O território livre da música
LUIZ
SUGIMOTO
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A historiadora Daniela Ribas Ghezzi: mergulho
na efervescência musical paulistana |
Sem a dicção de quem
educou a voz musicalmente, mas jovem demais para ter
testemunhado tudo aquilo, Daniela Ribas Ghezzi conta
que tocava violão na noite de Franca quando
o namorado lhe apresentou discos do Língua
de Trapo, Premê, Rumo, Itamar Assumpção,
Arrigo Barnabé e Tarancón. Eles faziam
parte da geração de músicos que,
entre 1979 e 1985, proclamaram sua independência
sobre o palco do teatro e sob o selo da gravadora
do Lira Paulistana. O Lira instalou-se na Praça
Benedito Calixto, dentro do território da contracultura
em São Paulo, que ignorava a fronteira demarcada
pela Rua Cardeal Arcoverde entre os bairros de Pinheiros
e Vila Madalena.
Daniela ouviu e gostou. Para sua
graduação em história pela Unesp
de Franca, produziu uma monografia sobre o Lira Paulistana
e outra gravadora independente do período,
o Canto Livre. Para seu mestrado em sociologia no
Instituto em Filosofia e Ciências Humanas (IFCH)
da Unicamp, orientado pelo professor Marcelo Ridenti,
retornou ao Lira, analisando a evolução
da indústria fonográfica brasileira
e o papel de empresários, produtores e artistas
independentes frente ao poder instituído na
produção musical.
A indústria fonográfica passou por prolongada
crise, que veio do início dos anos 1970 até
a virada para os anos 80, com queda acentuada no consumo
de discos e falta de novos talentos. Antes,
movimentos musicais como a bossa nova e o tropicalismo
chegaram à mídia fonográfica
por meio dos grandes festivais. O público via
o artista e esperava ansiosamente para comprar o disco.
As gravadoras se apropriaram desta exposição
e elaboraram esquemas de distribuição
nacional. Era um momento em que se consumia muita
música e o Brasil chegou ao quinto lugar no
mercado mundial, lembra Daniela Ghezzi.
No
final dos anos 70, segundo a historiadora, a MPB foi
caindo em monotonia, deixando de ser tão criativa
e jovial. O tropicalismo já não
era tão tropicalista e passamos a ouvir os
bolerões da Bethânia. As pessoas perceberam
que não havia novos talentos, tantas novidades,
exemplifica. Veio ainda a crise do petróleo,
afetando a produção mundial devido ao
encarecimento das matrizes de vinil.
A crítica de Daniela Ghezzi está no
fato de que, mesmo assim, as grandes gravadoras não
ousavam, apostando nos batidos catálogos para
sobreviver à crise. Quanto mais difícil
a situação, mais conservadoras as estratégicas
de produção. O mercado se fechou e ficou
cada vez mais difícil gravar numa Warner, Universal,
Sony, EMI. É certo que havia uma postura dos
músicos independentes contrária ao sistema,
mas eles certamente gravariam em transnacionais desde
que a proposta não fosse indecente. Luís
Tatit, do Premê, chegou a mandar carta às
gravadoras, diante de um boato de que procuravam por
coisas novas, mas não recebeu a mínima
proposta, acrescenta.
Espaço alternativo
O Lira Paulistana surgiu como um espaço
para apresentação de peças teatrais
e shows de cantores e bandas da cultura alternativa.
Estavam todos em seu habitat. A Vila Madalena já
era marcada pela militância hippie, que buscava
uma sociedade mais justa mas sem inclinações
para a política partidária. Em outubro
de 1979, quando ouviram a música de Itamar
Assumpção no festival da Feira da Vila,
Wilson Souto Jr. e Chico Pardal, proprietários
do Lira, decidiram gravar um disco do compositor.
Precisaram captar recursos de particulares para
produzir Beleléu, em 1980. A partir
daí começaram as atividades de gravação,
conta Daniela Ghezzi.
Nos depoimentos à pesquisadora,
Souto Jr. e Pardal preocupam-se em diferenciar o Lira
Paulistana das demais gravadoras quanto aos procedimentos
de gravação e direção
artística. Eles enaltecem a liberdade
dada ao artista e o fato de que o pouco dinheiro obtido
era dividido de forma eqüitativa entre gravadora
e músicos. Era algo realmente inovador para
a época, quando um bom contrato com a grande
gravadora rendia no máximo 10% de capa,
diz a historiadora.
