Entre o mercado e os
escombros da memória
FERNANDO DE TACCA
Conhecido por sua feira de antigüidades aos domingos, quando muitas pessoas visitam suas ruas, o bairro de San Telmo tem uma história muito mais antiga que o ingênuo passante possa imaginar, além de guardar outras surpresas quase ocultas. Caminhando somente por quase uma rua, a calle Defensa, entre as avenidas Independência e San Juan, é possível conhecer dois pontos fundadores da cultura local, o Mercado de San Telmo e a Igreja Nossa Senhora do Belém, além de ouvir tangos das orquestras típicas nas ruas, todas formadas por músicos muito jovens. O comércio de antigüidades é um fenômeno recente, que teve início nos anos 70. O bairro, batizado por seus moradores como a “República de San Telmo”, ainda mantém característica de um local pleno de relações de vizinhança e, em algumas de suas ruas de paralelepípedos, ainda vemos trilhos dos bondes que rodaram até os anos 30. Se o visitante caminhar até outro ponto muito perto e conhecido, Puerto Madero, poderá observar no caminho a grandiosidade da Escola de Engenharia, com suas colunas clássicas. Se ousar caminhar um pouco mais, chegará no Rio de La Plata, na Costanera Sur, uma reserva biológica.
Segundo alguns historiadores, um dos primeiros geólogos argentinos, Juan José Nágera, analisando o solo, o clima, a água e o vento, sugeria o local como apto para a fundação de uma cidade no chamado então “Alto de San Telmo”. A Comissão Oficial do IV Centenário da Primeira Fundação de Buenos Aires vê também a origem da cidade no Parque Lezama, que fica dentro de San Telmo, mas ainda há muitas controvérsias entre os historiadores. Essa primeira cidade foi abandonada e não logrou desenvolvimento. Somente depois de quase 50 anos, em 1580, Juan de Garay fundará a cidade com o nome de “La Trinidad”, em um local muito perto daquele que teria sido escolhido por Pedro de Mendonza, onde hoje é a Praça de Maio. No começo do século 18, San Telmo ganha um novo impulso com a construção da Igreja Nossa Senhora do Belém. A construção demora 150 anos para chegar no que existe hoje, sendo uma das poucas igrejas que preservou seu projeto original.
Tita Merello
Poucos sabem que em San Telmo nasceu, em 1904, em um “convetillo”, ou uma residência comunitária de famílias pobres, uma das mais importantes atrizes do cinema argentino, Laura Ana Merello, conhecida como Tita Merello, que entre outras coisas importantes de sua trajetória profissional foi atriz da primeira película de cinema sonoro argentino, “Tango”, de 1933, com direção de Luis Moglia Barth, e depois veio a participar de dezenas de filmes. Ainda adolescente, Tita começou a fazer teatro de revista. Alguns moradores do próprio bairro dizem que ela não tinha uma “boa reputação”, pois mantinha posturas avançadas nos relacionamentos amorosos para os valores da época.
Uma grande exposição de imagens de sua vida e trajetória profissional foi aberta em outubro no salão principal do Teatro San Martin, como comemoração de 100 anos de seu nascimento, e pude perceber a emoção de duas velhas senhoras, de braços dados, apoiando-se mutuamente, que permaneceram quase uma hora em pé em frente a um telão, vendo imagens de Tita em filmes, programas de televisão e entrevistas. Fiquei ao lado delas e ouvi expressões de apreço e respeito: “Como estava bonita nesse filme”; “... como estava velhinha nessa entrevista”. Pude perceber o encontro com a memória dessas duas senhoras com um mito do cinema. Elas saíram de suas casas para ver fotos de toda uma vida, e também os vestidos e as jóias especialmente desenhados para atriz, além de alguns objetos que tinha quando morreu, entre os quais um pequeno rádio de pilha e algumas imagens sagradas.
Mercado
Construído em 1891, o Mercado de San Telmo também é uma atração turística nos fins de semana, quando as barracas de antigïdades e coisas de todos os gêneros tomam conta do lugar. Entretanto, tem uma dinâmica que passa despercebida pelo visitante: a loja de armarinho, a costureira em sua pequena oficina com um horário de atendimento muito estranho, a loja de roupas industriais, os pequenos armazéns com quase tudo de presuntos e queijos os mais variados ou, ainda, os açougues (podemos ver de perto o desossar de um quarto de boi), e boxes de verduras e frutas.
O movimento de fim de semana oculta uma vida que acontece principalmente nos dias de semana, quando a população do bairro ali vai às compras, há mais de 50 anos no mesmo açougueiro ou padeiro. Angel Bellusci mantém o puesto 133 há 43 anos, a “Panaderia y Galletitas Angelito”, e pensa quando se aposentar em fazer o mesmo que seu vizinho: passar o ponto para um negociador de “antigüidades”. A mudança do perfil do mercado começou há três, quatro anos, e acentuou-se há somente um ano. A transformação turística do local deve levar os moradores a mudar de hábito e ir aos pequenos supermercados que pipocam em Buenos Aires, principalmente de imigrantes asiáticos.
Arqueologia urbana
Percorrendo perdido as ruas de San Telmo deparei, por acaso, com um espaço diferenciado, com esculturas, pinturas, expressões políticas e inúmeros pequenos cartazes com nomes. Embaixo de uma confluência de viadutos, uma escavação se anuncia como emaranhado urbano. Um trabalho arqueológico de tempos recentes, tentativa de recuperar as informações de um passado muito presente ainda na vida dos argentinos o desaparecimento de milhares de pessoas durante a ditadura militar, está em processo. Nesse local funcionou um centro clandestino conhecido como “Club Atlético”, entre fevereiro e dezembro de 1977.
A partir de uma demanda de um grupo de sobreviventes e de organismos de Direitos Humanos, o governo da Cidade de Buenos Aires começou, a partir de abril de 2002, uma primeira iniciativa de arqueologia urbana relacionada à memória dos crimes cometidos pelo Estado na Argentina. A memória que se tentou ocultar com a abertura da Autopista 25 de Mayo ganha outra visibilidade assim que as estruturas das celas aparecem sob os viadutos. Fragmentos de uniformes, sapatos, bonés, garrafas, moedas e elementos de plásticos são hoje elementos ressignificados. O objetivo é uma recuperação documental e testemunhal dos sobreviventes como um lugar de memória das atrocidades da ditadura militar. O lugar é feio, sujo e escuro, com muitos ruídos de caminhões e ônibus. Trata-se de um local grotesco, aumentando ainda mais o clima de indignação. São tristes marcas de perda e de ausência. Com muita dor, o povo argentino está recuperando essa história, para que jamais se repita.
O visitante passageiro de San Telmo naturalmente não tem tempo de perceber as agruras do tempo e de muitas das significações do bairro, mas ao apressar-se em ir embora, logo quando as barracas já foram desmontadas no final da tarde, não irá perceber um grupo de pessoas de todas as idades que se reúnem em um dia frio de fim de inverno, ou um pouco mais cálido de primavera, para calmamente bailar tango na Praça Dorrego, com a sensualidade e paixão dos movimentos da dança, acentuadas pelo dramaticidade musical de seu ritmo.
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Fernando de Tacca é fotógrafo, mestre em Multimeios (Unicamp), doutor em Antropologia (USP), professor no Departamento de Multimeios/IA, e editor da Revista Studium (www.studium.iar.unicamp.br). Assumiu a Cátedra de Estudos Brasileiros na Universidade de Buenos Aires, com curso de pós-graduação sobre Antropologia e Imagem no Brasil, pelo Programa Cátedras Unicamp & Universidades Espanholas.