José Dias Sobrinho
avalia a avaliação
ÁLVARO
KASSAB
Em
seu último livro, Avaliação
Políticas Educacionais e Reformas do Ensino
Superior (Editora Cortez, 2003), o professor José
Dias Sobrinho reconhece que não é das
mais tranqüilas a tarefa de tratar do objeto
e dos objetivos da avaliação.
Trata-se de uma convicção pavimentada
na prática. Professor emérito da Unicamp,
onde ingressou em 1972 como primeiro docente da Faculdade
de Educação, Dias Sobrinho dedica-se
há quase meio século às coisas
do ensino, numa trajetória iniciada no Paraná,
com passagem pela UnB. Entre 1990-94, período
em que foi pró-reitor de Pós-Graduação
da Unicamp, Dias Sobrinho comandou na Universidade
a primeira avaliação institucional completa
no país, cuja metodologia seria posteriormente
adotada pelo Paiub (Programa de Avaliação
Institucional das Universidades Brasileiras).
Recentemente,
o professor presidiu a Comissão Especial de
Avaliação. Instituída em abril
deste ano pelo MEC e composta por especialistas em
educação e por gestores públicos,
a comissão formulou um documento que propõe
mudanças profundas na estrutura de avaliação
da educação superior no país,
a começar do Provão. O documento, que
sugere a implantação do Sinaes (Sistema
Nacional de Avaliação da Educação
Superior), foi entregue ao ministro da Educação,
Cristovam Buarque. Ao Jornal da Unicamp, Dias Sobrinho
detalha o conteúdo das propostas.
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O professor José Dias Sobrinho: O
Provão acabou se transformando em instrumento
que assume o significado de avaliação,
como se a avaliação fosse só
um instrumento
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JU Qual é a
importância da avaliação na área
da educação no país?
José Dias Sobrinho Vou fazer uma
reflexão mais ampla. Um ex-ministro da função
pública da França, Emile Zuccareli, dizia
que não há nenhuma nação
moderna que possa abrir mão da avaliação.
Ele falava da avaliação geral, da avaliação
como política pública, não necessariamente
na área da educação. Ou seja, toda
a transformação no campo da administração
pública requer um exercício forte de avaliação.
Ela tem um interesse político determinante, não
é uma questão técnica, não
é nada neutra. E, exatamente por saber dos efeitos
políticos, é que os administradores a
colocam como se fosse um componente meramente técnico.
JU Despolitizando seu
conteúdo?
Dias Sim, para reforçar sua atividade
política de acordo com os seus interesses.
Esta é uma camuflagem da função
política e ideológica da avaliação.
Muito mais que uma epistemologia, a avaliação
é uma concepção de mundo que
tem, portanto, uma determinada orientação
de vida.
JU Essa distorção
norteia os princípio do Provão?
Dias Sem dúvida. Trata-se de
um instrumento de avaliação que passou
a representar a própria avaliação.
No fundo, trata-se de uma prova que acabou se transformando
em instrumento que assume o significado de avaliação,
como se a avaliação fosse só
um instrumento.
JU Em seu último
livro, Avaliação Políticas
Educacionais e Reformas da Educação
Superior [Cortez Editora, 2003], o senhor sustenta
que o Provão embute um viés ideológico
notadamente neoliberal. O senhor poderia explicar?
Dias É claro que um governo neoliberal
só pode adotar, por coerência, uma avaliação
neoliberal. Qual era a política do governo
anterior, cujos efeitos estamos vendo até hoje?
Ela esteve em gestação durante os anos
de 1995 e 1996, antes da homologação
da Lei de Diretrizes Básicas da Educação,
que de alguma forma continha os lineamentos básicos
para toda uma política de educação
superior. A regulação dessa política
veio obviamente com uma enxurrada normativa criada
pelo ministro da Educação da época,
Paulo Renato. Esse conjunto de normas que acompanha
a LDB tinha e tem como finalidade básica
a modernização da educação
superior, neste caso entendida como privatização
da educação superior.
JU Quais foram os problemas
decorrentes dessa privatização?
Dias É algo um pouco diferente
do mundo empresarial, onde você compra, adquire
e passa a ser proprietário. Na área
da educação, a privatização
é mais ideológica, tem a ver com concepção
de mundo. Há uma privatização
inclusive da educação pública.
Em outras palavras, é a construção
de um modelo de educação superior mais
ajustado às necessidades do mercado.
JU O Provão está
neste contexto?
