De Pedro I ao Quixote,
do IFCH ao ISCTE de Lisboa
EDGAR
DEDECCA
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Quadros no quarto Cervantes, onde nasceu e morreu
o imperador D. Pedro I |
Para quem
nunca viu, é uma enorme surpresa conhecer o
quarto onde nasceu e morreu o nosso imperador D. Pedro
I. Está no Palácio Nacional de Queluz,
situado a menos de meia hora de Lisboa. Ele é
mais conhecido como o quarto Cervantes, em homenagem
ao autor de D. Quixote. Qualquer brasileiro se deixa
levar pela encenação do imaginário
do primeiro imperador do Brasil a partir dos seus
próprios aposentos.
O quarto
de dormir impressiona, primeiramente por sua arquitetura.
Aparentemente, trata-se de um quarto circular, com
um domo; porém, observando-se os detalhes,
vê-se a quadratura de seu formato. Nas paredes
há inúmeras pinturas de cenas de D.
Quixote, sempre montado em um cavalo, como aliás
ficou imortalizada a figura de D. Pedro I.
Não
saberia dizer, no momento, se o pintor do quadro da
Independência do Brasil, Pedro Américo
de Almeida, se inspirou no quarto Cervantes na elaboração
de sua obra, mas são mais do que evidentes
as suas citações. Há no quarto
uma pintura que mostra Quixote ao cavalo sob o olhar
de homens negros pobres, que muito se assemelha ao
quadro da independência de Pedro Américo.
Alguns historiadores brasileiros chegaram a fazer
comparações entre as peripécias
de Pedro I, conhecido em Portugal como Pedro IV, e
as aventuras do herói literário espanhol
de Cervantes.
Lembro-me que quando criança
lia os livros do historiador Pedro Calmon, do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro. Meu
pai muito admirava suas obras, e nelas havia estas
alusões ao quixotismo do primeiro imperador
do Brasil, que se imortalizou como o rei cavaleiro.
As alusões ao herói D. Quixote são
inúmeras e pode-se dizer que as aventuras do
imperador não ficam nada a dever ao herói
de Cervantes. D. Pedro, quando criança, provavelmente
acalentando as aventuras de Quixote nas noites do
palácio de Sintra, prefigurou em suas fantasias
as façanhas mirabolantes daquele imortal personagem
da literatura ibérica.
Há dois anos me dedico ao
estudo dos enredos históricos e literários
formadores da identidade nacional, na composição
das imagens do pai e do filho. Esta encenação
do imaginário de D. Pedro no quarto Cervantes
vem se somar aos meus outros indícios de que
muitos dos enredos da identidade nacional estão
marcados por este tipo de composição
tragicômica da grande novela de Cervantes. Que
não me deixem enganar As Memórias Póstumas
do Sargento de Milícias, de Manuel António
de Almeida, e Triste Fim de Policarpo Quaresma, de
Lima Barreto.
Nesta semana, nos dias 13, 14 e
15 de novembro, teremos um excelente colóquio
aqui próximo ao ISCTE (IXQTÊ). Trata-se
do Colóquio Internacional História
Social das Elites (http://www.ics.ul.pt/agenda/segundocoloquio.htm),
patrocinado pelo Instituto de Ciências Sociais
da Universidade de Lisboa e que contará com
a presença de pesquisadores de Portugal, Espanha
e Brasil. Este colóquio terá inúmeras
sessões de debates, dividindo-se em quatro
áreas temáticas: 1. Elites metropolitanas
e elites ultramarinas nos impérios ibéricos
do Antigo Regime (século XVIII); 2. Oligarquia
e Caciquismo nos Estados Liberais do século
XIX; 3. Poder e Resistência nos Regimes Autoritários
do Século XX; 4. A Condução das
Transições para a Democracia no Sul
da Europa e no Brasil (c. 1970-c. 1980).
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Quadros no quarto Cervantes, onde nasceu e morreu
o imperador D. Pedro I |
Digo próximo, não
apenas por questão de localização,
já que os prédios do ISCTE e do ICS
são vizinhos, mas porque existem muitas afinidades
entre estes dois institutos de ciências sociais.
Aliás, poderia dizer que eles se assemelham
muito ao projeto intelectual formador do IFCH da Unicamp.
Ambos os institutos se formaram durante os anos do
salazarismo em Portugal e tinham como projeto intelectual
pensar a sociedade portuguesa numa dimensão
pluridisciplinar.
