Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 272 - de 25 a 31 de outubro de 2004
Leia nessa edição
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Vlado e o fim da ditadura
Parto de cócoras
Prêmio Jovem Cientista
Ciência & Cotidiano
Comunicação para todos
Oswald de Andrade
Diário da Cátedra
Um arranhão de gato
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Unicamp na mídia
Morte com naturalidade
Ciência + Paraolimpíadas
 

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Vlado e o fim da ditadura



SANDRA NEGRAES BRISOLLA

Sandra Negraes Brisolla é professora aposentada e voluntária do Departamento de Política Científica e Tecnológica (DPCT) do Instituto de Geociências da Unicamp (Foto: Antoninho Perri)Conheci Vladimir Herzog através de minha amiga Clarice, de quem eu havia sido colega, no final dos anos 50, no curso técnico de química industrial, equivalente ao segundo grau. Éramos cinco amigas que saíam sempre juntas nos feriados, para a Praia Grande ou para o Perequê, no Guarujá, na época uma praia de pescadores quase deserta. Havia no grupo algumas coisas em comum: não por acaso apenas uma de nós, a Maria Anísia, seguiu a profissão e tornou-se química de verdade. Eu acabei estudando economia, alguns anos mais tarde, e Clarice e Fátima fizeram o curso de ciências sociais. Maria Eterovic foi a primeira a se desgarrar do grupo, casando-se com Solly, que a levou para Milão, onde criou seus filhos; perdemos sua pista. Outro colega, o Norberto, também fez economia e já era professor da USP quando fiz o vestibular para essa Faculdade.

Além da atração pelas ciências humanas – nunca entendi o que nos levou no secundário para um campo tão árido do conhecimento, como a química – unia-nos o gosto pela arte, o cinema, o teatro, o que estendeu nossa amizade para além do curso técnico. Conhecemos São Paulo dos anos 60, aproveitando cada espaço cultural que se apresentava, freqüentávamos a Cinemateca, compartilhávamos as primeiras emoções de sentir-nos adultas, íamos a restaurantes juntando as mesadas e não deixando gorgeta. Clarice e Fátima já haviam sido colegas no curso primário e eram mais unidas que o resto do grupo. Depois que se casaram, Vlado e Clarice foram para a Inglaterra, assim como Fátima e Fernando, seu marido, e os dois trabalharam na BBC de Londres. Eram muito amigos, ambos jornalistas, sendo que Vlado também havia feito alguns filmes.

Por um tempo perdi contato com eles, porque também viajei para o exterior entre 62Reprodução e 64, tendo voltado em fevereiro e assistido o golpe militar que mudou nossas vidas. Na minha volta, retomei contato com minhas amigas e foi quando conheci melhor o Vlado, já então um jornalista respeitável. Foi por indicação sua que consegui meu primeiro emprego numa revista de economia e administração, apesar de não ter experiência anterior na profissão. Trabalhei aí quase dois anos e meu colega de trabalho Paulo Graziano me convenceu a fazer o vestibular para economia na USP, onde ele já fazia o curso. Entrei para o curso noturno da Faculdade e continuei trabalhando durante o dia.

Era impossível desconhecer o clima político que se vivia na época. As passeatas e as ocupações da Faculdade eram parte do dia-a-dia com que procurávamos reagir ao clima opressivo criado pela ditadura. A situação se torna insustentável a partir do Ato Institucional nº5, em 1968, o “golpe dentro do golpe”. Inicia-se a repressão mais generalizada, uma vez que estavam suspensas as garantias individuais.

O movimento estudantil passa a adotar formas organizacionais para driblar o cerco da polícia durante as passeatas. Os estudantes eram compostos por grupos que só revelavam o local do “comício-relâmpago” minutos antes dele começar. Todo mundo se deslocava para o local e, mesmo que o movimento estivesse infiltrado, havia tempo para um discurso rápido e uma fuga da liderança.

