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Nos 50 anos de sua morte, Oswald de Andrade tem sua
obra cada vez mais valorizada e a imagem pessoal revista
A face pacificada do
rebelde contumaz
LUIZ SUGIMOTO
Imagem marcada da infância, a professora Marília de Andrade não tinha completado 9 anos de idade quando viu um dragão chorando. O dragão era o pai Oswald de Andrade, por vezes assim chamado porque o monstro mitológico parecia sintetizar todos os adjetivos atribuídos ao intelectual por contemporâneos e estudiosos de sua vida e obra: aguerrido, forte, irreverente e sonhador, segundo Maria Augusta Fonseca; irrequieto, quase uma vítima de suas próprias energias e inventividade, segundo Jorge Schwartz; guerreiro, polêmico, homem de muitas facetas, cada uma ligada diretamente às várias fases de sua obra, segundo Maria Eugênia Boaventura. Oswald, o rebelde contumaz.
“Eu o vi chorando porque para ele, depois de uma vida dedicada a escrever, era doloroso ouvir dos editores que seus livros não eram vendáveis, desinteressantes para os leitores. Ele tinha consciência do valor da sua obra, mas estava muito doente, deprimido e achava que nunca seria lido”, recorda Marília de Andrade. Psicóloga, dançarina, coreógrafa e cineasta, a filha de Oswald criou o Departamento de Artes Corporais do Instituto de Artes (IA) da Unicamp. Aposentada na Universidade, a professora tem vivido semanas atribuladas com a recente mudança para o Rio de Janeiro e os eventos lembrando os 50 anos da morte do pai em 22 de outubro de 1954. “Demorou tempo demais para que a obra dele fosse realmente reconhecida. Começou com a peça O Rei da Vela em 1977, houve uma evolução cultural que permite melhor compreensão de Oswald, mas ainda há muito a ser explorado”, afirma.
Marília de Andrade, juntamente com o bibliófilo Ésio Macedo Ribeiro, lançou no ano passado um livro mostrando a faceta doméstica do dragão: Maria Antonieta d’Alkmin e Oswald de Andrade: Marco zero (Edusp), em que conta a relação de mais de 12 dos anos dos pais por meio de textos, cartas, dedicatórias e fotos reunidos de seu acervo pessoal, da coleção do amigo Ésio Ribeiro e do Fundo Oswald de Andrade arquivo do autor comprado dos herdeiros pelo Centro de Documentação Alexandre Eulálio (Cedae) da Unicamp. “Minha memória de criança é de um homem pacificado. Mas como adulta e artista, analisando sua obra, vejo outro artista bastante intenso em suas manifestações e acessos. Tudo nele era ampliado, nada era contido. O pai com quem convivi, porém, era uma pessoa caseira, doméstica”, relembra.
O livro é baseado principalmente nos manuscritos da mãe Maria Antonieta d’Alkmin, sexta e última esposa de Oswald e com quem ele teve a relação mais duradoura. Essas memórias, que trazem pistas riquíssimas sobre a fase menos conhecida do modernista, quando ele era consumido pela doença e por sérios problemas financeiros, estavam reunidas em um caderno sob o título Evocações (Oswald de Andrade em Minha Vida). Seria um livro que Maria Antonieta começou a escrever somente sete anos depois da morte do marido. “A perda foi uma violência muito grande contra ela. Eles tinham uma relação muito intensa”, conta Marília.
Relação tão intensa que inspirou uma coreografia da professora para os eventos comemorativos em fins de outubro, chamada O Corsário e o Porto, baseada em um trecho do poema Cântico dos Cânticos para Flauta e Violão. “É um dueto em que os bailarinos são interdependentes: o homem se apóia na mulher e vice-versa. Embora ela tivesse a metade da idade de meu pai, às vezes ele a tratava como mãe. Não se sabia quem era o corsário e quem era o porto”, compara. Foi com o Cântico dos Cânticos, escolhido pela crítica como um dos mais belos poemas do século 20, que Oswald pediu Maria Antonieta em casamento.
