Quebra-cabeça virtual
reconstitui peças arqueológicas
Software desenvolvido no IC recompõe
relíquias a partir de fotografias digitalizadas
MANUEL
ALVES FILHO
Em
meio a inúmeras atividades ligadas ao ensino
e à pesquisa, o professor Jorge Stolfi, do
Instituto de Computação (IC) da Unicamp,
ainda encontra tempo para se dedicar aos quebra-cabeças.
Não se trata, todavia, dos jogos que podem
ser encontrados em qualquer loja de brinquedos, embora
guardem alguma similaridade com estes. O passatempo
do docente, norteado por extremo rigor científico,
representa uma nova etapa em relação
a um estudo desenvolvido para a tese de doutorado
de uma de suas alunas, Helena Cristina da Gama Leitão,
defendida em 1999. Com a ajuda de um software e a
partir de fotos digitalizadas de fragmentos de peças
arqueológicas, Stolfi procura recompor virtualmente
relíquias que, a despeito do eventual valor
material, ajudam a contar uma parte da história
do Brasil. Sem a ferramenta computacional, que foi
testada com sucesso em superfícies planas e
agora começa a ser empregada para montar imagens
em três dimensões (3D), a tendência
seria de que muitos desses objetos jamais tivessem
a chance de ter a forma recuperada.
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Fragmentos
de relíquias históricas pertencentes
ao Instituto Arqueológico Brasileiro (IAB):
pedaços estão sendo fotografados
de 12 posições e ângulos diferentes,
para que software desenvolvido pelo Instituto
de Computação (IC) da Unicamp possa
achar os pares correspondentes
e o objeto tenha chance de ser reconstituído
virtualmente |
Stolfi conta que a idéia
de desenvolver o programa de computador nasceu de
um problema prático, enfrentado com freqüência
pelos arqueólogos. Boa parte do material encontrado
num sítio arqueológico é composta
por fragmentos de cerâmica. Não raro,
esses cacos são deixados no próprio
local, pois ficaria muito caro removê-los, ou
são recolhidos e armazenados em caixas ou sacos,
que vão parar nos porões dos museus,
em razão da dificuldade de serem encaixados
e formarem novamente uma peça completa. Muitas
vezes, um único vaso apresenta-se fragmentado
em milhares de pedaços, vários deles
parecidos. Para recompor esse objeto, levaria muito
tempo e exigiria pessoal devidamente treinado,
explica. Pensando nisso, o professor propôs
à sua aluna de pós-graduação
que desenvolvesse um software, cuja função
seria justamente identificar, numa coleção
de fragmentos, quais deles casavam entre si.
Para isso, Stolfi e sua aluna realizaram
uma experiência controlada. Ou seja, eles produziram
fragmentos artificiais, a partir de uma cerâmica
comum usada na construção civil. Por
serem planos, os pedaços foram colocados diretamente
sobre o scanner, gerando assim imagens digitalizadas.
Em seguida, os cacos tiveram os contornos delineados,
para que estes fossem confrontados uns com os outros.
Como nosso interesse era resolver um problema
de computação, tivemos que desenvolver
um método que tivesse duas características
importantes. Primeiro, que fosse capaz de analisar
milhares de fragmentos. Segundo, que pudesse encontrar
o casamento real entre dois pedaços, ainda
que esse casamento não fosse perfeito, em virtude
dos danos que eles normalmente apresentam, esclarece.
O desafio finalmente foi vencido
e o software se mostrou eficiente para encontrar os
pares reais e recompor, assim, a peça virtualmente.
A partir da imagem na tela do computador, afirma o
docente do IC, também é possível
reconstruir a peça no plano material, procedendo
a numeração de cada fragmento. Ou
seja, o quebra-cabeça fica fácil de
ser montado, pois o pedaço de número
um se encaixa com o de número dois e assim
sucessivamente, ensina Stolfi. A ferramenta,
portanto, reduz o tempo que seria gasto caso o trabalho
fosse feito manualmente, na base da tentativa e erro.
Destaque-se que, na medida em que o número
de fragmentos é multiplicado por dez, o tempo
necessário para encontrar os pares reais de
forma manual é 100 vezes maior.
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Terceira
dimensão
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O
professor Jorge Stolfi: modelo permite análise
de milhares de fragmentos |
A tese de doutorado
que gerou o software também deu origem a um
artigo que foi publicado no início deste ano.
O texto, conforme o professor Stolfi, teve boa repercussão
junto à comunidade científica internacional.
Agora, o docente do IC está diante de um novo
desfio, que é usar a ferramenta para tentar
recompor peças arqueológicas em terceira
dimensão. O trabalho conta com a colaboração
da agora professora Helena Cristina, que leciona na
Universidade Federal Fluminense (UFF). Ela está
fotografando com uma câmera digital a coleção
de cerâmicas do Instituto Arqueológico
Brasileiro (IAB). Cada pedaço está sendo
fotografado pelo menos 12 vezes, de vários
ângulos diferentes, de maneira a registrar a
sua forma tridimensional.
Assim que esse trabalho
estiver concluído, o software também
fará a identificação dos pares
que se encaixam. A expectativa é que algumas
peças comecem a ter o formato tridimensional
recomposto virtualmente dentro de um ano. Eventualmente,
alguns objetos também poderão ser reconstruídos
no plano material. Isso é importante,
pois um vaso, uma estátua ou um afresco é
capaz de revelar, por exemplo, aspectos da cultura
e do nível de desenvolvimento de um determinado
povo, numa dada época, analisa Stolfi.
Atualmente, segundo o professor do IC, a arqueologia
tem usado a tecnologia de banco de dados para tentar
remontar relíquias históricas. Nessa
abordagem, o arqueólogo codifica manualmente
os fragmentos pelas cores, figuras ou outros atributos,
e a ferramenta aponta os encaixes correspondentes.
Mas isso não tem sido útil para
objetos de cerâmica, pois as cores variam muito
na mesma peça.
No Egito, por exemplo,
arqueólogos encontraram recentemente um túmulo,
em que os afrescos do teto desabaram. Por causa disso,
eles desistiram de entrar no local, para preservá-lo.
Como esses fragmentos não foram danificados,
é bem possível que o nosso método
funcionasse nesse caso e ajudasse a reconstruir esses
afrescos, prevê Stolfi. De acordo com
ele, a técnica colocada a serviço da
arqueologia também poderia ser empregada pela
bioinformática, para encontrar pares de fragmentos
em uma seqüência de proteínas. A
pesquisa conduzida pelo docente do IC e pela sua colega
da UFF contou, nos últimos anos, com o apoio
financeiro da Faperj, Capes e CNPq.