Dias Claro. O Provão, e/ou qualquer
outro instrumento que mede desempenhos de estudantes
em escala nacional, tem muito mais uma função
de orientação de mercado do que uma
função pedagógica. A literatura
da área constatou há muito que não
existe qualquer função educativa num
exame geral. O Provão é um instrumento
que pretendia ser de regulação, mas
isso não ocorreu. Todos que pretendiam abrir
um curso, abriram e nenhum curso foi fechado.
JU Mas uma das propostas
do Provão era a de justamente fechar os cursos
reprovados...
Dias Nos últimos cinco anos houve
um crescimento de 105% na expansão da educação
superior, basicamente privada e nenhum curso foi fechado.
Acho que seria injusto fechar, porque se trata de
um instrumento que não é confiável.
O Provão se propunha a fechar os cursos D
e E. Não fechou, como também
não regulou a demanda. Os cursos D
e E, que são os piores, obviamente
deveriam perder estudantes e não perderam.
Os números do Inep [Instituto Nacional de Estudos
e Pesquisas Educacionais] mostram exatamente o contrário
em muitos casos. Por outro lado, os cursos A
e B não ampliaram sua demanda.
Ou seja, trata-se de um instrumento que não
interfere na questão do mercado, de oferta/demanda.
A função de mercado do Provão
é muito discutível e do ponto de vista
pedagógico ele não tem valor.
JU O Provão, então,
não pode ser visto como avaliação?
Dias Na literatura, instrumentos como
o Provão são chamados de pseudo-avaliação
ou de quase-avaliação. Estaria
mais na instância do controle, da averiguação,
da verificação. A avaliação
de educação, necessariamente, tem que
pôr em questão e produzir significados
complexos da área e não simplesmente
se ater a uma única faceta. A aprendizagem
não se avalia em nível nacional. É
um fenômeno que ocorre com os indivíduos
em determinadas situações concretas
de sua vida. Portanto, só poderia ser avaliada
nessa situação concreta e com todas
as suas limitações. Uma prova aplicada
nacionalmente não tem condição
de fazer uma avaliação da aprendizagem.
Quanto muito, pode fazer uma verificação
de desempenho, ou seja, aquilo que alguém pode
demonstrar numa determinada circunstância. Mudando
essa circunstância, o desempenho inclusive passa
a ser outro.
JU - Em seu livro, há
uma associação entre os procedimentos
adotados pelo Provão e a questão ética.
O senhor poderia explicitá-la?
Dias A questão ética está
diretamente relacionada à questão do
rigor. Até então, estou falando que
não existe muito rigor do ponto de vista técnico-científico
no Provão. A sua pergunta me leva a considerar
o ponto de vista ético; ele, o Provão,
não é justo. Produz injustiça.
Não leva em conta as disparidades regionais,
a desigualdade individual, mas é injusta sobretudo
porque produz uma maior competição individual.
Trata-se de um instrumento que aprofunda a ideologia
do sucesso individual em detrimento da solidariedade,
de todos os valores mais humanísticos
o respeito à alteridade, às diferenças.
A educação passa a ser vista como mercadoria.
O Provão é um instrumento do mercado
educacional.
JU O que há de
diferente entre os primeiros movimentos da privatização
da educação, especificamente após
a reforma de 1968, e os registrados agora?
Dias A privatização da
educação brasileira começou,
de uma forma mais programática, com os governos
militares. Mas havia duas coisas muito importantes
na Reforma Universitária de 68. Primeiro, o
conceito de indissociabilidade entre ensino, pesquisa
e extensão, coisa que se está perdendo,
pois agora houve uma ruptura, na qual você pode
escolher o tipo de instituição que você
quer criar. Dá para afirmar inclusive que há
hoje uma tendência a atribuir a uma instituição
educativa sobretudo os fins mercadológicos.
Perdeu-se, em boa parte, o sentido de função
pública da educação. Mesmo nos
governos militares, com todos os seus equívocos,
havia ainda esse sentido de nação. Havia
a pressão pela expansão, que era grande;
digamos que era necessário que o setor privado
se encarregasse de ajudar o setor público,
mas sem perder sua função no projeto
de desenvolvimento nacional e sem perder de vista
que a universidade se constituía de ensino,
pesquisa e extensão de modo indissociável.
Nos anos 80, houve a criação do Grupo
de Estudos da Reforma da Educação Superior,
o famoso Geres, isso já no começo do
governo Sarney, em 1985, quando já se colocava
alguma coisa que veio se tornar realidade nos anos
90, especialmente no governo FHC. A idéia,
a matriz de algo parecido com o Provão, já
estava proposto lá no Geres, como instrumento
de mensuração da qualidade.
