Nas margens do rio São Francisco
MANUEL ALVES FILHO
Ao conferir de perto o drama dos nordestinos diante da seca, há cerca de 150 anos, o imperador Dom Pedro II afirmou que venderia as jóias da Coroa, se preciso fosse, para socorrer aquela gente. Ato contínuo, determinou que fossem iniciados estudos para verificar a viabilidade da transposição das águas do Rio São Francisco. Decorrido um século e meio, o projeto continua no plano das intenções das autoridades centrais. Nesse período, governos civis e militares executaram outros programas voltados para a "revitalização" da região do semi-árido. Foram registrados erros e acertos. Mas mesmo as ações exitosas, como a introdução da fruticultura irrigada, não foram suficientes para melhorar a qualidade de vida da população mais pobre, a mesma que sensibilizou o monarca. "Do ponto de vista do empreendedorismo, ocorreram alguns sucessos. Porém, no que se refere à questão da inclusão social, ainda há muito a ser feito", afirma o pesquisador José Vieira Camelo Filho, o Zuza, que está em vias de concluir uma tese de pós-doutorado intitulada "Rio São Francisco: Problemas e Soluções. Uma questão de políticas públicas".
Embora ainda sejam preliminares, uma vez que o estudo deverá estar encerrado apenas em fevereiro de 2004, as conclusões de Zuza sobre os avanços pontuais proporcionados pelas políticas públicas levadas a cabo no Vale do São Francisco nos últimos 50 anos estão bem fundamentadas. Além de valer-se de um aporte teórico consistente, o pesquisador, que é doutor em economia ambiental, promoveu uma expedição solitária que percorreu dezenas de municípios nordestinos, localizados desde a nascente até a foz do Rio São Francisco. Nesse périplo, o autor da tese teve a oportunidade de observar os avanços e conflitos gerados pelos programas governamentais. Mais do que isso, pôde colher a impressão dos próprios moradores sobre a situação atual da região. "Eu costumo dizer que conversei com todos os "pês" possíveis: prefeitos, pobres, pretos e prostitutas", conta Zuza.
Para compeender o estágio atual do povo e das cidades situadas no Vale do São Francisco, no entanto, é preciso fazer um recuo na história. Zuza lembra que a primeira ação concreta para a revitalização do semi-árido nordestino ocorreu com o advento da Constituição de 46. A Carta destinou, por um período de 20 anos, 1% do orçamento fiscal da União para aplicação no desenvolvimento da região. Dois anos depois, foi criada a Comissão do Vale do São Francisco (CVSF), encarregada de formular e executar os programas. "A pesar de contar com um volume significativo de dinheiro e de focar os principais problemas da região, a CVSF não obteve grande sucesso nas suas ações, em razão de dificuldades de ordem técnica e política", afirma o autor da tese. Segundo ele, a saúde e a educação foram os setores menos atacados pelos planos.
A CVSF atuou até 1967, quando foi criada a Superintendência do Vale do São Francisco (Suvale), também com o objetivo de desenvolver a região. O problema, porém, é que as ações já não contavam mais com recursos carimbados. Em outras palavras, os investimentos ficaram sujeitos aos humores do governo militar. "Os militares reduziram a atividade da CVSF e decidiram atuar, particularmente, em projetos de irrigação da agricultura e de colonização do Vale do São Francisco. O sucesso dessas intervenções, todavia, não foi grande", diz Zuza. Por fim, a CVSF foi sucedida, a partir de 1974, pela Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco (Codevasf), empresa que atua até hoje e está vinculada ao Ministério da Integração Nacional.
Conforme Zuza, a Codevasf obteve sucesso com o plano de introdução da fruticultura irrigada, sobretudo a partir do final da década de 70, no Sub-médio São Francisco. Em meados da década seguinte, parte da produção já estava sendo destinada à exportação. Isso, de alguma forma, revigorou a região, mas não foi suficiente para promover o resgate social da população mais carente, como apontam os movimentos populares locais. De acordo com o autor da tese, 51% da produção está nas mãos de empresas, ficando o restante aos cuidados de pequenos e médios agricultores. Além disso, o programa criou uma outra distorção. Muitos produtores rurais que lá atuam vieram de fora.
