Mitos miniaturizados
dos descobrimento
E
in vero lHistoria è il più vago
theatro,
che si possa imaginare
Giovanni Botero em Della Ragion di
Stato (1589)
Edgar
De Decca
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Desenho em estação de metrô
de Lisboa: oceanos como eixo temático |
São
dois passeios deliciosos. Diria, até, divertidíssimos
e que retratam duas miniaturizações
do mito dos descobrimentos. Quem vier a Lisboa deve
fazê-los. O primeiro é o passeio ao Palácio
da Pena na Serra de Sintra, a 40 minutos de Lisboa;
o segundo, uma viagem pelo tempo na linha do metrô
Oriente. O palácio é um monumento kitsch,
concluído em 1897, no final do século
19, comportando todos os estilos arquitetônicos
juntos (mouro, renascentista, barroco, rococó
e até uma precoce art-noveau), como que a representar
o ocaso de um sonho imperial. Não por acaso
se tornou uma das últimas moradas da monarquia
portuguesa, apeada do poder em 1910 pelo movimento
republicano.
O palácio
foi construído pelo rei consorte Fernando II,
de ascendência inglesa, parente da Rainha Vitória
e que presenciou no século 19 o sonho do imperialismo
inglês. Neste palácio temos a dimensão
do luxo conspícuo da monarquia e a sua fantasia
romântica de miniaturizar o sonho imperial em
inúmeros quartos e salas de estilos chineses,
indianos e árabes. A visita ao palácio,
hoje já distante do tempo da monarquia, é
deliciosa. Temos a sensação de estar
em um parque temático. A profusão de
estilos e gostos, alguns requintados, como o retábulo
renascentista da capela, e outros de muito mau gosto,
dá uma sensação de empanturramento
estético. A nostalgia de uma época passada
fica resumida às dezenas de peças de
um palácio no alto de uma serra, distante do
mundo dos homens, onde foi se alojar a monarquia portuguesa
em seus últimos verões.
O segundo passeio contrasta de modo impressionante
com o primeiro. Neste caso, a miniaturização
se dá através de uma viagem pelo metrô
de Lisboa rumo à estação Oriente.
Também foi construído no final de um
século, para ser inaugurado durante a Exposição
Internacional de 1998. Bem ao estilo das grandes feiras
internacionais, que se tornaram o maior símbolo
da modernidade a partir da segunda metade do século
19.
Um século
depois, Lisboa irá miniaturizar o mito dos
descobrimentos numa viagem de metrô. Pela surpresa
de seus temas artísticos, trata-se de uma viagem
mais ao estilo do Orient Express dos romances policiais
de Agatha Christie, do que aquela realizada por Vasco
da Gama na descoberta do caminho para as Índias.
Também contrastando com o palácio, não
se trata de uma obra para satisfazer o consumo conspícuo
de uma monarquia decadente. A linha nova do metrô,
símbolo da saga dos descobrimentos, é
uma obra da modernidade portuguesa para abrigar a
Expo-98. Ao contrário do palácio, trata-se
de uma obra de utilidade pública que, metaforicamente,
pretendeu implementar a urbanização
de um outro Oriente, este da cidade de Lisboa. A profusão
de estilos, neste caso, foi programada para atender
aos anseios multiculturalistas de uma nova visão
de mundo criada na releitura dos descobrimentos portugueses.
Do mesmo modo que as antigas viagens portuguesas para
o Oriente foram sendo feitas em etapas, aqui também.
Ultrapassamos os cabos das Tormentas e da Boa Esperança,
em belíssimas estações de metrô
que levam o nome de Bela Vista, Cabo Ruivo, etc. Trata-se
também de um imenso parque, que em suas várias
estações tem os oceanos como eixo temático.
Enfim, estes dois passeios se complementam, mas são
também caminhos que se bifurcam em sentidos
diferentes da história de Portugal.
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Muitas das minhas suspeitas estão
se confirmando nesta viagem a Lisboa. Dentre elas,
o modo criativo como Sérgio Buarque utilizou
os documentos de viajantes italianos para escrever
a história de Portugal na época dos
descobrimentos. A pesquisa histórica das trocas
culturais entre italianos e portugueses, entre os
séculos 15 e 16, só decolou aqui em
Portugal há uns 30 anos, mas o historiador
brasileiro já utilizava fartamente estes documentos
em sua tese de mestrado de 1957.
Pesquisas recentes revelam, inclusive, que foram os
relatos de viajantes italianos, que participavam em
negócios portugueses, como os de Giovanni Battista
Ramusio em Navigationi e Viaggio, publicados em 1559
(obra, por sinal, citada por Sérgio Buarque),
que tornaram conhecidas, em toda a Europa, a conquista
dos mares e as descobertas portuguesas. Além
disso, este repertório abundante de relatos
permite reavaliar, historicamente, de que modo foram
desvanecendo-se na Europa as imagens mitológicas
e lendárias do oriente e do continente africano.