Outro fator importante a mencionar é a modernização.
JU - Quais foram seus efeitos
na educação?
Dias Penso especialmente no processo
de urbanização. A saída do campo
para as cidades acabou gerando uma pressão
para maior escolarização. Alguns anos
depois, esses estudantes chegaram ao nível
médio e, depois, ao superior. Isto, somado
às necessidades trazidas pela globalização
econômica, na qual o emprego requer mais escolaridade,
exigiu que alguma coisa tivesse de ser feita para
atender à crescente demanda. E a opção
do governo Fernando Henrique foi pela abertura, quase
que livre, dos cursos. Os três pilares da política
do MEC, para a Educação Superior, em
parte colocada já pelo próprio Banco
Mundial, foram: a autonomia, a avaliação,
e a qualidade. São três palavras com
significação muito positiva, mas na
realidade, dentro dessa política, autonomia
significava liberdade de processo, ou seja, no limite,
liberdade para abrir cursos, flexibilizar contratos
e liberalizar a captação de recursos.
Qualquer pessoa hoje pode abrir um curso superior,
desde que esteja em dia com as obrigações
fiscais. Até analfabeto pode. Depois, essas
escolas seriam controladas pela avaliação.
Veja que aqui a avaliação tem sentido
de controle e não de melhoria, não de
um processo que vai induzir melhoria pedagógica
ou administrativa. Portanto, é um contraponto
da autonomia, podendo mesmo suprimir a autonomia.
O controle é feito pelo Provão, que
prioriza o produto. Então, seria liberdade
quanto ao processo, e controle do produto e do resultado.
Nessa lógica, o resultado quantificável,
comparável, objetivável seria a expressão
da qualidade e esta poderia ser medida e produzir
ranqueamentos do tipo A, B,
C, D e E. A qualidade seria
expressa por índices como aumento de matrículas
ou de titulação etc.
JU - Mas esses indicadores não
atestam de fato essa melhoria?
Dias - Isso ainda não é qualidade.
O responsável pela melhoria da formação
docente e pela produção de pesquisa
é basicamente a universidade pública
e algumas poucas universidades privadas. As novas
instituições de ensino não acrescentaram
praticamente nada. Na verdade, o processo de construção
da qualidade universitária vem de algumas décadas.
A pós-graduação brasileira, o
regime de tempo integral, a criação
de laboratórios, a política de pesquisa,
tudo isso vem dos anos 60. Sem dúvida, na América
Latina, o Brasil não é apenas pioneiro
como também o principal país em termos
de pesquisa e pós-graduação.
JU Qual seria então
o modelo ideal de avaliação?
Dias Um modelo que a Comissão
Especial de Avaliação, criada pela SESu,
acaba de propor entende a educação como
fenômeno complexo. Quando falo em complexidade,
estou me referindo à complexidade técnica,
à complexidade científica mas também,
e sobretudo, à complexidade humana. São
muitos os interesses e valores em disputa na sociedade.
Propomos uma mudança de paradigma, de concepção.
Pode-se até utilizar os mesmos instrumentos
anteriores, a prova, por exemplo, mas dentro de uma
outra filosofia, de outro objetivo. E cada instrumento
deve estar sempre articulado a um conjunto de outros
instrumentos e fatores. A questão da complexidade
é, portanto, paradigmática. Não
se trata de ficar simplesmente acrescentando instrumentos
de controle ou verificação. Avaliação
é uma atitude filosófica que cria metodologias
para atender determinados fins e objetivos e tudo
isso de uma forma integrada. É preciso criar
um sistema de educação superior, coisa
que verdadeiramente ainda não há no
país.
JU Alicerçado em
que modelo?
Dias Temos instituições
isoladas que não constituem um sistema. A avaliação
seria o motor desse sistema de educação,
e lhe daria coerência. É preciso entender
que educação é muito mais do
que o ensino, que a avaliação é
muito mais do que controle. A questão de valores
é fundamental em educação. Educação
não se faz apenas num determinado momento,
o tempo da educação é um tempo
total, portanto não pode ser avaliada só
fotograficamente, em tempo estático. É
importante ver o que se agrega, ou seja, o desenvolvimento,
as inovações, os dinamismos. Mas, sobretudo,
não deixar de tocar na questão fundamental
da educação, que é a formação
o seu valor humano e social. A formação
integra um conceito muito mais amplo do que o conceito
de treinamento e de capacitação profissional,
embora isso também seja importante. Falo da
formação do ser humano em seus múltiplos
sentidos, da polissemia da vida humana.