Daí foi um passo para o surgimento das organizações armadas, dispostas a executar ações de impacto que sensibilizassem a população para a reação contra o governo opressor. Vários de nós se aproximaram dessas posições políticas e foi assim que, no final de 69, eu tive que me exilar no Chile, e tive um processo com prisão preventiva decretada. Em 1973, o golpe militar que depõe o governo Allende me obriga a me asilar na embaixada do Panamá. Do Panamá fui para a Argentina, onde me casei. Em 1974 correu no Brasil o boato de que eu havia morrido na Argentina. Em 1975, o “golpe” de Isabelita Perón obrigou-nos a deixar o país, o emprego e a família de meu marido. Como eu havia sido absolvida no processo em primeira instância, decidimos vir para o Brasil, o que aconteceu no dia 1º de maio.

Vlado e Clarice estiveram entre os primeiros amigos que procuramos à minha volta. Acabamos nos encontrando umas poucas vezes. Depois de 15 dias em São Paulo, conseguimos trabalho em Campinas, na Unicamp, para onde nos mudamos. Em agosto de 1975, minha amiga Maria Regina Marcondes Pinto, esposa de Emir Sader, a quem conheci desde que Emir começou a dar aulas na Faculdade de Economia no Chile, “desapareceu” na Argentina. E em uma segunda-feira de outubro fui surpreendida na Universidade com a notícia do assassinato do Vlado.

Com o clima que se vivia na ocasião, julguei prudente consultar Fátima, nossa amiga comum, sobre a conveniência de procurar Clarice. Eu havia chegado, há poucos meses, do exílio e já havia, antes de minha saída do país, causado o constrangimento de provocar o depoimento no DOI-Codi de Fátima e Fernando, apenas por terem estado uns dias em uma casa de praia de meus pais. Soube por ela que a casa de Clarice estava vigiada e não seria aconselhável que eu a procurasse nesse momento.

No dia da missa ecumênica, meus pais trataram de chegar à igreja da Sé, mas foi impossível. Ficaram no caminho, no congestionamento. Estava tudo cercado por uma mobilização monstro da polícia.

Passou-se um longo tempo antes que eu voltasse a ver minhas amigas. A distensão que se seguiu foi um processo lento e sofrido. Meu processo só foi finalmente resolvido em 1978.

A revolta que se produziu com o bárbaro assassinato do Vlado e que culminou na abertura política no país, só pode ser bem compreendida por quem o conhecia bem e também pela coragem que teve Clarice de enfrentar a ameaça constante dos militares, e abrir uma ação contra o Estado. A doçura, a sensibilidade e retidão de conduta de Vlado não combinavam de jeito nenhum com a bárbara circunstância de sua morte. No meio jornalístico e intelectual, onde Vlado era uma figura muito querida e respeitada, sentiu-se um clamor muito forte, todos dizendo: Basta!, ainda que as reações fossem tímidas, face à truculência do regime.

O movimento ganhou força também em outros meios, a partir da maneira despudoradamente mentirosa pela qual queriam justificar sua morte, com uma fotografia que era um atestado de fraude, pois ninguém consegue se suicidar com os pés dobrados no chão e as mãos livres para soltarem a corda. Sem mencionar que quem quer que tenha estado no DOI-Codi sabe que a primeira coisa que fazem é retirar cadarços dos sapatos, prevendo atitudes de desespero frente às bárbaras torturas.

Por outro lado, Clarice juntou todas as forças de que foi capaz para seguir até o fim com o processo contra o Estado brasileiro, e foi sua tenacidade e o apoio dos amigos, além da coragem de um jovem juiz, que permitiu que, pela primeira vez, a União fosse responsabilizada pela morte de um cidadão sob sua custódia.

A anistia que se seguiu foi, como no caso de outros países latino-americanos, negociada como abrangendo também as forças armadas. Hoje, no entanto, tanto no Chile como na Argentina, já se fez consenso no sentido de que torturas não são passíveis de anistia, e os militares argentinos e chilenos estão sendo devidamente processados para responder pelos crimes que praticaram.

O sofrimento que está sendo infringido a Clarice, seus filhos e dona Zora, mãe do Vlado, pela publicação de fotos fornecidas por um cabo, não são remediáveis. Mas nós temos uma dívida com todos os que sofreram nas mãos dos militares nos porões da ditadura, que consiste em exigir a abertura dos documentos relacionados dos fatos hediondos ocorridos no período para que essa época de barbárie não volte! Não se pode permitir que o medo vença a esperança!

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Sandra Negraes Brisolla é professora aposentada e voluntária do Departamento de Política Científica e Tecnológica (DPCT) do Instituto de Geociências da Unicamp

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