Este intenso intercâmbio comercial
e cultural entre Portugal e Itália, não
isento de suspeitas e traições, possibilitou,
dentre outras novidades, a tradução
para o português, em 1510, do relato de viagem
de Marco Pólo, que permanecia guardado inédito
no arquivo da Torre do Tombo, provavelmente, desde
1416, os primeiros anos da Dinastia de Avis, que marcou
a separação de Portugal do Reino de
Espanha.
Tem-se notícia de que este exemplar do livro
de Marco Pólo foi trazido para Portugal por
D. Pedro, irmão mais velho do Infante D. Henrique,
o grande arquiteto das navegações portuguesas.
Embora não tenha tematizado a presença
dos italianos em Portugal, Sérgio Buarque utilizou,
fartamente, estas fontes coletadas, provavelmente,
em arquivos italianos e portugueses, no ano anterior
à defesa de sua tese de mestrado.
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Vista do Palácio da Pena na Serra de Sintra:
profusão de estilos |
Enfim, o tema das trocas culturais
entre italianos e portugueses na época do renascimento
é de considerável interesse historiográfico
em Portugal. Apenas por curiosidade, dentre os italianos
citados por Sérgio Buarque, destaca-se a presença
especial do filósofo, geógrafo e cartógrafo
Giovanni Botero, que, em 1591, dedicou-se à
cartografia da Europa, da Ásia, da África
e da América. As menções à
cidade de Lisboa, como a quarta maior cidade da Europa,
apareceram em seu tratado de política Della
Ragion di Stato (1589).
Mas, além dessa obra, Giovanni escreveu também
uma obra muito especial sobre as cidades, Delle Cause
della Grandezza e Magnificenza delle città
(1588) e Relazione Universali (1591). Um exemplar
desta última está na sessão de
obras raras da USP (http://www.obrasraras.usp.br).
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Escrevendo este comentário,
acabo por deparar com um artigo do jornal Diário
de Notícias de 10/11/2003, no qual o articulista
reelabora as relações do passado com
o presente, na figura do já citado D. Pedro,
irmão do infante D. Henrique, que trouxe para
Portugal o livro de Marco Pólo. Este viajante
inveterado do século 15 teria sido, segundo
o articulista António Valdemar, o primeiro
a conceber um projeto político de integração
de Portugal na Europa.
Sua vocação para as
viagens possibilitou conhecer o universo político
e cultural da Europa. Em carta ao seu irmão
D. Duarte, datada de 1426, que ficou conhecida como
A carta de Bruges, propõe uma série
de medidas, destacando-se dentre elas o investimento
público na área da educação,
enfatizando que a cultura deveria prevalecer sobre
o exercício puro e simples do poder.
Precursor das idéias reformistas
e humanistas, este infante, que trouxe o livro de
Marco Pólo para Portugal, também propôs
medidas modernizantes para o país, a exemplo
do que ocorria na Inglaterra e na França, como
a promoção da ciência e da investigação,
a reforma administrativa do Estado, o combate à
ociosidade, e uma nova atitude diante do ao trabalho,
à economia, à educação
e à Universidade.
Parafraseando o escritor português Eduardo Lourenço,
temos a impressão de que, hoje, Portugal precisa
olhar para o futuro toda vez que se encontra com seu
passado. Isto porque, para bom entendedor, não
é preciso dizer o quanto esta imagem mítica
e nostálgica de Portugal serviu para legitimar
regimes políticos retrógrados e fascistizantes.
Há entre os intelectuais portugueses das gerações
mais recentes um enorme esforço para romper
com este círculo nostálgico e saudosista.
Esta atitude de olhar para o futuro parece-me muito
bem evidenciada na política científica
e intelectual do ISCTE.
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Na última semana, o instituto
concedeu o título de Doutor Honoris Causa para
o intelectual francês Serge Moscovici, que desenvolve
estudos seminais na área da psicologia social,
dedicando-se também aos estudos de uma antropologia
das sociedades contemporâneas. Não sem
motivos, o ISCTE lhe concedeu este título.
Trata-se de um pensador preocupado com a questão
do indivíduo e das minorias ativas nas sociedades
pós-industriais e que interfere de forma decisiva
na renovação das ciências sociais
em Portugal, reintegrando o país no cenário
intelectual da Europa.
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Historiador e professor do IFCH, Edgar Salvadori de
Decca assumiu a cátedra Brasil-Portugal em
Ciências Sociais no Instituto Superior de Ciências
do Trabalho e da Empresa (ISCTE), em Lisboa, em convênio
firmado entre essa instituição e a Unicamp.
A convite do Jornal da Unicamp, De Decca aceitou o
desafio de escrever semanalmente um relato de sua
permanência na capital portuguesa.