Da greve dos cadeados
à imigração brasileira
EDGAR
DEDECCA
|
Músico romeno nas escadarias do Elevador
de Santa Justa, na Rua do Ouro, situada na região
lisboeta da Baixa Pombalina |
A semana começou agitada
nas universidades portuguesas. Os estudantes deram
início a uma greve nacional contra o aumento
das propinas (pagamento das taxas anuais da universidade
pública), que teve um acréscimo nominal
de 56,8%, em uma inflação anual de 2%.
As taxas cobradas pelas universidades públicas
variam de curso para curso e, tomando-se por base
a menor propina, 463 euros, a arrecadação
total estará em torno de 158,6 milhões
de euros. Entretanto, há de se levar em consideração
que a maioria dos cursos já arrecada propinas
superiores ao piso mínimo. De acordo com estas
estimativas, estarão ingressando nos cursos
superiores das universidades e dos institutos públicos
portugueses em 2003 algo em torno de 352 mil estudantes,
número muito significativo, se levarmos em
conta que há dez anos entravam para o ensino
público superior apenas 40 mil. Além
do aumento das propinas, a ministra da Educação
já informou que os gastos por estudante terão
um acréscimo de apenas 0,8%, que, subtraídos
da taxa de inflação, representará
uma diminuição de 1,2% nos gastos por
estudante.
Para termos uma noção
mais clara deste problema, precisamos considerar que
as propinas não fazem parte do orçamento
do Ministério da Educação para
o ensino superior, mas são parte substancial
dos fundos de gestão das universidades públicas.
A crítica dos estudantes pode ser avaliada
de modo muito claro. Até 2002, as propinas
das universidades públicas estavam indexadas
ao salário mínimo em Portugal (356 euros),
e agora, com a desindexação, o aumento
pretendido pressiona, principalmente, a vida dos estudantes
mais carentes, na medida em que também não
cresce de modo proporcional o número de bolsas
de estudo oferecidas pelo Ministério da Educação.
Enfim, estamos tendo uma semana
bastante agitada, com mobilização estudantil
em todos os prédios da Universidade de Lisboa.
De acordo com o jornal Última Hora, cerca
de 90% dos estudantes da capital aderiram ao protesto
nacional, segundo dados de 14 associações
estudantis da capital. Os estudantes exigem a revogação
da lei do financiamento e contestam a redução
do peso dos alunos nos órgãos das universidades,
assim como o regime de prescrições.
Em pelo menos três escolas Instituto
Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa,
Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação
de Lisboa e Instituto Superior de Ciências Sociais
e Políticas os portões foram
fechados a cadeado.
Não vivia esta experiência
havia muito tempo! Entretanto, foi muito instrutiva.
Aproveitando-se da arquitetura dos prédios
(na maioria deles há apenas algumas portas
de acesso), os estudantes passaram cadeados nas portas
de todos eles e ninguém conseguiu entrar para
as aulas no dia de ontem (21 de outubro). Todos nós
ficamos, literalmente, para fora dos prédios,
incluindo professores e estudantes. Com a presença
de dezenas de pessoas em volta dos prédios,
os estudantes improvisaram salas de estudo ao ar livre,
aproveitando o belíssimo dia de outono em Lisboa.
A novidade da greve ficou, sem dúvida,
por conta dos cadeados. O movimento estudantil mostrou
capacidade de articulação, com adesão
quase completa de todas as universidades públicas
do país, e durou apenas um dia. A criatividade
e a ação direta marcaram as manifestações
pacíficas de 21 de outubro. Com certeza, elas
irão pesar nas negociações futuras
com as reitorias e o Ministério da Educação.
Há tempos não presenciava um movimento
estudantil de adesão nacional, sem os desgastes
das greves por tempo indeterminado.
*********
A agitação estudantil
me manteve distante das pesquisas em torno da tese
de mestrado inédita de Sérgio Buarque
de Holanda. De certo modo, isto me fez tomar alguma
distância do texto e apreciá-lo com outros
olhos. Apesar de se tratar de um texto inédito,
às vezes me vejo indo além do conteúdo
da tese. Para mim, isto tem sido muito estimulante
e acho que, mesmo estando em Lisboa por outros motivos,
novos horizontes foram abertos.
Instigou-me nestas duas semanas
perceber a cidade de Lisboa como um anfiteatro, com
as suas sete colinas. Metaforicamente, seria ela um
anfiteatro de onde podemos apreender todo o passado,
que construiu Portugal e também nossa identidade.
A idéia de um anfiteatro da história
permitiu-me a liberdade de criação de
um outro conceito para a compreensão da história.