O Lira viveu o auge de produtividade
e efervescência entre 1980 e 83, emprestando
seu selo a artistas como Cida Moreira, Eduardo Gudim
e Eliete Negreiros, além dos grupos Premê
e Rumo. O Premê chegou a vender 20 mil
discos independentes e não conseguiu repetir
esta vendagem quando foi para a EMI, afirma
Daniela. A dissertação inclui artistas
que nunca gravaram pelo Lira, mas que faziam parte
da população flutuante, como o grupo
Tarancón que testou o palco do teatro
ou Vânia Bastos, então vocalista
de Arrigo Barnabé e que depois se apresentou
com Itamar Assumpção. Arrigo Barnabé,
que sequer fez shows na casa, é inserido na
pesquisa por estar identificado com esta geração,
tendo gravado Clara Crocodilo, o mais vendido dentre
os independentes e que vende até hoje.
Controvérsias
Um acordo de distribuição assinado com
a Continental, em 1982, gerou as primeiras controvérsias
sérias entre proprietários do Lira e
artistas. Wilson Souto argumenta que pretendia
sanar um problema grave para os independentes, a distribuição.
Ele conseguiu preservar os contratos diferenciados
para os músicos, como os percentuais sobre
os lucros e a posse dos fonogramas. Os músicos
começaram a gravar em estúdios melhor
equipados e os discos ganharam o selo Lira-Continental,
relembra Daniela.
Mas o casamento inusitado quebrou
laços de credibilidade e a situação
se agravou com o fracasso na distribuição.
Habituada a trabalhar com a chamada música
brega (sertaneja e romântica), a Continental
não conseguia repassar aquele produto diferenciado
para as lojas populares. Além disso,
Wilson Souto foi contratado pela Continental, com
a função de viajar pelo Brasil atrás
de músicas de raiz, porque a empresa tentava
contratar músicos importantes sem sucesso.
Os artistas viram nisso um abandono da proposta original,
afirma a pesquisadora.
Sobreviventes O sócio
Chico Pardal, que assumiu o Lira Paulistana, recorda
que os músicos perderam a motivação
para gravar e buscaram outros caminhos, ao mesmo tempo
em que cessou a oferta de talentos e o movimento foi
minguando. A casa fechou as portas no final de 1985,
quando a freqüência era majoritariamente
de fãs do rock, heavy metal e punk, que patrocinavam
mais brigas que retorno financeiro.
Daniela Ghezzi ressalta que, dentre
os músicos independentes que entrevistou, ninguém
pretendia bater recordes de venda e ficar milionário.
Ela seguiu o rastro de alguns deles e constatou que
a maioria permanece independente. Bem ou mal,
todos continuam na ativa. Turcão, do Tarancón,
toca até hoje em um restaurante da Rodovia
Raposo Tavares. Creio que o grande mecanismo de divulgação
de seus trabalhos era o teatro. Quando perderam o
palco, perderam seu veículo original, não
faziam mais ferver.
Feito em casa
O primeiro disco independente,
tomado como referência por Daniela Ghezzi,
é de Antonio Adolfo, de 1972. A capa
é um saco de supermercado, carimbado
com o título Feito em Casa.
Ocorreram outras tentativas esporádicas
de fugir do esquema da grande indústria,
mas a pesquisadora chegou à conclusão
de que a experiência do Lira Paulistana
gerou uma mudança fundamental na estratégia
das grandes gravadoras. Se não
foi a causa, certamente contribuiu decisivamente
para uma nova tendência no mercado brasileiro,
justamente a de valorizar a atitude independente,
assegura.
Daniela Ghezzi explica
que uma produção independente
só se torna possível com a autonomização
de etapas produtivas, como a montagem de um
estúdio, cujo custo era inviável
nos anos 1950. O avanço tecnológico,
porém, viabilizou um bom estúdio
mesmo que os equipamentos não sejam de
ponta. Os independentes passaram a criar
seu próprio nicho e agora procuram as
grandes gravadoras não para ser incorporados,
mas para negociar a distribuição,
afirma.
Pouco atenta a esta
tendência nos anos 1980, agora a indústria
percebe que é muito mais prático
esperar o artista se auto-produzir arcando
com os riscos como a falta de retorno financeiro
e formar seu mercado vendendo discos
na porta de shows, para só então
cooptá-lo. Hoje temos centenas
de gravadoras independentes. E elas, obviamente,
não seguem a proposta do Lira, ao contrário:
ser independente significa o caminho mais curto
para chegar à indústria e ao sucesso,
finaliza.
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