Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 235 - de 27 outubro a 2 novembro de 2003
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O território livre da música

LUIZ SUGIMOTO

A historiadora Daniela Ribas Ghezzi: mergulho na efervescência musical paulistana

Sem a dicção de quem educou a voz musicalmente, mas jovem demais para ter testemunhado tudo aquilo, Daniela Ribas Ghezzi conta que tocava violão na noite de Franca quando o namorado lhe apresentou discos do Língua de Trapo, Premê, Rumo, Itamar Assumpção, Arrigo Barnabé e Tarancón. Eles faziam parte da geração de músicos que, entre 1979 e 1985, proclamaram sua independência sobre o palco do teatro e sob o selo da gravadora do Lira Paulistana. O Lira instalou-se na Praça Benedito Calixto, dentro do território da contracultura em São Paulo, que ignorava a fronteira demarcada pela Rua Cardeal Arcoverde entre os bairros de Pinheiros e Vila Madalena.

Daniela ouviu e gostou. Para sua graduação em história pela Unesp de Franca, produziu uma monografia sobre o Lira Paulistana e outra gravadora independente do período, o Canto Livre. Para seu mestrado em sociologia no Instituto em Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, orientado pelo professor Marcelo Ridenti, retornou ao Lira, analisando a evolução da indústria fonográfica brasileira e o papel de empresários, produtores e artistas independentes frente ao poder instituído na produção musical.
A indústria fonográfica passou por prolongada crise, que veio do início dos anos 1970 até a virada para os anos 80, com queda acentuada no consumo de discos e falta de novos talentos. “Antes, movimentos musicais como a bossa nova e o tropicalismo chegaram à mídia fonográfica por meio dos grandes festivais. O público via o artista e esperava ansiosamente para comprar o disco. As gravadoras se apropriaram desta exposição e elaboraram esquemas de distribuição nacional. Era um momento em que se consumia muita música e o Brasil chegou ao quinto lugar no mercado mundial”, lembra Daniela Ghezzi.

No final dos anos 70, segundo a historiadora, a MPB foi caindo em monotonia, deixando de ser tão criativa e jovial. “O tropicalismo já não era tão tropicalista e passamos a ouvir os bolerões da Bethânia. As pessoas perceberam que não havia novos talentos, tantas novidades”, exemplifica. Veio ainda a crise do petróleo, afetando a produção mundial devido ao encarecimento das matrizes de vinil.
A crítica de Daniela Ghezzi está no fato de que, mesmo assim, as grandes gravadoras não ousavam, apostando nos batidos catálogos para sobreviver à crise. “Quanto mais difícil a situação, mais conservadoras as estratégicas de produção. O mercado se fechou e ficou cada vez mais difícil gravar numa Warner, Universal, Sony, EMI. É certo que havia uma postura dos músicos independentes contrária ao sistema, mas eles certamente gravariam em transnacionais desde que a proposta não fosse indecente. Luís Tatit, do Premê, chegou a mandar carta às gravadoras, diante de um boato de que procuravam por coisas novas, mas não recebeu a mínima proposta”, acrescenta.

Espaço alternativo – O Lira Paulistana surgiu como um espaço para apresentação de peças teatrais e shows de cantores e bandas da cultura alternativa. Estavam todos em seu habitat. A Vila Madalena já era marcada pela militância hippie, que buscava uma sociedade mais justa mas sem inclinações para a política partidária. Em outubro de 1979, quando ouviram a música de Itamar Assumpção no festival da Feira da Vila, Wilson Souto Jr. e Chico Pardal, proprietários do Lira, decidiram gravar um disco do compositor. “Precisaram captar recursos de particulares para produzir ‘Beleléu’, em 1980. A partir daí começaram as atividades de gravação”, conta Daniela Ghezzi.

Nos depoimentos à pesquisadora, Souto Jr. e Pardal preocupam-se em diferenciar o Lira Paulistana das demais gravadoras quanto aos procedimentos de gravação e direção artística. “Eles enaltecem a liberdade dada ao artista e o fato de que o pouco dinheiro obtido era dividido de forma eqüitativa entre gravadora e músicos. Era algo realmente inovador para a época, quando um bom contrato com a grande gravadora rendia no máximo 10% de capa”, diz a historiadora.