Marília de Andrade guardou Evocações por todos esses anos, até superar uma tragédia familiar: perdeu num acidente o irmão caçula, Paulo Marcos, prestes a completar 20 anos em maio de 1968, e também como conseqüência disso, a mãe Maria Antonieta, que se suicidou em 1969. “Com tudo isso, ficou muito difícil mexer naqueles escritos todos”, justifica. Reproduzimos, na página seguinte, uma carta de Oswald para os filhos, um texto de Maria Antonieta d’Alkmin sobre seu casamento, uma redação escolar de Paulo Marcos sobre o pai e uma carta que Marília de Andrade escreveu a Oswald 30 anos depois de sua morte.
O fim do anonimato
Jorge Schwartz, professor de pós-graduação de Literatura Hispano-Americana da USP, está supervisionando a reedição das Obras Completas de Oswald de Andrade. Até o momento foram publicados oito volumes, sendo um de inéditos, Feira das sextas, que será lançado neste dia 6 de novembro na Pinacoteca do Estado. “Resolvi inverter a ordem cronológica, começando pelo final: o primeiro volume é o das memórias, Um homem sem profissão, publicado postumamente, com introdução de Antonio Candido. Achei que seria uma âncora para o que viesse depois. O projeto da coleção é de aproximadamente vinte volumes”, explica.
Schwartz afirma que, durante muito tempo, se fez um enorme silêncio ao redor da obra de Oswald, que não chegou a ver qualquer reedição em vida. “Mas, após a retomada das Obras Completas, iniciada por Antonio Candido nos anos 1960 (Difel e Civilização Brasileira), revitalizadas pela radical intervenção dos poetas concretos, em especial de Haroldo de Campos, e a migração para a Editora Globo, já não se fala mais em anonimato. Só o interesse em reeditar as Obras Completas (a primeira iniciativa da Editora Globo foi no início dos anos 90, sob a supervisão de Maria Augusta Fonseca), e agora no formato revisto, sob a minha supervisão e pesquisa de Gênese Andrade, acho que tudo isto é indicativo do crescente interesse pela obra de Oswald”, observa.
O professor da USP ressalva, porém, que um autor como Oswald de Andrade dificilmente chegará a ser um best seller. “Mas duvido que não haverá leitores para a sua multifacetada produção de poesia, ficção, teatro e crítica. Acho que ele próprio ficaria abestalhado de se ver como personagem, aliás muito bem interpretada pelo José Rubens Chachá, na recente minissérie da Globo, Um só coração, de Maria Adelaide do Amaral”, acrescenta.
A professora Maria Eugênia Boaventura, do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp, autora de O Salão e a Selva Uma biografia ilustrada de Oswald de Andrade (Editora Ex Libris e Editora da Unicamp), também é de opinião que o modernista nunca será um escritor popular, lido e reconhecido por um grande público. “Ele não será um Jorge Amado. Seu texto é complexo, hermético, experimental. Assim como Mário de Andrade, é mais comentado do que lido”, compara.
A pesquisadora do IEL considera a divulgação de autores como Oswald importante, como vendo sendo feito agora, mas salienta que o aumento do número de leitores para esses autores depende de outros fatores. “Esse público vai se ampliar na medida em que a educação se amplie e que os leitores interessados tenham mais dinheiro no bolso”, pondera. No mundo acadêmico, segundo ela, a obra de Oswald de Andrade continuará provocando muitos debates. “Marco Zero é um livro que aguarda um estudo importante, as peças teatrais somente começam a ser alvo de teses, e continuam muito atuais as poesias e parte da prosa”, sugere.
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Quatro textos reveladores
do Oswald desconhecido
Toma conta do céu
Toma conta da terra
Toma conta do mar
Toma conta de mim
Maria Antonieta d’Alkmin
(Do poema “Cântico dos Cânticos para Flauta e Violão”, com o qual Oswald de Andrade pediu Maria Antonieta d’Alkmin em casamento)
No dia seguinte, pela manhã, minha mãe me falou: “Você não deve continuar trabalhando com o Oswald e nem arranjar encrenca com esse homem porque as mulheres que passaram pela vida dele foram todas pra ‘rua da amargura!’”
Retruquei afirmando que nenhuma delas o havia compreendido e que eu seria capaz de entendê-lo.
Minha mãe caiu em pânico, proferindo-me palavras desagradáveis. Sai para a escola e só retornei à noite.