O conceito de encenação do imaginário.
Terei algum tempo para desenvolvê-lo, mas posso
adiantar que ele tem afinidades com o contextualismo
de Quentin Skinner e também com o jogo de escalas
das análises da micro história italiana.
O conceito de encenação do imaginário
tornou-se apropriado para minha percepção
da teatralização e da ritualização
sociais necessárias para a construção
dos mitos e dos enredos literários que comandaram
os descobrimentos portugueses.
Este conceito não fui encontrar
na tese de Sérgio Buarque; quando muito, a
tese indicia a elaboração do conceito.
Tem sido a minha vivência na cidade de Lisboa
que, de muitas maneiras, me coloca em um anfiteatro
que permite assistir ao espetáculo de encenação
do imaginário dos achamentos portugueses. Esta
encenação tem também afinidades
com os estudos antropológicos e, neste sentido,
os estudos da sociedade portuguesa na época
dos descobrimentos podem abrir caminho para a percepção
da unidade semântica entre as ritualizações
sociais e os mitos de um determinado período.
Tenho a sensação de
que aos poucos vou me distanciando de Sérgio
Buarque e adquirindo outros elementos para a pesquisa
histórica, aproximando-me mais dos textos de
alguns autores humanistas portugueses, como Damião
de Góis e João de Barros, este último,
nas palavras do crítico literário Eduardo
Lourenço, um precursor do universo imaginário
de Cervantes.
*********
Na semana passada, comentei a presença
marcante da imigração brasileira em
Portugal. Volto de novo ao tema. Lembrei-me, na verdade,
de minha época de graduação na
Universidade de São Paulo, nos anos do pós-68,
quando o sonho de muitos estudantes era o de emigrar
para Paris, trabalhar lavando pratos em restaurantes
e fazer pós-graduação na Sorbonne.
Quem sabe, até, virar um intelectual de renome.
Com as portas sendo fechadas no
Brasil do AI-5, muitos estudantes seguiram este caminho,
nem sempre pela via direta da emigração,
mas muitos foram levados à Europa na condição
de exilados políticos. Caminhos tortuosos,
que se repetem com outras sutilezas nos dias de hoje.
Desde que cheguei em Lisboa, tenho me surpreendido
com o número de jovens brasileiros que emigraram
para Portugal com a expectativa de conquistar a Europa
a partir deste país.
Não me refiro aos jovens
trabalhadores que serão contratados na construção
civil ou como empregados domésticos. Refiro-me
aos jovens de classe média, com curso secundário
e às vezes até com o curso superior
completo, que chegam em Portugal com a expectativa
de alçar vôo em direção
aos países mais ricos da Europa. Para estes
jovens, os empregos em restaurantes são os
mais atrativos. Ao invés da Sorbonne, freqüentam
escolas noturnas de línguas que têm nomes
pomposos como Cambridge, Harvard etc. Seus desejos
são os de adquirir conhecimentos das línguas
inglesa, alemã ou francesa e ficar a residir
em Portugal até conseguir o passaporte europeu.
Depois, com o passaporte da comunidade européia
nas mãos, emigrar para mais países ricos,
como França, Inglaterra, Alemanha. Pelo visto,
o sonho não acabou
Mas como ocorreu em toda a década
de 1960 e 1970, poucos jovens conseguiram, de fato,
realizar o sonho de voar tão alto. Na maioria
dos casos, o retorno ao Brasil ou a aceitação
de uma vida mais simples e contudo mais segura em
algum país europeu foi o encontro mais comum
com a dura realidade. Voltaremos a este tema nas próximas
semanas, porque são importantes as pesquisas
sociológicas do ISCTE sobre a imigração
em Portugal. A atualização das estatísticas,
propiciada pelo novo regime legal das autorizações
de permanência de 2001, veio dar maior visibilidade
às mudanças que estão acontecendo
na imigração, destacando-se, principalmente,
o mais recente fluxo imigratório do Leste Europeu
e a enorme aceleração da imigração
oriunda do Brasil. Esta é a avaliação
preliminar de um estudo de Rui Pena Pires, publicado
pela Revista Sociologia: Problemas e Práticas,
do ISCTE, em 2002.
________________________________________________
Historiador e professor do IFCH, Edgar Salvadori de
Decca assumiu a cátedra Brasil-Portugal em
Ciências Sociais no Instituto Superior de Ciências
do Trabalho e da Empresa (ISCTE), em Lisboa, em convênio
firmado entre essa instituição e a Unicamp.
A convite do Jornal da Unicamp, De Decca aceitou o
desafio de escrever semanalmente um relato de sua
permanência na capital portuguesa.