Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 235 - de 27 outubro a 2 novembro de 2003
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Diário de Lisboa
Trangênicos: o eixo da guerra
HES: entre os melhores
A Cena viva de Renato Cohen
Pesquisa: droga vasldilatadora
Avaliação: José Dias Sobrinho
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Borracha natural
Música: território livre
 

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José Dias Sobrinho
avalia a avaliação

ÁLVARO KASSAB

Em seu último livro, Avaliação – Políticas Educacionais e Reformas do Ensino Superior (Editora Cortez, 2003), o professor José Dias Sobrinho reconhece que não é das mais tranqüilas a tarefa de “tratar do objeto e dos objetivos da avaliação”. Trata-se de uma convicção pavimentada na prática. Professor emérito da Unicamp, onde ingressou em 1972 como primeiro docente da Faculdade de Educação, Dias Sobrinho dedica-se há quase meio século às coisas do ensino, numa trajetória iniciada no Paraná, com passagem pela UnB. Entre 1990-94, período em que foi pró-reitor de Pós-Graduação da Unicamp, Dias Sobrinho comandou na Universidade a primeira avaliação institucional completa no país, cuja metodologia seria posteriormente adotada pelo Paiub (Programa de Avaliação Institucional das Universidades Brasileiras).

Recentemente, o professor presidiu a Comissão Especial de Avaliação. Instituída em abril deste ano pelo MEC e composta por especialistas em educação e por gestores públicos, a comissão formulou um documento que propõe mudanças profundas na estrutura de avaliação da educação superior no país, a começar do Provão. O documento, que sugere a implantação do Sinaes (Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior), foi entregue ao ministro da Educação, Cristovam Buarque. Ao Jornal da Unicamp, Dias Sobrinho detalha o conteúdo das propostas.

 

O professor José Dias Sobrinho: “O Provão acabou se transformando em instrumento que assume o significado de avaliação, como se a avaliação fosse só um instrumento”
JU – Qual é a importância da avaliação na área da educação no país?
José Dias Sobrinho – Vou fazer uma reflexão mais ampla. Um ex-ministro da função pública da França, Emile Zuccareli, dizia que não há nenhuma nação moderna que possa abrir mão da avaliação. Ele falava da avaliação geral, da avaliação como política pública, não necessariamente na área da educação. Ou seja, toda a transformação no campo da administração pública requer um exercício forte de avaliação. Ela tem um interesse político determinante, não é uma questão técnica, não é nada neutra. E, exatamente por saber dos efeitos políticos, é que os administradores a colocam como se fosse um componente meramente técnico.

JU – Despolitizando seu conteúdo?
Dias – Sim, para reforçar sua atividade política de acordo com os seus interesses. Esta é uma camuflagem da função política e ideológica da avaliação. Muito mais que uma epistemologia, a avaliação é uma concepção de mundo que tem, portanto, uma determinada orientação de vida.

JU – Essa distorção norteia os princípio do Provão?
Dias – Sem dúvida. Trata-se de um instrumento de avaliação que passou a representar a própria avaliação. No fundo, trata-se de uma prova que acabou se transformando em instrumento que assume o significado de avaliação, como se a avaliação fosse só um instrumento.

JU – Em seu último livro, Avaliação – Políticas Educacionais e Reformas da Educação Superior [Cortez Editora, 2003], o senhor sustenta que o Provão embute um viés ideológico notadamente neoliberal. O senhor poderia explicar?
Dias – É claro que um governo neoliberal só pode adotar, por coerência, uma avaliação neoliberal. Qual era a política do governo anterior, cujos efeitos estamos vendo até hoje? Ela esteve em gestação durante os anos de 1995 e 1996, antes da homologação da Lei de Diretrizes Básicas da Educação, que de alguma forma continha os lineamentos básicos para toda uma política de educação superior. A regulação dessa política veio obviamente com uma enxurrada normativa criada pelo ministro da Educação da época, Paulo Renato. Esse conjunto de normas que acompanha a LDB tinha – e tem – como finalidade básica a modernização da educação superior, neste caso entendida como privatização da educação superior.

JU – Quais foram os problemas decorrentes dessa privatização?
Dias – É algo um pouco diferente do mundo empresarial, onde você compra, adquire e passa a ser proprietário. Na área da educação, a privatização é mais ideológica, tem a ver com concepção de mundo. Há uma privatização inclusive da educação pública. Em outras palavras, é a construção de um modelo de educação superior mais ajustado às necessidades do mercado.