JU - Não há algo
de utópico nessa busca pelo polissêmico
num campo sempre sujeito às ingerências
políticas?
Dias Sair de um paradigma de controle
significa sair de um paradigma mono-referencial para
um de múltiplas referências. É
preciso sair de uma significação única,
que se traduz através de conceitos, ou de uma
nota, para o mundo polissêmico de culturas,
de valores, de diversidade. Por isso não posso
ficar só com o ensino. Tenho que ver o ensino
articulado com a pesquisa; tenho que ver a pesquisa
vinculada a seus impactos, a sua função
social, além de sua própria vinculação
com a ciência; tenho que ver o sentido social
da formação que se está dando
na universidade. E assim por diante. A educação
tem sempre uma dimensão utópica, de
projeto, de futuro.
JU Nos dois últimos
congressos de leitura e de educação,
ambos realizados na Unicamp, o foco de boa parte dos
participantes esteve voltado para essas questões
levantadas pelo senhor. Existe algo de novo nisso
ou seria uma espécie de resistência aos
modelos predominantes?
Dias Infelizmente, esta sua segunda
hipótese é mais real. Vejo como uma
necessidade do mundo todo, não só da
educação, essa tendência em recuperar
valores que estão um pouco perdidos, que estão
em segundo plano. A economização da
vida, essa tendência a reduzir e colocar no
centro de tudo o valor econômico, fez com que
a humanidade tenha perdido um pouco dos seus valores
mais fundamentais, mais primordiais, mais permanentes.
Claro que a educação é o lugar
onde isso vai repercutir de uma forma mais forte.
A função da educação é
exatamente trabalhar esses valores, os processos civilizatórios.
Educação é acrescentar mais civilização
à vida humana, tanto no plano individual como
no coletivo. Na medida que esses valores primordiais
estão sendo colocados em segundo plano, em
virtude do crescimento dessa funcionalização,
evidentemente que a educação vai se
preocupar com isso. Acho, em primeiro lugar, que não
há muito interesse nos governos do mundo de
alterar substancialmente essa ordem vigente
seja do neoliberalismo, seja do neoconservadorismo,
que são linhas que retomam a mesma lógica
da conservação. Os governos estão
muito presos a esses interesses. Por outro lado, acho
que a formação dos educadores tem deixado
muito a desejar.
JU Em que sentido?
Dias O professor perdeu valor dentro
dessa lógica utilitarista e individualista.
Parece que a educação tem valor nos
discursos, mas aqueles que são responsáveis
pela prática, os professores principalmente,
carecem de uma formação mais ampla,
até porque têm uma remuneração
muito baixa. Trata-se de uma questão muito
problemática.
JU A competitividade estaria
no elenco de problemas?
Dias Sim. Obviamente aqueles que têm
os melhores instrumentos, os mais ajustados a essa
ótica do utilitário, e isso dentro de
uma instituição privada tem peso, vão
sair ganhando. A competitividade no mercado educacional
é igual à do mercado empresarial.
JU Há canibalização
na área?
Dias Sim. É preciso criar um
código de ética. A avaliação
deveria levar em conta esses valores. Por exemplo,
quais instituições estão preocupadas
com uma formação mais integral do ser
humano? Como cumprem sua responsabilidade social?
A avaliação deveria ter o papel importante
de valorizar aquilo que é fundamental na formação
e importante para o desenvolvimento social. O conceito
da formação e de qualidade tem de ser
novamente discutido. Qualidade em educação
hoje é um conceito totalmente dominado pela
noção do mercado.
JU O que preconiza a Comissão
Especial de Avaliação, presidida pelo
senhor?
Dias Sinaes é uma sigla para
Sistema Nacional de Avaliação de Educação
Superior. Com isso já estamos sinalizando,
sem querer fazer trocadilho, a idéia de que
a avaliação deve ser, ela própria,
um conjunto de instrumentos e procedimentos com base
numa concepção global que produza também
efeitos articulados com essa metodologia, mas também
que ela possa colaborar centralmente com a construção
de um sistema de educação superior mais
coeso e mais coerente e com uma função
social mais definida, que de alguma forma também
esteja vinculada a um projeto de nação.
JU O senhor acha que a
proposta é factível nesse momento de
transição?