Nessa ocasião, meu pai encontrava-se no interior, trabalhando como fiscal de rendas do Estado e quatro de meus irmãos também viviam ausentes de casa. Minha mãe comunicou a todos o que se passava comigo, marcando o toque de reunir para o dia 14 de dezembro, data da minha formatura. Na véspera de receber meu diploma de professora, papai e meus irmãos chegaram e eu fiz força para me desencontrar deles chegando mais tarde em casa do que de costume, a fim de evitar que o meu romance amoroso fosse resolvido. Deu certo, pois quando cheguei todos estavam dormindo. Logo que amanheceu fui perambular de bonde até a cidade só regressando ao meu bairro na hora em que o comércio se escancarou. Procurei um salão de beleza e só então pude relaxar os meus nervos bastante distendidos.
Fiz as unhas enquanto meus cabelos iam sendo engolidos numa mise-em-plis. No secador, afundei no monte de revistas velhas que me puseram no colo.
Dali fui ao encontro do Oswald e ele me avisou que iria à tarde à minha casa falar com meus pais, pois, na véspera falara com a Carmen sobre o assunto, incumbindo-a de uma prévia conversa com eles.
Quando o Oswald rumou para a vila Clementino, desci até o largo S. Francisco, entrei na igreja e esperei sentada num dos últimos bancos o momento de ir reencontrá-lo palestrando com meus pais.
Lá pelas seis horas fui varando minha casa. O ambiente era de silêncio, prenunciando-me desajustes. Assim que apontei na sala, Oswald me disse: Agora é você quem vai falar!”
Senti-me aliviada ao lado de meu pai e ele perguntou se eu queria casar com o Oswald. Respondi-lhe, rapidamente: “Quero!”
O assunto invadiu outras paragens. Foi servido o lanche preparado para a formatura e pouco depois todos nós embocávamos no salão nobre do Instituto de Educação “Caetano de Campos” onde se processou a entrega dos diplomas, única cerimônia da qual participei.
No outro dia, o clima familiar amanheceu plúmbeo.
O primogênito dos irmãos homens não me dirigiu palavra, nem eu a ele. Os outros condenaram minha peremptória decisão de casar com Oswald e eu, rija como aço, simplesmente confirmei a resposta dada a meu pai na véspera.
Muitas alegações foram levantadas, inclusive a de que eu seria “amásia de Oswald”.
“Amásia ou esposa no papel, a vida com ele quem vai viver sou eu!”
Oswald havia apresentado a meus pais a fórmula prática de solucionar a união conjugal entre os “largados”, os desquitados e solteiros ou desquitados de ambos os lados, simplesmente “juntar os trapos” ou um casamento pró-forma por procuração, no Uruguai ou México, “absolutamente válido” e comum na alta burguesia e entre os intelectuais e artistas tidos ainda hoje como marginais. O que importava é a vida e a vida junto da criatura que se amava e não as exigências do Direito Canônico que sempre interferira diretamente no Direito Civil importando e obsoleto que ainda regia o nosso país. Que adiantavam para esses ou outros direitos, dois defuntos amarrados juntos?
Texto de “Evocações (Oswald de Andrade em Minha Vida”), livro que Maria Antonieta d’Alkmin deixou inacabado
[São Paulo], 7 de julho de 1954.
Meus filhos Antonieta Marília e Paulo Marcos Quando escrevi aquele poema em que exaltava a aparição miraculosa em minha vida de Maria Antonieta d’Alkmin, mal sabia que ela se tornar o ar que respiro.
Vocês são filhos da maior das companheiras de que tenho notícia. Sua mãe é o desvelo, a inteligência, a dedicação enfim o amor.
Claro que reconheço não ser merecedor da graça que foi a vinda dela a meus dias. Só uma explicação doméstico-metafísica poderia ocorrer repetindo uma frase do ambiente caseiro em que me criei foram as orações de minha mãe que retiraram do fulcro dos milagres essa bênção feita mulher e a entregara[m] ao desvelo e à guarda de meus dias.
Uma noite, no hall de um hotel popular de Sevilha encontrei Don Juan o rosto marcado e severo, a presença imponente e simples. Fiquei encadeado àquela figura anônima de espanhol com quem sentia secretos compromissos. Quem era eu senão Don Juan um experimentador de amores e de aventuras? A mãe de vocês me fixou no solo atávico, realizou o milagre de me autenticar, ressuscitou em mim o que era essencial e se esquivava.