JU – O Provão está neste contexto?
Dias – Claro. O Provão, e/ou qualquer outro instrumento que mede desempenhos de estudantes em escala nacional, tem muito mais uma função de orientação de mercado do que uma função pedagógica. A literatura da área constatou há muito que não existe qualquer função educativa num exame geral. O Provão é um instrumento que pretendia ser de regulação, mas isso não ocorreu. Todos que pretendiam abrir um curso, abriram e nenhum curso foi fechado.

JU – Mas uma das propostas do Provão era a de justamente fechar os cursos reprovados...
Dias – Nos últimos cinco anos houve um crescimento de 105% na expansão da educação superior, basicamente privada e nenhum curso foi fechado. Acho que seria injusto fechar, porque se trata de um instrumento que não é confiável. O Provão se propunha a fechar os cursos “D” e “E”. Não fechou, como também não regulou a demanda. Os cursos “D” e “E”, que são os piores, obviamente deveriam perder estudantes e não perderam. Os números do Inep [Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais] mostram exatamente o contrário em muitos casos. Por outro lado, os cursos “A” e “B” não ampliaram sua demanda. Ou seja, trata-se de um instrumento que não interfere na questão do mercado, de oferta/demanda. A função de mercado do Provão é muito discutível e do ponto de vista pedagógico ele não tem valor.

JU – O Provão, então, não pode ser visto como avaliação?
Dias – Na literatura, instrumentos como o Provão são chamados de pseudo-avaliação ou de “quase-avaliação”. Estaria mais na instância do controle, da averiguação, da verificação. A avaliação de educação, necessariamente, tem que pôr em questão e produzir significados complexos da área e não simplesmente se ater a uma única faceta. A aprendizagem não se avalia em nível nacional. É um fenômeno que ocorre com os indivíduos em determinadas situações concretas de sua vida. Portanto, só poderia ser avaliada nessa situação concreta e com todas as suas limitações. Uma prova aplicada nacionalmente não tem condição de fazer uma avaliação da aprendizagem. Quanto muito, pode fazer uma verificação de desempenho, ou seja, aquilo que alguém pode demonstrar numa determinada circunstância. Mudando essa circunstância, o desempenho inclusive passa a ser outro.

JU - Em seu livro, há uma associação entre os procedimentos adotados pelo Provão e a questão ética. O senhor poderia explicitá-la?
Dias – A questão ética está diretamente relacionada à questão do rigor. Até então, estou falando que não existe muito rigor do ponto de vista técnico-científico no Provão. A sua pergunta me leva a considerar o ponto de vista ético; ele, o Provão, não é justo. Produz injustiça. Não leva em conta as disparidades regionais, a desigualdade individual, mas é injusta sobretudo porque produz uma maior competição individual. Trata-se de um instrumento que aprofunda a ideologia do sucesso individual em detrimento da solidariedade, de todos os valores mais humanísticos – o respeito à alteridade, às diferenças. A educação passa a ser vista como mercadoria. O Provão é um instrumento do mercado educacional.

JU – O que há de diferente entre os primeiros movimentos da privatização da educação, especificamente após a reforma de 1968, e os registrados agora?
Dias – A privatização da educação brasileira começou, de uma forma mais programática, com os governos militares. Mas havia duas coisas muito importantes na Reforma Universitária de 68. Primeiro, o conceito de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão, coisa que se está perdendo, pois agora houve uma ruptura, na qual você pode escolher o tipo de instituição que você quer criar. Dá para afirmar inclusive que há hoje uma tendência a atribuir a uma instituição educativa sobretudo os fins mercadológicos. Perdeu-se, em boa parte, o sentido de função pública da educação. Mesmo nos governos militares, com todos os seus equívocos, havia ainda esse sentido de nação. Havia a pressão pela expansão, que era grande; digamos que era necessário que o setor privado se encarregasse de ajudar o setor público, mas sem perder sua função no projeto de desenvolvimento nacional e sem perder de vista que a universidade se constituía de ensino, pesquisa e extensão de modo indissociável. Nos anos 80, houve a criação do Grupo de Estudos da Reforma da Educação Superior, o famoso Geres, isso já no começo do governo Sarney, em 1985, quando já se colocava alguma coisa que veio se tornar realidade nos anos 90, especialmente no governo FHC. A idéia, a matriz de algo parecido com o Provão, já estava proposto lá no Geres, como instrumento de “mensuração” da qualidade. Outro fator importante a mencionar é a modernização.