O Lira viveu o auge de produtividade e efervescência entre 1980 e 83, emprestando seu selo a artistas como Cida Moreira, Eduardo Gudim e Eliete Negreiros, além dos grupos Premê e Rumo. “O Premê chegou a vender 20 mil discos independentes e não conseguiu repetir esta vendagem quando foi para a EMI”, afirma Daniela. A dissertação inclui artistas que nunca gravaram pelo Lira, mas que faziam parte da população flutuante, como o grupo Tarancón – que testou o palco do teatro – ou Vânia Bastos, então vocalista de Arrigo Barnabé e que depois se apresentou com Itamar Assumpção. Arrigo Barnabé, que sequer fez shows na casa, é inserido na pesquisa por estar identificado com esta geração, tendo gravado Clara Crocodilo, o mais vendido dentre os independentes e que vende até hoje.

Controvérsias – Um acordo de distribuição assinado com a Continental, em 1982, gerou as primeiras controvérsias sérias entre proprietários do Lira e artistas. “Wilson Souto argumenta que pretendia sanar um problema grave para os independentes, a distribuição. Ele conseguiu preservar os contratos diferenciados para os músicos, como os percentuais sobre os lucros e a posse dos fonogramas. Os músicos começaram a gravar em estúdios melhor equipados e os discos ganharam o selo Lira-Continental”, relembra Daniela.

Mas o casamento inusitado quebrou laços de credibilidade e a situação se agravou com o fracasso na distribuição. Habituada a trabalhar com a chamada música brega (sertaneja e romântica), a Continental não conseguia repassar aquele produto diferenciado para as lojas populares. “Além disso, Wilson Souto foi contratado pela Continental, com a função de viajar pelo Brasil atrás de músicas de raiz, porque a empresa tentava contratar músicos importantes sem sucesso. Os artistas viram nisso um abandono da proposta original”, afirma a pesquisadora.

Sobreviventes – O sócio Chico Pardal, que assumiu o Lira Paulistana, recorda que os músicos perderam a motivação para gravar e buscaram outros caminhos, ao mesmo tempo em que cessou a oferta de talentos e o movimento foi minguando. A casa fechou as portas no final de 1985, quando a freqüência era majoritariamente de fãs do rock, heavy metal e punk, que patrocinavam mais brigas que retorno financeiro.

Daniela Ghezzi ressalta que, dentre os músicos independentes que entrevistou, ninguém pretendia bater recordes de venda e ficar milionário. Ela seguiu o rastro de alguns deles e constatou que a maioria permanece independente. “Bem ou mal, todos continuam na ativa. Turcão, do Tarancón, toca até hoje em um restaurante da Rodovia Raposo Tavares. Creio que o grande mecanismo de divulgação de seus trabalhos era o teatro. Quando perderam o palco, perderam seu veículo original, não faziam mais ferver”.

 

Feito em casa

O primeiro disco independente, tomado como referência por Daniela Ghezzi, é de Antonio Adolfo, de 1972. A capa é um saco de supermercado, carimbado com o título “Feito em Casa”. Ocorreram outras tentativas esporádicas de fugir do esquema da grande indústria, mas a pesquisadora chegou à conclusão de que a experiência do Lira Paulistana gerou uma mudança fundamental na estratégia das grandes gravadoras. “Se não foi a causa, certamente contribuiu decisivamente para uma nova tendência no mercado brasileiro, justamente a de valorizar a atitude independente”, assegura.

Daniela Ghezzi explica que uma produção independente só se torna possível com a autonomização de etapas produtivas, como a montagem de um estúdio, cujo custo era inviável nos anos 1950. O avanço tecnológico, porém, viabilizou um bom estúdio mesmo que os equipamentos não sejam de ponta. “Os independentes passaram a criar seu próprio nicho e agora procuram as grandes gravadoras não para ser incorporados, mas para negociar a distribuição”, afirma.

Pouco atenta a esta tendência nos anos 1980, agora a indústria percebe que é muito mais prático esperar o artista se auto-produzir – arcando com os riscos como a falta de retorno financeiro – e formar seu mercado vendendo discos na porta de shows, para só então cooptá-lo. “Hoje temos centenas de gravadoras independentes. E elas, obviamente, não seguem a proposta do Lira, ao contrário: ser independente significa o caminho mais curto para chegar à indústria e ao sucesso”, finaliza.

 


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