Deus e o diabo na terra
do capitalismo tardio
Como
se fosse filme, pesquisadora conta porque
o Brasil brilha pouco no cenário capitalista
mundial
LUIZ
SUGIMOTO
Brasil
montou o parque industrial mais integrado da América
Latina, mas não conquistou melhor inserção
na estrutura capitalista mundial, como fizeram outros
países de capitalismo tardio, caso da Coréia
do Sul. Por que? Angelita Matos Souza, cientista social
e cinéfila, apresenta respostas em sua tese
de doutorado em Economia Aplicada, sob o sugestivo
título de Deus e o diabo na terra do sol (leitura
política de um capitalismo tardio). A paixão
pelo cinema levou a autora a atenuar o tom obrigatoriamente
acadêmico também no decorrer dos capítulos,
relacionando episódios do processo de desenvolvimento
do país com filmes de sucesso, como será
visto a seguir.
Para compreender porque o processo de industrialização
brasileiro não tirou o país da lista
das nações periféricas e dependentes,
Angelita Souza voltou a fita até o início
do processo de industrialização com
Getúlio Vargas, nos anos 1930, revendo-a até
a parte protagonizada pelos presidentes militares,
com ênfase no governo Geisel. Em foco, o Estado
e seu papel no sonho da modernização,
completando-se o tripé com o capital nacional
e o capital estrangeiro. O Estado brasileiro
foi ao mesmo tempo deus e diabo. Deus, porque sempre
foi visto como onipotente, dotado de força
transformadora, capaz de induzir e conduzir o processo
de desenvolvimento. Diabo, porque sua presença
acentuada na economia bloqueou a formação
de uma burguesia empreendedora, dando lugar a um empresariado
avesso ao risco e dependente dos governos, afirma.
Angelita Souza observa que esse Estado forte, contraditoriamente,
mostrou-se fraco no enfrentamento dos interesses das
forças economicamente dominantes (atrasadas
ou modernas), sendo incapaz de cobrar resultados e
impor perdas ao grande capital privado, nacional ou
estrangeiro. O caráter conservador da
transição, optando-se sempre pelos caminhos
de menor resistência, levou ao desperdício
de oportunidades para a efetivação de
reformas necessárias à democratização
do capitalismo brasileiro, condição
básica para o progresso social, critica.
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A cientista social Angelita Matos Souza: No
Brasil, não vemos a fusão do capital
financeiro com o capital produtivo |
Esse obscuro
objeto do desejo
A pesquisadora vê o Estado capitalista como
um obscuro objeto do desejo. Segundo ela, as análises
sobre o Estado no capitalismo ainda são obscuras,
não resultando em consenso dentro das ciências
sociais, sobretudo em se tratando do capitalismo tardio.
Este capítulo traz também uma
reflexão sobre a globalização
e o futuro dos Estados nacionais. Minha tese é
de que estes continuam sendo muito importantes. É
difícil imaginar uma estrutura capitalista
mundial sem Estados nacionais como centros decisórios,
opina.
Sem destino
Neste capítulo em que avalia o papel do Estado
nos processos de industrialização latino-americanos,
Angelita Souza detecta como principal deficiência
no capitalismo do continente a não conformação
de um capital nacional capaz ou disposto a financiar
o desenvolvimento interno. No Brasil, não
se viu a fusão do capital financeiro com o
capital produtivo, que no primeiro mundo permitiu
formar as grandes corporações,
observa a pesquisadora.
Tomando a era Vagas, o governo JK e o governo Geisel
como três momentos privilegiados da história
econômica brasileira, a autora procura identificar
os limites políticos (conferidos pela luta
política no interior da formação
social do país) com o processo de industrialização
nacional. Ela se atém especialmente nos entraves
políticos para a concretização
do sonho de Brasil-potência idealizado
pelos governos militares, fundamentalmente pelo governo
Geisel.
Os melhores anos de nossas vidas
Dos anos 1930 até a década de 1970,
o Brasil cresceu de forma extraordinária, mas
perdeu uma oportunidade histórica de desenvolver
um capitalismo voltado para o fortalecimento da estrutura
produtiva nacional, articulado ao capital estrangeiro
de forma realmente associada. Angelita Souza recorda
que, no pós-guerra, a conjuntura externa era
altamente favorável, em função
da concorrência intercapitalista, com europeus
e asiáticos tentando ganhar mercado na periferia
dominada pelos Estados Unidos. Podíamos
ter jogado melhor e perdemos, lamenta.
Juscelino Kubitschek até que se esforçou
em campo. Sem recursos internos para seu projeto de
progresso acelerado, ele atraiu primeiramente empresas
européias, obrigando os norte-americanos a
também virem, e instalou uma indústria
de bens duráveis sem endividamento externo.