JU - Quais foram seus efeitos na educação?
Dias – Penso especialmente no processo de urbanização. A saída do campo para as cidades acabou gerando uma pressão para maior escolarização. Alguns anos depois, esses estudantes chegaram ao nível médio e, depois, ao superior. Isto, somado às necessidades trazidas pela globalização econômica, na qual o emprego requer mais escolaridade, exigiu que alguma coisa tivesse de ser feita para atender à crescente demanda. E a opção do governo Fernando Henrique foi pela abertura, quase que livre, dos cursos. Os três pilares da política do MEC, para a Educação Superior, em parte colocada já pelo próprio Banco Mundial, foram: a autonomia, a avaliação, e a qualidade. São três palavras com significação muito positiva, mas na realidade, dentro dessa política, autonomia significava liberdade de processo, ou seja, no limite, liberdade para abrir cursos, flexibilizar contratos e liberalizar a captação de recursos. Qualquer pessoa hoje pode abrir um curso superior, desde que esteja em dia com as obrigações fiscais. Até analfabeto pode. Depois, essas escolas seriam controladas pela avaliação. Veja que aqui a avaliação tem sentido de controle e não de melhoria, não de um processo que vai induzir melhoria pedagógica ou administrativa. Portanto, é um contraponto da autonomia, podendo mesmo suprimir a autonomia. O controle é feito pelo Provão, que prioriza o produto. Então, seria liberdade quanto ao processo, e controle do produto e do resultado. Nessa lógica, o resultado quantificável, comparável, objetivável seria a expressão da qualidade e esta poderia ser medida e produzir ranqueamentos do tipo “A”, “B”, “C”, D e E. A “qualidade” seria expressa por índices como aumento de matrículas ou de titulação etc.

JU - Mas esses indicadores não atestam de fato essa melhoria?
Dias - Isso ainda não é qualidade. O responsável pela melhoria da formação docente e pela produção de pesquisa é basicamente a universidade pública e algumas poucas universidades privadas. As novas instituições de ensino não acrescentaram praticamente nada. Na verdade, o processo de construção da qualidade universitária vem de algumas décadas. A pós-graduação brasileira, o regime de tempo integral, a criação de laboratórios, a política de pesquisa, tudo isso vem dos anos 60. Sem dúvida, na América Latina, o Brasil não é apenas pioneiro como também o principal país em termos de pesquisa e pós-graduação.

JU – Qual seria então o modelo ideal de avaliação?
Dias – Um modelo que a Comissão Especial de Avaliação, criada pela SESu, acaba de propor entende a educação como fenômeno complexo. Quando falo em complexidade, estou me referindo à complexidade técnica, à complexidade científica mas também, e sobretudo, à complexidade humana. São muitos os interesses e valores em disputa na sociedade. Propomos uma mudança de paradigma, de concepção. Pode-se até utilizar os mesmos instrumentos anteriores, a prova, por exemplo, mas dentro de uma outra filosofia, de outro objetivo. E cada instrumento deve estar sempre articulado a um conjunto de outros instrumentos e fatores. A questão da complexidade é, portanto, paradigmática. Não se trata de ficar simplesmente acrescentando instrumentos de controle ou verificação. Avaliação é uma atitude filosófica que cria metodologias para atender determinados fins e objetivos e tudo isso de uma forma integrada. É preciso criar um sistema de educação superior, coisa que verdadeiramente ainda não há no país.

JU – Alicerçado em que modelo?
Dias – Temos instituições isoladas que não constituem um sistema. A avaliação seria o motor desse sistema de educação, e lhe daria coerência. É preciso entender que educação é muito mais do que o ensino, que a avaliação é muito mais do que controle. A questão de valores é fundamental em educação. Educação não se faz apenas num determinado momento, o tempo da educação é um tempo total, portanto não pode ser avaliada só fotograficamente, em tempo estático. É importante ver o que se agrega, ou seja, o desenvolvimento, as inovações, os dinamismos. Mas, sobretudo, não deixar de tocar na questão fundamental da educação, que é a formação – o seu valor humano e social. A formação integra um conceito muito mais amplo do que o conceito de treinamento e de capacitação profissional, embora isso também seja importante. Falo da formação do ser humano em seus múltiplos sentidos, da polissemia da vida humana.

