa na época dos descobrimentos podem abrir caminho para a percepção da unidade semântica entre as ritualizações sociais e os mitos de um determinado período.

Tenho a sensação de que aos poucos vou me distanciando de Sérgio Buarque e adquirindo outros elementos para a pesquisa histórica, aproximando-me mais dos textos de alguns autores humanistas portugueses, como Damião de Góis e João de Barros, este último, nas palavras do crítico literário Eduardo Lourenço, um precursor do universo imaginário de Cervantes.

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Na semana passada, comentei a presença marcante da imigração brasileira em Portugal. Volto de novo ao tema. Lembrei-me, na verdade, de minha época de graduação na Universidade de São Paulo, nos anos do pós-68, quando o sonho de muitos estudantes era o de emigrar para Paris, trabalhar lavando pratos em restaurantes e fazer pós-graduação na Sorbonne. Quem sabe, até, virar um intelectual de renome.

Com as portas sendo fechadas no Brasil do AI-5, muitos estudantes seguiram este caminho, nem sempre pela via direta da emigração, mas muitos foram levados à Europa na condição de exilados políticos. Caminhos tortuosos, que se repetem com outras sutilezas nos dias de hoje. Desde que cheguei em Lisboa, tenho me surpreendido com o número de jovens brasileiros que emigraram para Portugal com a expectativa de conquistar a Europa a partir deste país.

Não me refiro aos jovens trabalhadores que serão contratados na construção civil ou como empregados domésticos. Refiro-me aos jovens de classe média, com curso secundário e às vezes até com o curso superior completo, que chegam em Portugal com a expectativa de alçar vôo em direção aos países mais ricos da Europa. Para estes jovens, os empregos em restaurantes são os mais atrativos. Ao invés da Sorbonne, freqüentam escolas noturnas de línguas que têm nomes pomposos como Cambridge, Harvard etc. Seus desejos são os de adquirir conhecimentos das línguas inglesa, alemã ou francesa e ficar a residir em Portugal até conseguir o passaporte europeu. Depois, com o passaporte da comunidade européia nas mãos, emigrar para mais países ricos, como França, Inglaterra, Alemanha. Pelo visto, o sonho não acabou…

Mas como ocorreu em toda a década de 1960 e 1970, poucos jovens conseguiram, de fato, realizar o sonho de voar tão alto. Na maioria dos casos, o retorno ao Brasil ou a aceitação de uma vida mais simples e contudo mais segura em algum país europeu foi o encontro mais comum com a dura realidade. Voltaremos a este tema nas próximas semanas, porque são importantes as pesquisas sociológicas do ISCTE sobre a imigração em Portugal. A atualização das estatísticas, propiciada pelo novo regime legal das autorizações de permanência de 2001, veio dar maior visibilidade às mudanças que estão acontecendo na imigração, destacando-se, principalmente, o mais recente fluxo imigratório do Leste Europeu e a enorme aceleração da imigração oriunda do Brasil. Esta é a avaliação preliminar de um estudo de Rui Pena Pires, publicado pela Revista Sociologia: Problemas e Práticas, do ISCTE, em 2002.

 

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Historiador e professor do IFCH, Edgar Salvadori de Decca assumiu a cátedra Brasil-Portugal em Ciências Sociais no Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE), em Lisboa, em convênio firmado entre essa instituição e a Unicamp. A convite do Jornal da Unicamp, De Decca aceitou o desafio de escrever semanalmente um relato de sua permanência na capital portuguesa.

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