Dias Creio que tudo isso é um
pouco frágil no Brasil, mas esse sistema de
avaliação tem um pouco essa pretensão
de ajudar a construir um sistema de educação
superior que esteja mais voltado ao social, ao desenvolvimento
do país. Passa necessariamente pelo desenvolvimento
técnico e científico e pelo fortalecimento
dos valores humanos. A avaliação é
um processo de reflexão, de melhoria, de aperfeiçoamento
e de produção de sentido. A avaliação
é, antes de mais nada, um questionamento sobre
o significado das ações praticadas dentro
da educação. Ela precisa se articular
com a regulação, com o dever que o Estado
tem de assegurar a qualidade da educação
superior, não permitindo que ela se torne algo
descontrolado. É preciso haver um permanente
acompanhamento no campo regulatório. Que a
avaliação seja vinculativa na regulação,
ou seja, que todos os atos e processos de regulação
tenham por base os resultados de avaliações.
Os agentes da comunidade universitária precisam
se sentir co-responsáveis pela educação
superior e, portanto, também protagonistas
da avaliação. Eles não podem
ser apenas objetos da avaliação. Que
todos sejam avaliados, mas que todos também
possam ser avaliadores, cada qual a seu modo. Só
posso ser co-responsável por alguma coisa da
qual eu participo. Se não tenho oportunidade
ou chance de agir como avaliador, também não
sou responsável pela construção
da qualidade.
JU Quanto tempo foi consumido
neste estudo?
Dias Essa comissão especial de
avaliação trabalhou de abril a final
de agosto. Foram quatro meses de trabalho. Era formada
por 21 pessoas, sendo professores, gestores e teóricos
que já trabalharam em avaliação
em educação superior e mais três
estudantes representando a UNE. A comissão
foi criada pela Secretaria de Educação
Superior, a SESu.
Esta comissão saiu convencida de ter produzido
um consistente projeto de avaliação,
vinculado a um projeto de educação superior.
A elaboração deste documento levou em
conta manifestações de 38 entidades
da sociedade civil, desde Andes, Crub, CUT, CGT, associações
científicas, enfim houve um amplo processo
de audiências públicas. Isso está
consolidado em documentos. A maior parte dessas entidades
pedia justamente que fosse criado um sistema mais
amplo, que fossem avaliadas as diversas dimensões
institucionais e que fosse levada em conta a função
social da educação superior. Isso está
contemplado no documento. Não sei se o ministro
vai acatar ou não. É uma pergunta que
tem de ser feita a ele. Espero que sim, mas acho que
há também lobbies fortíssimos,
a começar pela grande imprensa.
JU Em que medida?
Dias O Provão é um instrumento
fácil de trabalhar e que traz muito recurso,
muito dinheiro, muito impacto na divulgação
dos resultados.
JU Há estimativas
de quanto se gasta em publicidade?
Dias A publicidade em educação
brasileira envolve cerca de R$ 420 milhões
por ano. É muito dinheiro. E o Provão
tem uma grande participação nisso. Nós
temos discutido essa proposta em diversas universidades
e entidades. Evidentemente que há muitas sugestões
e pontos de dúvida que têm de ser trabalhados.
Mas a aceitação da idéia básica
é muito boa e positiva. Agora, é preciso
dizer que muitos professores preferem deixar como
está. O Provão é um instrumento
essencialmente conservador. Todo controle é
conservador. Ele apenas quer verificar se há
conformidade entre uma norma preestabelecida, escrita
ou não, e a realidade praticada.
JU Quais seriam os efeitos
desta acomodação?
Dias Nas grandes universidades, alguns
professores estão acomodados com esta visão.
Eles não se sentem incomodados com uma avaliação,
eles não precisam fazer absolutamente nada.
Eles já têm os melhores alunos que quase
sempre vão ter os melhores resultados no Provão.
Com isso, eles podem até usar a grife do bom
conceito A, B. A prova
acaba deixando de lado toda a questão da inovação,
das fronteiras do conhecimento, da interdisciplinaridade,
da cooperação entre áreas. Ela
congela um determinado currículo e faz com
que todas as escolas superiores procurem trabalhar
aquele currículo congelado. Há um empobrecimento
generalizado, que inibe as iniciativas de questionamento
e reflexão, ou seja, de avaliação.
JU Números recentes
divulgados pelo IBGE indicam que são abertas
cerca de quatro escolas superiores por dia no Brasil.
O que o senhor acha dessa proliferação
de instituições?
Dias Isso indica que a abertura é
totalmente facilitada e não há acompanhamento.