JU - Não há algo de utópico nessa busca pelo polissêmico num campo sempre sujeito às ingerências políticas?
Dias – Sair de um paradigma de controle significa sair de um paradigma mono-referencial para um de múltiplas referências. É preciso sair de uma significação única, que se traduz através de conceitos, ou de uma nota, para o mundo polissêmico de culturas, de valores, de diversidade. Por isso não posso ficar só com o ensino. Tenho que ver o ensino articulado com a pesquisa; tenho que ver a pesquisa vinculada a seus impactos, a sua função social, além de sua própria vinculação com a ciência; tenho que ver o sentido social da formação que se está dando na universidade. E assim por diante. A educação tem sempre uma dimensão utópica, de projeto, de futuro.

JU – Nos dois últimos congressos de leitura e de educação, ambos realizados na Unicamp, o foco de boa parte dos participantes esteve voltado para essas questões levantadas pelo senhor. Existe algo de novo nisso ou seria uma espécie de resistência aos modelos predominantes?
Dias – Infelizmente, esta sua segunda hipótese é mais real. Vejo como uma necessidade do mundo todo, não só da educação, essa tendência em recuperar valores que estão um pouco perdidos, que estão em segundo plano. A economização da vida, essa tendência a reduzir e colocar no centro de tudo o valor econômico, fez com que a humanidade tenha perdido um pouco dos seus valores mais fundamentais, mais primordiais, mais permanentes. Claro que a educação é o lugar onde isso vai repercutir de uma forma mais forte. A função da educação é exatamente trabalhar esses valores, os processos civilizatórios. Educação é acrescentar mais civilização à vida humana, tanto no plano individual como no coletivo. Na medida que esses valores primordiais estão sendo colocados em segundo plano, em virtude do crescimento dessa funcionalização, evidentemente que a educação vai se preocupar com isso. Acho, em primeiro lugar, que não há muito interesse nos governos do mundo de alterar substancialmente essa ordem vigente – seja do neoliberalismo, seja do neoconservadorismo, que são linhas que retomam a mesma lógica da conservação. Os governos estão muito presos a esses interesses. Por outro lado, acho que a formação dos educadores tem deixado muito a desejar.

JU – Em que sentido?
Dias – O professor perdeu valor dentro dessa lógica utilitarista e individualista. Parece que a educação tem valor nos discursos, mas aqueles que são responsáveis pela prática, os professores principalmente, carecem de uma formação mais ampla, até porque têm uma remuneração muito baixa. Trata-se de uma questão muito problemática.

JU – A competitividade estaria no elenco de problemas?
Dias – Sim. Obviamente aqueles que têm os melhores instrumentos, os mais ajustados a essa ótica do utilitário, e isso dentro de uma instituição privada tem peso, vão sair ganhando. A competitividade no mercado educacional é igual à do mercado empresarial.

JU – Há canibalização na área?
Dias – Sim. É preciso criar um código de ética. A avaliação deveria levar em conta esses valores. Por exemplo, quais instituições estão preocupadas com uma formação mais integral do ser humano? Como cumprem sua responsabilidade social? A avaliação deveria ter o papel importante de valorizar aquilo que é fundamental na formação e importante para o desenvolvimento social. O conceito da formação e de qualidade tem de ser novamente discutido. Qualidade em educação hoje é um conceito totalmente dominado pela noção do mercado.

JU – O que preconiza a Comissão Especial de Avaliação, presidida pelo senhor?
Dias – Sinaes é uma sigla para Sistema Nacional de Avaliação de Educação Superior. Com isso já estamos sinalizando, sem querer fazer trocadilho, a idéia de que a avaliação deve ser, ela própria, um conjunto de instrumentos e procedimentos com base numa concepção global que produza também efeitos articulados com essa metodologia, mas também que ela possa colaborar centralmente com a construção de um sistema de educação superior mais coeso e mais coerente e com uma função social mais definida, que de alguma forma também esteja vinculada a um projeto de nação.