Mas JK sustentou seu projeto com emissão de
moeda, o que levou ao descontrole total da economia
mais à frente, vitimando João Goulart.
Áta-me
Os militares saíram da caserna para acabar
com os movimentos populares e também para resolver
a pendenga em torno do modelo de desenvolvimento,
em favor do grande capital monopolista, nacional e
transnacional. Roberto Campos e Octávio Bulhões,
ministros do primeiro governo militar, instituíram
os mecanismos de articulação dependente
com o mercado internacional. Em seguida, Delfim Netto,
identificando na fraqueza do sistema financeiro nacional
o maior problema do processo de industrialização,
incentivou o fortalecimento e centralização
do capital bancário. O sistema bancário
cresceu e floresceu graças a esta política
de apoio, mas sobretudo com a intermediação
da entrada de recursos externos, diz Angelita
Souza.
O governo Geisel compõe a
tese central do estudo, por representar um divisor
de águas na história do capitalismo
brasileiro. Naquele momento, nossa economia foi definitivamente
atrelada ao mercado financeiro internacional, tendo
como contra-face interna a especulação
financeira. Era muito atrativa a abundância
de dinheiro no mercado, a juros baixíssimos,
e o Brasil viu-se atado por uma costura feita aqui
dentro, combinando os interesses dos bancos, que lucravam
com a intermediação, e dos empresários
produtivos, que precisavam de capital de giro.
A ciranda financeira
abriria caminho para a implosão do famoso tripé
da economia brasileira desde o governo JK empresas
estatais, capital estrangeiro e capital nacional ,
com posterior desmonte da pata forte do
tripé, as estatais, e a redução
ainda maior do espaço econômico para
a pata fraca, o capital nacional. Ironicamente,
era o capital nacional que o governo Geisel, com o
II PND, propunha fortalecer, aponta a professora.
A regra do jogo
O que aconteceu depois, em 1979, é que os EUA
dobraram a taxa de juros interna e o dólar
foi supervalorizado, levando à bancarrota os
países que pagavam seus compromissos externos
nesta moeda. Especialistas alertaram exaustivamente
os condutores da política econômica de
que qualquer inversão dos rumos da política
mundial levaria à quebra da periferia capitalista.
A inversão aconteceu e a década de 1980
foi perdida.
Geisel, tido como o presidente de
melhor índole entre os generais,
abriria mão do discurso nacionalista, sem poder
conter a articulação dos que lucravam
com o endividamento. Não discuto se ele
tinha ou não boa vontade. O fato é que
não havia como mudar a regra do jogo. O II
PND, que vislumbrara o sonho de Brasil-potência,
não deu certo porque o jogo era ditado por
esta articulação entre capital bancário
nacional e internacional, afirma.
Os deuses vencidos
Para Angelita Souza, razões políticas
levaram o governo Geisel a apostar numa política
desenvolvimentista: queria manter o crescimento elevado,
a fim de não perder as eleições
e evitar que os militares saíssem como fracassados.
Porém, o primeiro setor a abandonar o barco
foi o empresariado produtivo nacional, contrariado
com os rumos assumidos pela política econômica
de incentivo ao endividamento externo que, entre outras
coisas, obrigava à importação
de equipamentos, em prejuízo da nossa indústria.
A iniciativa privada, cujo lucro
e evolução foram sustentados com recursos
públicos, começou a criticar duramente
o regime militar, aderindo a campanhas antiestatização
e pela redemocratização. A partir
daí, assistimos à falência do
Estado desenvolvimentista. Deus deixou de existir.
Não apenas no Brasil, mas nos países
latino-americanos em geral, os deuses acabaram vencidos
pelos rumos da economia internacional, avalia
a pesquisadora.
A comilança
No grande banquete, as forças dominantes
comeram até a morte do cozinheiro, ironiza
Angelita Souza. Em A Comilança, último
capítulo da tese, a professora faz um paralelo
entre o governo Geisel e o governo Lula, verificando
que as propostas são as mesmas: fortalecimento
da estrutura produtiva nacional, incentivo à
exportação, combate às desigualdades
sociais e regionais. Ocorre que a situação
externa, hoje, é enormemente mais desfavorável
do que nos melhores anos. Se naquele bom
momento não foi possível, seria agora?
Lula aposta em sua figura para garantir apoio político,
mas o carisma, sem ações que agraciem
as massas com ganhos materiais, dissolve-se rapidamente,
alerta. Se não houver pulso na direção
do capítulo que começa, a professora
antevê um título: Amargo regresso.
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Tese: Deus e o diabo na terra do sol (leitura
política de um capitalismo tardio)
Bolsista: Angelita Matos Souza
Unidade : Instituto de Economia
Orientador: José Ricardo Barbosa Gonçalves
(IE/Unicamp)
Agência: Fecamp (financiamento inicial
do projeto)