Pelos cálculos dos movimentos sociais do Vale do São Francisco, cerca de 30% dos agricultores da região venderam suas propriedades, inclusive para pessoas de outros estados. Isso aconteceu, conforme Zuza, justamente porque, com a sofisticação da produção, não sobrou lugar para camponeses analfabetos e sem grandes recursos financeiros para conquistar novos mercados. "É por isso que, do ponto de vista do empreendimento, esse projeto foi um sucesso. Entretanto, ele não foi capaz de cumprir a sua meta original, que era promover a inclusão social da gente mais sofrida daquele rincão", analisa.
A persistência do quadro de exclusão, diz o pesquisador, pode ser traduzida em números. Algo como 25% dos habitantes do Vale do São Francisco são analfabetos, isso sem falar nos que sabem assinar o nome, mas têm dificuldades para ler e escrever. Outro dado que ajuda a reforçar o cenário de subdesenvolvimento é a situação do saneamento na região. Segundo Zuza, somente cinco municípios têm esgoto tratado, o que traz impactos negativos não apenas para o meio ambiente, mas também para a saúde. Como se não bastasse, existe ainda o problema da concentração de terra. Conforme dados do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), 54% dos proprietários detêm algo como 4% das áreas agriculturáveis. Entretanto, um outro grupo, formado por apenas 0,1% dos produtores rurais, possui a mesma quantidade de terras.
Na opinião de Zuza, que iniciou sua pesquisa no Instituto de Economia (IE) e depois a transferiu para o Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp - "para ampliar o leque de abordagens e não se ater apenas ao aspecto econômico -, alguns problemas precisam ser fortemente atacados pelas políticas públicas que objetivem promover, de fato, a inclusão social de uma parcela importante da população do Vale do São Francisco. O primeiro deles, elenca, é a educação. Paralelamente, é necessário elaborar projetos que assegurem o desenvolvimento sustentado da região e que valorizem a cultura local. "Falta, ainda, estabelecer uma maior sintonia entre os ministérios a serem envolvidos no esforço (Minas e Energia, Turismo, Agricultura, Meio Ambiente, Economia etc), de modo a obter resultados mais significativos. Atualmente, essa integração ocorre, mas em situações pontuais", diz Zuza. Obedecidas essas premissas, o plano exigirá, ainda, disposição e dinheiro, ainda que este último não possa mais vir da venda do bens da Monarquia.
Transposição - De acordo com o autor da tese de pós-doutorado, que está sendo orientada pelo professor Ricardo Maranhão, do IFCH, a questão da transposição das águas do rio São Francisco é um assunto recorrente quando se discute um plano global de desenvolvimento do semi-árido nordestino. Como já foi dito, a primeira referência à obra surgiu ainda no Império. Ao longo da República, a intervenção também foi cogitada por vários governos, inclusive o atual. Os debates em torno do assunto sempre foram marcados por intensa polêmica. Mais recentemente, na gestão do presidente Fernando Henrique Cardoso, foi elaborado um projeto que previa investimento da ordem de US$ 5,2 bilhões para a execução dos trabalhos, num horizonte de 20 anos.
O governo de Luiz Inácio Lula da Silva tem promovido alterações no projeto. Cogita, inclusive, executar também a transposição das águas da Bacia do Tocantins, para suprir as necessidades da do São Francisco. As estimativas atuais dão conta de que as duas intervenções gerariam um investimento próximo de R$ 24 bilhões. Além disso, quando todos os canais do Rio São Francisco estiverem funcionando, eles gerarão um custo operacional de US$ 130 milhões ao ano. Esses números, assim como os eventuais impactos das obras para o meio ambiente e a situação socioeconômica da região, continuam sendo alvo de muitas divergências entre ambientalistas, políticos e lideranças comunitárias. A expectativa dos nordestinos é que as discussões não adiem as ações por mais 150 anos.