JU – O senhor acha que a proposta é factível nesse momento de transição?
Dias – Creio que tudo isso é um pouco frágil no Brasil, mas esse sistema de avaliação tem um pouco essa pretensão de ajudar a construir um sistema de educação superior que esteja mais voltado ao social, ao desenvolvimento do país. Passa necessariamente pelo desenvolvimento técnico e científico e pelo fortalecimento dos valores humanos. A avaliação é um processo de reflexão, de melhoria, de aperfeiçoamento e de produção de sentido. A avaliação é, antes de mais nada, um questionamento sobre o significado das ações praticadas dentro da educação. Ela precisa se articular com a regulação, com o dever que o Estado tem de assegurar a qualidade da educação superior, não permitindo que ela se torne algo descontrolado. É preciso haver um permanente acompanhamento no campo regulatório. Que a avaliação seja vinculativa na regulação, ou seja, que todos os atos e processos de regulação tenham por base os resultados de avaliações. Os agentes da comunidade universitária precisam se sentir co-responsáveis pela educação superior e, portanto, também protagonistas da avaliação. Eles não podem ser apenas objetos da avaliação. Que todos sejam avaliados, mas que todos também possam ser avaliadores, cada qual a seu modo. Só posso ser co-responsável por alguma coisa da qual eu participo. Se não tenho oportunidade ou chance de agir como avaliador, também não sou responsável pela construção da qualidade.

JU – Quanto tempo foi consumido neste estudo?
Dias – Essa comissão especial de avaliação trabalhou de abril a final de agosto. Foram quatro meses de trabalho. Era formada por 21 pessoas, sendo professores, gestores e teóricos que já trabalharam em avaliação em educação superior e mais três estudantes representando a UNE. A comissão foi criada pela Secretaria de Educação Superior, a SESu.
Esta comissão saiu convencida de ter produzido um consistente projeto de avaliação, vinculado a um projeto de educação superior. A elaboração deste documento levou em conta manifestações de 38 entidades da sociedade civil, desde Andes, Crub, CUT, CGT, associações científicas, enfim houve um amplo processo de audiências públicas. Isso está consolidado em documentos. A maior parte dessas entidades pedia justamente que fosse criado um sistema mais amplo, que fossem avaliadas as diversas dimensões institucionais e que fosse levada em conta a função social da educação superior. Isso está contemplado no documento. Não sei se o ministro vai acatar ou não. É uma pergunta que tem de ser feita a ele. Espero que sim, mas acho que há também lobbies fortíssimos, a começar pela grande imprensa.

JU – Em que medida?
Dias – O Provão é um instrumento fácil de trabalhar e que traz muito recurso, muito dinheiro, muito impacto na divulgação dos resultados.

JU – Há estimativas de quanto se gasta em publicidade?
Dias – A publicidade em educação brasileira envolve cerca de R$ 420 milhões por ano. É muito dinheiro. E o Provão tem uma grande participação nisso. Nós temos discutido essa proposta em diversas universidades e entidades. Evidentemente que há muitas sugestões e pontos de dúvida que têm de ser trabalhados. Mas a aceitação da idéia básica é muito boa e positiva. Agora, é preciso dizer que muitos professores preferem deixar como está. O Provão é um instrumento essencialmente conservador. Todo controle é conservador. Ele apenas quer verificar se há conformidade entre uma norma preestabelecida, escrita ou não, e a realidade praticada.

JU – Quais seriam os efeitos desta acomodação?
Dias – Nas grandes universidades, alguns professores estão acomodados com esta visão. Eles não se sentem incomodados com uma avaliação, eles não precisam fazer absolutamente nada. Eles já têm os melhores alunos que quase sempre vão ter os melhores resultados no Provão. Com isso, eles podem até usar a grife do bom conceito – “A”, “B”. A prova acaba deixando de lado toda a questão da inovação, das fronteiras do conhecimento, da interdisciplinaridade, da cooperação entre áreas. Ela congela um determinado currículo e faz com que todas as escolas superiores procurem trabalhar aquele currículo congelado. Há um empobrecimento generalizado, que inibe as iniciativas de questionamento e reflexão, ou seja, de avaliação.