Lembro-me muito bem de meus primeiros
anos no IFCH e o quanto esta expectativa também
se assemelhava às nossas. Também no
Brasil, vivíamos sob regime militar na década
de 70 e as ciências sociais eram confundidas
com os ideais do socialismo. O mesmo ostracismo vivido
pelas ciências sociais brasileiras nos anos
70 foi experimentado também pelos cientistas
sociais portugueses. Quando me refiro às ciências
sociais, não me limito à sociologia,
mas a todas as ciências sociais, assim entendidas
naquela época, nas quais se incluíam
também a antropologia, a ciência política,
a história, a economia e, por fim, a filosofia.
Deste modo estava estruturado o
IFCH, quando lá cheguei em 1977. Pensávamos,
de fato, em uma ciência social multidisciplinar.
Por este motivo, a progressiva fragmentação
do IFCH foi tão difícil e dolorosa.
Começando pela departamentalização
e terminando com a separação das áreas,
como foi o caso da criação do Instituto
de Estudos da Linguagem e do Instituto de Economia.
Este não foi o caso do ISCTE e do ICS. Nascidos
praticamente na mesma época, aos poucos se
diferenciaram em suas carreiras acadêmicas,
sem contudo perderem a identidade multidisciplinar
da formação original.
Tanto isso é verdade, que
o atual presidente do ISCTE, o simpático sociólogo
João Ferreira de Almeida, é um antigo
pesquisador do ICS. Assim também, inúmeros
professores do ISCTE dão aulas e pesquisam
no ICS. A diferença entre eles está
no fato de que o ISCTE tem cursos de graduação
em todas as ciências sociais, incluindo a economia
e um curso de arquitetura, além dos programas
de mestrado e doutorado, enquanto o ICS se assemelha
ao clássico modelo da École de Hautes
Études en Sciences Sociales de Paris, apenas
com programas de pós-graduação.
Quando eu me refiro às afinidades
entre esses institutos e o IFCH, reafirmo também
os compromissos da cátedra que, atualmente,
estou ocupando no ISCTE. A iniciativa do ex-embaixador
brasileiro em Portugal, José Gregori, não
poderia ter sido mais feliz e mais acertada, porque
acabou associando dois institutos que têm enormes
afinidades intelectuais, o ISCTE e o IFCH da Unicamp.
Não sei se o nosso ex-embaixador
em Portugal conhecia a história destas duas
instituições, mas a sua escolha poderá
abrir caminhos novos para as pesquisas multidisciplinares
em ciências humanas, que têm sido retomadas
no IFCH, principalmente depois da criação
dos núcleos e centros de pesquisa. Apesar de
estarmos no começo de nosso intercâmbio,
é considerável o conhecimento que os
professores do ISCTE têm de pesquisadores e
professores do IFCH, nas áreas da sociologia
do trabalho e do sindicalismo, na história
do autoritarismo brasileiro, nos estudos do género,
na antropologia urbana, dentre outras.
A vocação intelectual
do ISCTE privilegia, sem dúvida, os estudos
de história contemporânea em suas múltiplas
dimensões (sociais, políticas, culturais),
mas não por isso deixa de lado os estudos,
principalmente das sociedades que se formaram a partir
da modernidade. Isto é, trata-se de um instituto
que por vocação democrática e
anti-salazarista está procurando superar as
imagens de um Portugal exclusivamente voltado para
o seu próprio passado mítico.
Aqui, tenho me relacionado com uma
ciência social renovada e preocupada em projetar
Portugal para o futuro, tanto em suas relações
com a Europa como com os países de língua
portuguesa, entre eles o Brasil e nações
africanas. Há, por este motivo, muitas possibilidades
de intercâmbio acadêmico entre Brasil
e Portugal e, dentre elas, destaco o interesse recíproco
na história e na atualidade das sociedades
dos países africanos de língua portuguesa.
De acordo com a expectativa de crescimento
da ação afirmativa com relação
à questão negra no Brasil, o IFCH e
o ISCTE poderiam se unir para a criação
de um projeto interdisciplinar de estudos, aproveitando
os antigos laços que nos unem com a África
negra e de língua portuguesa.
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Historiador e professor do IFCH, Edgar Salvadori de
Decca assumiu a cátedra Brasil-Portugal em
Ciências Sociais no Instituto Superior de Ciências
do Trabalho e da Empresa (ISCTE), em Lisboa, em convênio
firmado entre essa instituição e a Unicamp.
A convite do Jornal da Unicamp, De Decca aceitou o
desafio de escrever semanalmente um relato de sua
permanência na capital portuguesa.