Os cursos são quase que automaticamente reconhecidos
porque não há instrumentos mais consistentes
para regular a educação superior. A
legislação criada nos últimos
anos, especialmente após a LDB de 1996, permite
aos centros universitários a abertura de qualquer
curso sem que haja uma aprovação prévia.
No caso de centros e universidades, que são
autônomos, a autorização não
é atribuição do MEC. A questão
não é diminuir o crescimento, mas sim
aumentar a qualidade. As instituições,
de acordo com o que estamos propondo com o Sinaes,
teriam que demonstrar a sua razão de ser.
JU Há demanda para
isso?
Dias Aí há uma contradição.
A demanda existe realmente, mas há limites
econômicos. Hoje só há mais espaço
de crescimento para as classes C e D. O nível
de inadimplência é muito alto, está
entre 30% e 40%. Há um mercado possível
para as classes C e D, mas os cursos para se viabilizarem
teriam de ser rápidos e não poderiam
ultrapassar os R$ 200 de mensalidade.
JU O Provão também
é privatizado?
Dias O instrumento do Provão
é elaborado por uma agência privada.
E é claro que isso tem um custo altíssimo,
por volta de R$ 35 milhões e hoje só
atinge a um terço dos cursos, coisa de 4,5
mil num total de 14.800. Poderíamos pensar
em algo por volta de R$ 100 milhões se ele
abrangesse todos os cursos. Ou seja, o Provão
ainda não é universal e custa muito.
O custo dessa avaliação é absurdo
porque a avaliação está produzindo
resultados absurdos. Se fosse uma coisa que produzisse
resultados bons e confiáveis, o custo não
deveria ser levado em conta tanto assim. É
uma aberração distorcer os resultados
e modelar a educação superior aos interesses
do mercado.
JU Qual é, na sua
opinião, a conseqüência dessa relação?
Dias Primeiro é que o sentido
público da educação vai ser perdendo.
Passa a não haver fronteiras muito claras entre
uma instituição pública e uma
instituição privada de nível
reconhecido. Segundo, porque a área de humanidades,
que não tem apelo utilitário, em geral,
vai se desvalorizando, vai se enfraquecendo e tem
o seu futuro comprometido. A carreira passa a ficar
desinteressante. Com isso, a universidade passa a
ter um desequilíbrio estrutural na questão
do poder. Quer dizer, perde força como área
de conhecimento e de valor social e, portanto, perde
também peso na divisão do poder interno
da universidade. Isso acaba reforçando essa
mentalidade economicista. Aquilo que é valor
primordial para o homem, passa a segundo ou terceiro
plano. E aí há uma inversão de
valores. O valor econômico, o lucro, o sucesso
e o dinheiro, que seriam secundários, passam
a ser o principal. O conhecimento desinteressado,
que também foi um dos valores da universidade,
se enfraquece.
JU Dá para precisar
quando exatamente esse movimento teve início?
Dias O que a literatura chama de privatização
branda, ou de quase-mercado, é um fenômeno
mundial que começou faz tempo, mas teve um
momento marcante a partir de Margareth Tatcher, nos
anos 80. Em discurso pronunciado logo que assumiu,
em 1979, ela disse que a universidade era pouco produtiva,
gastava muito e não tinha utilidade para a
indústria e para o comércio. Isso deveria
mudar. Começou então a predominar essa
mentalidade de mercado. Todo o financiamento passou
a ser competitivo. Embora isso se justifique do ponto
de vista do rigor do uso dos recursos públicos,
por outro lado muitas pesquisas que não tinham
utilidade mercadológica deixaram de ser produzidos.
JU Até que ponto
as políticas públicas são afetadas?
Dias A continuar nesse ritmo atual,
brevemente esse quase do quase-mercado
vai desaparecer. A partir de 2005, por exemplo, a
educação vai ser considerada formalmente
pela Organização Mundial do Trabalho
como uma mercadoria. Isso significa que qualquer instituição
nossa vai estar aberta ao mercado, não só
nacional como também internacional. Qualquer
pessoa poderá ter uma franquia, como se fosse
um posto de gasolina... Você poderá ter
uma escola com o dinheiro vindo de qualquer parte
do mundo. Isso significa sobretudo que o país
perde autonomia quanto a determinar sua política
educacional. As nações ficarão
sujeitas ao jogo de mercado. E obviamente que a educação
vai se tornando cada vez mais cara, em razão
dos avanços técnico-científicas.
As instituições terão de mostrar
cada vez mais eficiência empresarial, e a pesquisa
básica vai cedendo terreno ao conhecimento
útil e de imediata aplicação.