JU – Números recentes divulgados pelo IBGE indicam que são abertas cerca de quatro escolas superiores por dia no Brasil. O que o senhor acha dessa proliferação de instituições?
Dias – Isso indica que a abertura é totalmente facilitada e não há acompanhamento. Os cursos são quase que automaticamente reconhecidos porque não há instrumentos mais consistentes para regular a educação superior. A legislação criada nos últimos anos, especialmente após a LDB de 1996, permite aos centros universitários a abertura de qualquer curso sem que haja uma aprovação prévia. No caso de centros e universidades, que são autônomos, a autorização não é atribuição do MEC. A questão não é diminuir o crescimento, mas sim aumentar a qualidade. As instituições, de acordo com o que estamos propondo com o Sinaes, teriam que demonstrar a sua razão de ser.

JU – Há demanda para isso?
Dias – Aí há uma contradição. A demanda existe realmente, mas há limites econômicos. Hoje só há mais espaço de crescimento para as classes C e D. O nível de inadimplência é muito alto, está entre 30% e 40%. Há um mercado possível para as classes C e D, mas os cursos para se viabilizarem teriam de ser rápidos e não poderiam ultrapassar os R$ 200 de mensalidade.

JU – O Provão também é privatizado?
Dias – O instrumento do Provão é elaborado por uma agência privada. E é claro que isso tem um custo altíssimo, por volta de R$ 35 milhões e hoje só atinge a um terço dos cursos, coisa de 4,5 mil num total de 14.800. Poderíamos pensar em algo por volta de R$ 100 milhões se ele abrangesse todos os cursos. Ou seja, o Provão ainda não é universal e custa muito. O custo dessa avaliação é absurdo porque a avaliação está produzindo resultados absurdos. Se fosse uma coisa que produzisse resultados bons e confiáveis, o custo não deveria ser levado em conta tanto assim. É uma aberração distorcer os resultados e modelar a educação superior aos interesses do mercado.

JU – Qual é, na sua opinião, a conseqüência dessa relação?
Dias – Primeiro é que o sentido público da educação vai ser perdendo. Passa a não haver fronteiras muito claras entre uma instituição pública e uma instituição privada de nível reconhecido. Segundo, porque a área de humanidades, que não tem apelo utilitário, em geral, vai se desvalorizando, vai se enfraquecendo e tem o seu futuro comprometido. A carreira passa a ficar desinteressante. Com isso, a universidade passa a ter um desequilíbrio estrutural na questão do poder. Quer dizer, perde força como área de conhecimento e de valor social e, portanto, perde também peso na divisão do poder interno da universidade. Isso acaba reforçando essa mentalidade economicista. Aquilo que é valor primordial para o homem, passa a segundo ou terceiro plano. E aí há uma inversão de valores. O valor econômico, o lucro, o sucesso e o dinheiro, que seriam secundários, passam a ser o principal. O conhecimento desinteressado, que também foi um dos valores da universidade, se enfraquece.

JU – Dá para precisar quando exatamente esse movimento teve início?
Dias – O que a literatura chama de privatização branda, ou de quase-mercado, é um fenômeno mundial que começou faz tempo, mas teve um momento marcante a partir de Margareth Tatcher, nos anos 80. Em discurso pronunciado logo que assumiu, em 1979, ela disse que a universidade era pouco produtiva, gastava muito e não tinha utilidade para a indústria e para o comércio. Isso deveria mudar. Começou então a predominar essa mentalidade de mercado. Todo o financiamento passou a ser competitivo. Embora isso se justifique do ponto de vista do rigor do uso dos recursos públicos, por outro lado muitas pesquisas que não tinham utilidade mercadológica deixaram de ser produzidos.

JU – Até que ponto as políticas públicas são afetadas?
Dias – A continuar nesse ritmo atual, brevemente esse “quase” do quase-mercado vai desaparecer. A partir de 2005, por exemplo, a educação vai ser considerada formalmente pela Organização Mundial do Trabalho como uma mercadoria. Isso significa que qualquer instituição nossa vai estar aberta ao mercado, não só nacional como também internacional. Qualquer pessoa poderá ter uma franquia, como se fosse um posto de gasolina... Você poderá ter uma escola com o dinheiro vindo de qualquer parte do mundo. Isso significa sobretudo que o país perde autonomia quanto a determinar sua política educacional. As nações ficarão sujeitas ao jogo de mercado. E obviamente que a educação vai se tornando cada vez mais cara, em razão dos avanços técnico-científicas. As instituições terão de mostrar cada vez mais eficiência empresarial, e a pesquisa básica vai cedendo terreno ao conhecimento útil e de imediata aplicação.

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