Enquanto eu doente permaneço sentado ao meu leito, ela organiza a biblioteca santa ideal de minha mocidade. Ela teima em organizar um ambiente de trabalho intelectual para o caído que eu sou. Só ela é capaz de acreditar na minha ressurreição.
(Carta em que Oswald descreve aos filhos o papel fundamental de Maria Antonieta em sua vida)
Meu pai
Meu pai era alto, gordo, velho, com cabelos grisalhos.
Ele era inteligentíssimo, amigo de todos se bem que brigava com uns de vez em quando e atacava-os por meio da imprensa ferinamente.
Gostava de festas e sempre, pelo menos três vezes por semana, havia jantares e festas até que ele começou a ter fortes ataques cardíacos.
Era muito amigo e tinha prazer em nos ver felizes.
Gostava de viajar e na mocidade visitou a Europa muitas vezes. Pouco antes de sua morte ele estava fazendo arrumações para uma viagem à França onde ele ia lecionar na Universidade de Paris.
Era um fanfarrão e um grande comilão.
Mamãe brigava muito com ele, pois ele era diabético e não podia comer doces e salgados em quantidade.
Quando ela brigava com ele, ele saia e comprava uma jóia para ela e isso fazia-no recuperar o prestígio perdido.
Na sua morte eu chorei muito, mas a vida é assim.
(Redação escolar de Paulo Marcos d’Alkmin de Andrade, aos 14 anos)
Babo,
Naquela manhã de sexta-feira, 22 de outubro, eu tentava seguir minha rotina indo para a escola, onde costumava ocupar minha cabeça, tentando distrair-me da dor no peito, que era o pressentimento da sua morte.
Você me parecia, naqueles últimos dias, um velhinho combalido, com pouco fôlego, muito irritável, o dia todo de pijamas sentado na mesma poltrona, depondo tristemente as armas contra a doença. Eu tentava desesperadamente convencer-me do contrário, tinha pavor de enfrentar o fato de que ia perder você, que era justamente a pessoa de quem eu mais gostava.
Agarrada à minha pasta escolar, passei correndo pela porta do seu quarto, na esperança de não ser percebida. Não estava querendo nem olhar para dentro, sabia que você estava mal. Mas não deu certo e, ao ver-me passar correndo, você ordenou (sempre ordenava) que eu me aproximasse para lhe dar um beijo.
Tive medo, fiquei assustada com o ronco estranho que saia do seu peito. Se estivesse mais tranqüila, poderia ter entendido melhor o seu último desejo, sussurrado em meu ouvido enquanto eu o abraçava. Não tenho certeza do que você me pediu e, como nunca mais pude vê-lo, para esclarecer suas palavras, fui inventando um sentido para elas, ao longo da vida, com a série de acontecimentos trágicos que sobrevieram. Como separar aquilo que você realmente disse daquilo que foi por mim intuído ou adivinhado? Separar a realidade objetiva dos meus medos e desejos, da minha compreensão infantil do mundo, de minhas fantasias. Eu me lembro que você me pediu, emocionado, para eu “tomar conta da Maria Antonieta”. Ou, se não falou exatamente isso, deixou este pedido implícito na confissão do medo de deixá-la só.
Seu pedido aumentou meu pânico. Por isso procurei desvencilhar-me rapidamente daquele abraço, relutante dei um beijo em seu rosto e sai correndo.
Tidinha me contou, muitos anos depois, que você morreu tranqüilo, sentado na poltrona e conversando com ela, por volta do meio-dia, enquanto a mamãe preparava algo na cozinha; apertava forte em suas mãos aquelas medalhinhas de santos que carregava no pescoço desde o início da doença. Não fui ao seu enterro. Fiquei na casa da vovó, sem suspeitar de nada, e só soube da sua morte no domingo, dois dias depois. A partir daí, cumprir seu último desejo impôs-se como um dever torturante, imperioso e inexeqüível. Destino complicado ser filha de Musa e Poeta!
Queria dizer hoje que, no confuso emaranhado das nossas relações, eu nunca entendi, afinal, quem tomava conta de quem: Ela de Você? Você Dela? Eu de Vocês? Eu Dela? E quem, meu pai, tomava conta de mim?
(“O último desejo. Carta ao Oswald, trinta anos depois”, por Marília de Andrade)
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