Cena viva de Renato Cohen desbravou fronteiras da
vanguarda
REGINA
POLO MÜLLER
Artista
multimídia, pesquisador das mediações
e dos novos suportes na cena, autor de experimentos
radicais. Xamanismo e redes telemáticas, o
corpo mediado na rede e as narrativas projetadas na
NET. Arte e interatividade, performance e tecnologia.
Estas são palavras-chave, às quais poderíamos
acrescentar, ainda, linguagens híbridas, cultura
das bordas e tecnoculturas, que talvez ajudem
a definir o perfil do artista, pesquisador e professor
Renato Cohen, falecido no último dia 19, aos
47 anos.
Presentes em suas publicações,
ementas de disciplinas e de linhas de pesquisa, em
apresentações de obras artísticas
e em catálogos de artistas contemporâneos
brasileiros, elas podem, juntamente com os próprios
veículos de sua produtividade, dar uma idéia
de sua fértil e ousada carreira de artista
vinculado à Universidade, desbravando fronteiras
e avançando nos territórios de vanguarda.
Descrever sua trajetória
acadêmica pode contribuir mais um pouco, ainda,
para deixarmos minimamente marcado o reconhecimento
da vitalidade de sua atuação na renovação
da pesquisa e no ensino de artes no ensino superior.
Autor de dois livros importantes no campo da pesquisa
em artes cênicas contemporâneas, Performance
como linguagem (1988/2003) e Work in progress na cena
contemporânea (1998), ambos pela editora Perspectiva
e, respectivamente, versões publicadas de sua
dissertação de mestrado e da tese de
doutorado, pela Universidade de São Paulo,
Renato Cohen pertence à geração
que encontrou no meio acadêmico o lugar da experimentação
e da instauração do novo no mundo das
Artes. Tal como se espera que se cumpra o destino
das universidades, mas um lugar, neste caso, criado
pela própria arte contemporânea, com
a urgente necessidade, neste seu novo tempo, de se
constituir intimamente conectada à ciência
e tecnologia.
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Cena de Ka (acima), peça baseada na obra
homônima de Khlébnikov e dirigida
por Cohen (foto): irradiação da
energia criativa |
Formado, na graduação,
em Engenharia de Produção (USP), Cohen
se dedicou, na pós-graduação,
aos estudos de teatro, fazendo, desde então,
a opção por suas operações
prediletas como pesquisador e artista: a radicalidade
e mistura, a fusão e alquimia que permitem
borrar fronteiras, justamente para avançá-las.
Seu tema de pesquisa foi a performance, linguagem
da cena teatral que surge no século 20, com
vinculação com as artes plásticas.
Estes estudos, alocados inicialmente
no campo interdisciplinar das teorias da arte, história
da arte e direção teatral, se desdobram
posteriormente, ao acrescentar o campo da interpretação
teatral. Vê-se aqui, novamente, mistura ou interstício,
emprestando-se mais uma de suas palavras, para nomear
essa nova realidade em que criador e intérprete
são o mesmo e que, como categorias separadas,
já não dariam mais conta de nomear os
personagens dos processos da criação
cênica contemporânea.
Work in process: linguagens
da criação, encenação
e recepção na cena contemporânea,
a tese de doutorado, é resultado de sua experiência
acadêmica e artística. Daí em
diante, estas explodiriam em diversas interfaces,
como o pós-doutorado na PUC-SP, nas áreas
de Semiótica, Teoria da Comunicação
e Teoria da Informação. Docente desta
Universidade, desde 1998, coordena ainda o Núcleo
de Estudos da Performance e em 2003, no Seminário
de Estudos Avançados, ensina na área
de Tecnologias de Informação, na linha
Tecnocultura, a disciplina Artemídia-Estudo
de Objetos Transmidiáticos.
Já na Unicamp, cujo vínculo
se inicia em 1998, com sua atuação como
diretor do espetáculo KA, exibido no Museu
da Cidade, em Campinas, participa como docente, desde
1999, da reelaboração do curso de mestrado
e proposta de doutorado em Artes do IA, na linha de
pesquisa interdisciplinar Arte e Mediação,
orientando trabalhos de criação em artes
cênicas. Suas aulas, no mestrado, eram laboratórios
de experimentação, chamados por ele
de Seminários artísticos,
perfil que leva também às sessões
do GT Territórios e Fronteiras,
sob sua coordenação, da Associação
Brasileira de Pesquisa e Pós-graduação
em Artes Cênicas (Abrace). Sua pesquisa articula
as duas principais vertentes de sua obra, tratando
da Performance na Era da Tecnologia.
Suas pesquisas teóricas e
práticas receberam apoio institucional. Foi
contemplado com a Bolsa Vitae, por duas vezes, com
o projeto Teatro e Novas Tecnologias.
Dirigindo os alunos do Departamento de Artes Cênicas
da Unicamp, na criação e encenação
de KA, baseado na obra de Vélimir Khlébnikov
e os usuários do serviço de saúde
mental em DÉDALUS (2000), com Sergio Penna
e música de Wilson Sukorski, Renato Cohen misturava
recursos tecnológicos, hipertextos, ambientação
e xamanismo.
Essa é a experiência
artística que fundamenta seu percurso acadêmico.
Sua produção inclui ainda instalações
multimídia interativas, eventos de telepresença
com acesso pela rede, ao lado de outras atividades
como curadoria e seminários de mostras, através
das quais exerce seu pensamento e reflexão
teórica. Assim, organizou tematicamente a mostra
realizada, em 2002, pelo TCT-Teatro do Centro da Terra,
São Paulo, na qual se juntaram pesquisas
radicais em dança e teatro, que vão
da Antropologia ao universo das hipermídias.
Nas suas próprias experiências
radicais, como as performances interativas com
uso do espaço computacional, conta com a parceria
de Johannes Birringer (Ohio), autor da sala
tecnológica que recebe inputs em
tempo real em contraposição à
sala instalação, remetida às
artes plásticas. Finalmente, o conceito
de environment que Renato Cohen formulou como energia
psíquica presente na performance e veículo
de troca, poderia nos auxiliar a entender como xamanismo
e redes telemáticas aparecem juntos no elenco
das palavras-chave de sua obra. Tanto um como outro
conectam pessoas, estabelecem redes de contato e convivência.
É uma relação que se pode estabelecer
na sua teoria, mas que soa, sobretudo, como seu desejo
de conectar pessoas, mundos, idéias.
Para os colegas e alunos do Instituto
de Artes da Unicamp que participaram de seu convívio,
esta foi uma experiência que os conectou aos
colegas e alunos de outras instituições
de pesquisa e de ensino superior, uma das condições
fundamentais para a consolidação da
área de Artes na Universidade. Para além
da experiência institucional, entretanto, as
conexões que a convivência com Renato
Cohen estabelecia diziam muito mais respeito ao fenômeno
do encontro humano, afinal a matéria de que
se constitui a atividade artística e a docência.
Sua sensibilidade e afetividade faziam ser o centro
de irradiação da energia criativa e
educacional.
Regina Pólo Muller é
professora do Instituto de Artes da Unicamp (IA)