Tendências e perspectivas do processo político boliviano
ALDO DURÁN
Passadas três semanas da derrubada do governo Lozada pela poderosa pressão do movimento popular, o novo governo boliviano atravessa sérias dificuldades devido às múltiplas pressões internas e externas. Entre as pressões internas, estão as reivindicações socioeconômicas e políticas dos setores populares (distribuição de terras, consulta nacional para definir a exportação do gás, anulação da lei do gás, instauração de uma Assembléia Constituinte, entre outras). Já as reivindicações dos setores conservadores - grupos empresariais e os movimentos cívicos regionais - se contrapõem frontalmente às das grandes massas populares (defesa do "Estado de direito", bloqueio da consulta nacional sobre a exportação do gás e da Assembléia Constituinte, defesa da autonomia das regiões etc.).
Entre as pressões externas mais determinantes estão: a exigência de manutenção dos contratos com as multinacionais petrolíferas que operam no país (o que implica na não-mudança da lei de hidrocarbonetos, que visa a entrega dos recursos ao capital estrangeiro), a manutenção do combate ao narcotráfico (repressão militarizada contra o movimento camponês e cocalero), exigida pelo governo norte-americano e pelo FMI como requisito para adquirir novos empréstimos e ajuda econômica.
Diante dessa situação de incerteza reinante, cabe refletir brevemente sobre a conjuntura política do momento e sobre o desenlace futuro do atual processo político boliviano. É inegável que o conjunto do movimento popular saiu fortalecido politicamente nas jornadas do chamado "outubro negro". Os diversos setores populares organizados conseguiram unificar-se em torno do lema de "fora Goni assassino", cujo objetivo foi amplamente cumprido. Já o consenso sobre as quatro reivindicações fundamentais que desencadearam a chamada "guerra do gás" parece estar longe de se concretizar.
São elas: anulação das leis do gás e de segurança cidadã (que criminaliza o cidadão por participar de manifestações de rua contra o governo); consulta nacional-popular para definir a exportação do gás aos Estados Unidos; e a instauração de uma Assembléia Constituinte para refundar o país. O essencial da luta reivindicatória se sintetiza na derrogação da lei do gás e na instauração da Assembléia Constituinte. A primeira dificuldade séria que se percebe no interior do movimento popular é que nenhum setor tem clareza sobre como concretizar esses dois pontos essenciais isto é, os setores populares não têm um projeto definido para reformar a carta constitucional: o que existe seriam intermináveis pliegos (propostas) petitórios de cunho reformistas.
Entretanto, os setores representados pela central operária (COB), pela Coordenadora do Gás, pelas federações de moradores de El Alto (La Paz), bem como pelo movimento sem terra (MST), parecem defender a postura mais radical: a não-exportação do gás (o que implicaria a recuperação dos recursos energéticos do país e a nacionalização das empresas petrolíferas detentoras dos contratos leoninos outorgados pelos anteriores governos bolivianos e a defesa da industrialização desse produto) e a instauração imediata da Constituinte.
Já os setores camponeses liderados tanto pelo partido Movimento ao Socialismo (MAS, sob o comando de Morales) como pela confederação de trabalhadores camponeses (CSUTCB, sob o comando de Felipe Quispe, do Movimento Indígena Pachacuti - MIP), têm posturas divergentes. O último não defende a constituinte, e sim a refundação do país com base na nação indígena (aymara e quéchua). Já o cocalero Morales defende a imediata consulta popular sobre a exportação do gás e a instauração da Constituinte, porém este último objetivo tende a ser reivindicado a longo prazo, pois o interesse imediato do MAS seria tirar proveito da sua condição de partido de oposição com o fim de obter resultados eleitorais significativos no pleito municipal do próximo ano. Em suma, os interesses políticos deste partido tendem a ser eleitoreiros: querem conquistar o governo nas próximas eleições nacionais. O que significa a defesa da estratégia da continuidade democrática (alternância do poder).
Embora os setores populares mencionados (COB, CSUTCB, MAS, MIP, MST) tenham dado prazo de 90 e 180 dias ao governo para que este atenda as reivindicações das massas exploradas e empobrecidas (caso contrário, ameaçam derrubar o novo governo), a concretização dos dois pontos fundamentais é incerto. Os partidos políticos tradicionais, que dominam o parlamento, não estão interessados no referendo popular sobre o gás nem na instauração de uma Constituinte. Inclusive, tentam bloquear o pedido de instauração de um inquérito parlamentar feito sobretudo pelo MAS - contra Sanchez de Lozada pela morte de cidadãos inocentes durante seu governo.
Os setores conservadores e recalcitrantes (frações das classes dominantes), representados pelos empresários e latifundiários de Santa Cruz, estão empenhados em bloquear o referendo sobre o gás e a instauração da Constituinte, pois temem o avanço e a nova radicalização do movimento operário e popular apoiado numa nova carta constitucional, como se dera no governo Chavez, na Venezuela. Com o objetivo de incrementar sua influência política, o governo norte-americano e o FMI estão se apressando para fornecer apoio político e ajuda econômica ao governo boliviano, o que já se evidencia pelo discurso e intenções do próprio Mesa (e de seus ministros), de cumprir o mandato constitucional até agosto de 2007. E o argumento central é o de que o governo se apóia no Estado de direito, no cumprimento das leis constitucionais.
Isso implica que o governo não se distanciará do autoritarismo que vigorou nos anteriores governos, principalmente no governo Lozada: manutenção dos contratos de exploração e comercialização do gás detidos pelas firmas multinacionais petrolíferas que operam na Bolívia; luta contra o narcotráfico (ressurreição do plano "Dignidade" do governo Banzer, que visa a erradicação forçosa dos plantios de coca e a repressão militarizada contra camponeses e cocaleros) como condição sine qua non da ajuda econômica norte-americana para Bolívia.
Neste contexto, o governo Mesa está empenhado em buscar apoio político para culminar seu período constitucional. Os empresários, latifundiários e o comitê cívico de Santa Cruz já ofereceram apoio ao governo. Este deveria se pautar pela constituição vigente, ao mesmo tempo em que deveria punir com o rigor da lei toda oposição (o movimento popular). Quanto à consulta popular sobre a exportação do gás, é possível que esta se concretize no próximo ano, porém se prevê uma ampla manipulação governamental. O governo tenta ganhar tempo suficiente para elaborar uma proposta alternativa ao referendo defendido pelas classes populares, em direto alinhamento com os interesses das multinacionais petrolíferas e dos departamentos (estados) bolivianos produtores de gás (Santa Cruz e Tarija estão contra o referendo).
Podemos assim apontar três hipóteses sobre a tendência do processo político boliviano pós-jornadas de outubro. A primeira: permanência do governo Mesa até o fim do período (2007). O que implicaria a outorga de concessões socioeconômicas e políticas limitadas às massas populares, bem como um certo controle do avanço destas pelo governo e pelas frações da classe dominante, com ajuda político-militar do governo norte-americano. O país atravessaria momentos de relativa convulsão social provocados pelas manifestações populares permanentes e intermitentes. A segunda: pressão aguçada do movimento popular que obrigaria o governo e o parlamento a convocar a Assembléia Constituinte, ao mesmo tempo em que marca eleições nacionais para definir o novo governo, o que implicaria a permanência da convulsão social e instabilidade política. Finalmente, queda do governo Mesa causada pela permanente pressão das massas trabalhadoras e a imediata instauração de um governo popular comandado pelos setores mais organizados e combativos do movimento popular. O que implicaria novo acirramento das lutas de classes, convulsão social e nova fase de instabilidade política, provocada pelas classes dominantes.