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Para a morte ser
vista com naturalidade
CLAYTON LEVY
Otto Lara Resende disse, certa vez, que a morte é, de tudo na vida, a única coisa absolutamente insubornável. De fato, ninguém consegue ludibriá-la. Morrer é inegociável. Trata-se de um evento tão natural quanto nascer, crescer ou ter filhos. Entretanto, a maneira como esse fato inevitável é encarado varia de pessoa para pessoa, de cultura para cultura. Em geral, a idéia da finitude aterroriza o ser humano. Não é por acaso, portanto, que nos últimos anos inúmeros trabalhos científicos vêm sendo publicados na tentativa de desmitificar a morte. Entre os autores que atuam no Brasil, um dos destaques é o psicanalista Roosevelt Cassorla, professor titular colaborador do Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp e membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Considerado um dos maiores especialistas em tanatologia do país, ele diz que na Unicamp têm sido efetuadas pesquisas sobre o tema e também sobre suicídio. Parte delas está reunida nos livro “Da morte: estudos brasileiros” e “Do suicídio: estudos brasileiros”, ambos assinados por Cassorla e publicados pela Editora Papirus. Segundo ele, falar sobre a morte talvez seja um bom começo para que o tema seja tratado com mais naturalidade. É isso que o Jornal da Unicamp pretendeu ao ouvir Cassorla, na entrevista que segue.
Jornal da Unicamp Por que a morte ainda é um tabu para a maior parte das pessoas?
Roosevelt Cassorla A morte se constitui no fato mais assustador da vida, certamente o maior deles frente ao qual não temos controle, previsão e qualquer compreensão. Mesmo as compreensões religiosas não são necessariamente suficientes para nossa mente inconsciente. Frente ao pavor da morte, seja lá o que ela for, nossa mente usa mecanismos inconscientes, sendo o que se chama cisão e projeção desse pavor o mais importante. Graças a ele, a morte, ou melhor, o pavor da morte, é projetado (colocado fora da mente) e identificado com perseguidores externos. Dessa forma, podemos “proteger-nos” dela evitando ou atacando esses supostos perseguidores. Em termos sociais e culturais, a morte pode ser produto dos deuses ou demônios, fruto de transgressões que efetuamos (como o pecado original), resultado da inveja de outros, de feitiços, quebras de tabus, de inimigos, etc. Enfim, temos que encontrar alguma explicação. Não suportamos o “não saber”. À medida que a ciência destrona as crenças e a religião, o indivíduo tem que se defrontar com esse pavor, com esse não saber, e poderemos identificar dois mecanismos. Primeiro, a negação: trata-se de um mecanismo psicológico em que não percebemos a realidade. É como se ficássemos cegos a ela. A negação da morte faz parte de nossa cultura atual. Por isso nos afastamos dela, ou quando nos defrontamos com ela, nossa mente faz o possível para que nada sintamos e nos esqueçamos logo do assunto. Curiosamente, o fato de sermos bombardeados constantemente por notícias de morte, numa sociedade violenta, faz com que também nos anestesiemos para evitar contato com a realidade, e a projetamos nos outros. Isto é, os outros morrem, eu não. O segundo mecanismo é a medicalização: a explicação da morte passa a ser a doença. Todos morremos hoje, por doenças. Espera-se que o sistema médico e de saúde dê conta disso. A impossibilidade ou dificuldade de aceitar a morte faz com que o sistema de saúde seja constantemente acusado por mortes, mesmo que inevitáveis. Procuram-se tratamentos para rejuvenescer. Por outro lado, quando ocorre a morte, evita-se ao máximo o contato com o morto e os sentimentos envolvidos. Os rituais, necessários para a elaboração de um luto, são abandonados ou feitos em forma mecânica. Aos poucos, cria-se uma “industrialização” da morte, em que empresas maquiam o morto, preparam cerimônias artificiais e todos retomam sua vida rapidamente, como se nada tivesse ocorrido. Diz-se que, atualmente, a morte substituiu a sexualidade, como algo sujo, que deve ser evitado. Enfim, foge-se da morte, na medida em que ela nos assusta e não temos meios psicossociais para lidar com ela do ponto de vista emocional. Certamente a atual cultura da não-reflexão e do prazer imediato, do não suportar a frustração, contribui para tudo isso.
JU A sociedade moderna ainda prefere ignorar a morte do que falar abertamente sobre o tema. Esse comportamento traz alguma conseqüência do ponto de vista social e psicológico?
Roosevelt Cassorla O não-poder lidar com a morte dificulta o trabalho de luto. Chamamos trabalho de luto ao esforço que nossa mente deve fazer, inconscientemente, para aprender a viver com a realidade, com as perdas, todas elas, inclusive a morte. Esse processo é bastante conhecido pelos psicanalistas e implica num isolamento, ruminações sobre o morto, lembranças, culpas, remorsos, tristeza, depressão e após algumas semanas é como se a imagem do morto tivesse sido “encaixada” no mundo interno. Dizemos que o luto foi “elaborado”, isto é, que o indivíduo pôde colocar todas as lembranças, fantasias, culpas, expectativas, em relação à perda, na sua rede simbólica, enriquecendo sua possibilidade de pensar, e podendo retomar a vida. Sem esquecer-se do morto, e enriquecido pelas lembranças boas, e sem que o morto o incomode dentro de sua mente. Para que o trabalho de luto se processe adequadamente, o indivíduo deve ter a oportunidade de falar sobre sua perda, de receber acolhimento familiar e social, de poder entristecer-se, desesperar-se, culpar-se, etc., a sociedade aceitando isso como algo natural. Rituais religiosos e culturais facilitam isso. Se a sociedade não fornece esse espaço, exigindo que o indivíduo não sinta, ou que vê esses sentimentos como vergonhosos, o processo de luto é dificultado. Os resultados serão processos melancólicos, somatizações, dificuldades em retomar a vida, risco suicida, desistência da vida, sentimentos de culpa etc. Isso pode perseguir o indivíduo por toda a vida, e pode espalhar-se por gerações, através de identificações patológicas. Possivelmente grande parte do sofrimento mental atual decorre de bloqueios no trabalho de luto, por fatores sociais, e aqui temos não somente o luto por morte, mas por outras perdas, como oportunidades, trabalho, afeto, respeito, etc.
JU A diversidade cultural resultou numa variedade enorme de significados para a morte. Para alguns é algo terrível, enquanto para outros é algo natural. De que maneira essa mistura de significados contribui para a aversão que o homem contemporâneo tem em relação à morte?
Roosevelt Cassorla A morte antes fazia parte do dia-a-dia. Ela atingia jovens e crianças, e muitas pessoas doentes tinham menos chances de sobreviver. As pessoas morriam em casa, cercadas por seus familiares e conhecidos. Crianças vivenciavam o processo de morte dos adultos e velhos e a convivência com essa realidade se tornava mais fácil. Rituais culturais e religiosos eram efetuados pela comunidade, antes e após a morte. Enfim, a morte fazia parte da vida. Com os avanços do saneamento, da medicina, etc, pessoas passam a viver mais tempo. Mudanças culturais, como as assinaladas nas respostas acima, fazem com que se negue a morte. Isso é facilitado pela medicalização: a pessoa morre no hospital, sozinha, comumente no meio de aparelhos, sedada. Não pode despedir-se dos seus, resolver suas pendências emocionais e práticas, não pode escolher sequer como quer morrer. Não pode fazer o luto por sua própria vida, o que permitiria uma morte mais tranqüila. Os estudos atuais pregam o direito a uma morte digna, a escolha se a pessoa tiver condições para tal do tipo e local de morte, o envolvimento afetivo com familiares, etc. Enfim, a desmedicalização da morte, que passa a ser um direito reconquistado. A humanização da Medicina caminha nessa direção.
Livros reúnem pesquisas sobre o tema
JU Falar sobre a morte com um paciente terminal ajuda ou atrapalha? Por quê?
Roosevelt Cassorla O paciente terminal deve ser compreendido e, para isso, o profissional de saúde tem que saber identificar seus sentimentos e emoções, principalmente aquelas não visíveis. O profissional deve identificar quais são as ansiedades e medos que subjazem ao sofrimento ou ao eventual silêncio. O paciente precisa saber que pode contar com uma presença humana, próxima. Isso é básico nos momentos de crise e de passagem. O falar ou não sobre a morte dependerá da necessidade e desejo do paciente. O profissional de saúde sensível, assim como o familiar, o amigo, ou o religioso, devem dar espaço para que o paciente comunique sobre o que quer falar, como se deve falar e o quanto se deve falar. Para tudo isso é necessário um vínculo emocional forte, de confiança. Os profissionais têm que ser treinados a aprender a escutar, não somente palavras, mas mensagens emocionais.
JU - Em sua opinião, os profissionais da saúde estão preparados para enfrentar a morte de um paciente da mesma maneira que estão treinados para salvar sua vida?
Roosevelt Cassorla Em geral são despreparados para lidar com aspectos emocionais de forma geral. Mais despreparados ainda frente à morte. Alguns profissionais particularmente intuitivos se saem bem. Há necessidade de preparo e é isso que fazemos nos cursos do Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria e em outros cursos e grupos de reflexão sobre Aspectos Emocionais na Prática Médica. De minha experiência, o maior problema do profissional é sua dificuldade em entrar em contato com suas próprias emoções.
Aprendendo a lidar com o luto
Organizadora do livro “Reflexões sobre a Vida e a Morte Abordagem interdisciplinar sobre o paciente terminal”, publicado pela Editora da Unicamp, a psicóloga Vera Lúcia Rezende também se tornou um nome respeitado quando o assunto é tanatologia. Supervisora da Seção de Psicologia do Centro de Atenção Integral à Saúde da Mulher (CAISM) ela diz que a morte deve ser encarada como uma das etapas da vida, provavelmente a mais crucial. “Poderá ser vivida como uma das experiências mais ricas e importantes, como uma das mais solitárias e negativas, tanto para o paciente como para a família”, explica.
Em geral, segundo Vera, as famílias ficam perdidas, confusas e inseguras. Muitas vezes, temendo a morte em casa, insistem na hospitalização por um tempo maior do que o necessário. “No entanto, voltar para casa, rever um filho ou visitar um local fazem parte do processo de despedida e separação que o paciente necessita fazer”, observa. “E quanto mais ele puder viver cada momento e cada etapa, melhor”, completa. Segundo ela, para a família, estar próximo, acompanhar e cuidar é desgastante, mas é um dos fatores que mais favorece os sentimentos de serenidade e de aceitação.
“Aqueles membros que não conseguem estar mais próximos, em geral, apresentam uma tendência a apresentarem mais conflitos e culpa”, afirma. Em muitos casos, segundo Vera, é necessária apenas uma orientação adequada para se observar mudanças no comportamento familiar. Outras vezes é preciso respeitar os limites psíquicos de cada um, sem cobrar, mas com compreensão. “Não é fácil perceber todas essas necessidades e sentimentos”, diz. Por isso, explica a psicóloga, é importante que pacientes e familiares recebam ajuda adequada no sentido de permitir que façam suas despedidas, a sua maneira, e favorecer o processo de elaboração de um luto normal.
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