“Sim, o risco de uma pandemia existe, mas é praticamente impossível de ser quantificado”, diz o infectologista Luiz Jacintho da Silva, professor da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp. “Esse risco sempre existiu independente do que está acontecendo agora na Ásia e na Europa”, concorda a infectologista Nancy Bellei, pesquisadora de vírus respiratórios da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Segundo os especialistas, o que vai determinar ou não uma epidemia em escala mundial é a mutação (transformações em sua estrutura genética) do vírus causador da influenza (gripe) a ponto de gerar uma cepa completamente nova, para a qual toda a população é suscetível. Geralmente este fenômeno acontece quando uma cepa, que originalmente só infectava animais, como as aves, atravessa a barreira das espécies, passa a infectar diretamente os seres humanos e, posteriormente, adquire a capacidade de transmissão inter-humanos.
O vírus que está infectando aves na Ásia e na Europa atende pelo nome de H5N1. A sigla faz referência à hemaglutinina (H) e à neuraminidase (N), proteínas que estão no envelope externo do vírus (espécie de cápsula). Cada cepa tem uma composição diferente de hemaglutinina e neuraminidase. A cepa em questão é do tipo H5 (existem H1 até H16) e N1. A hemaglutinina se liga às células humanas permitindo a entrada do vírus. A contaminação de humanos pelo H5N1 é algo recente e, até agora, tem ocorrido somente de aves para pessoas. Mas se um vírus aviário receber um “envelope mais humano” após sofrer uma mutação, ele adquire a capacidade de transmissão inter-humanos, abrindo caminho para a pandemia.
Há pelos menos dois cenários que favorecem mutações capazes de tornar o vírus transmissível de humano a humano. Um deles, chamado de “mix de código genético”, ocorreria da seguinte forma: uma pessoa é infectada, ao mesmo tempo, por um vírus da gripe aviária e por outro influenza, como o que causa a gripe comum. Os dois vírus entram nas células do hospedeiro e começam a se multiplicar. Numa dessas replicações, o material genético dos dois tipos de vírus se misturam e recombinam num terceiro tipo. Este novo vírus pode ter características que permitam a transmissão direta de pessoa para pessoa.
“A disseminação do H5N1 entre aves aumenta em muito a probabilidade de interação com um vírus humano e a possibilidade de ocorrer uma mutação”, diz Luiz Jacintho. “Uma recombinação com outro vírus deverá ocorrer em algum momento; é mais provável ocorrer do que não ocorrer”, completa.
“A chance existe, mas sabe-se por experiência que as co-infecções não são extremamente freqüentes”, observa Nancy. Ela admite, porém, que se uma contaminação desse tipo acometesse uma ou duas pessoas num país populoso, por exemplo a China, seria o suficiente para a epidemia eclodir.
A segunda possibilidade, chamada de “mutações acumuladas”, ocorreria da seguinte forma: quando o vírus infecta um organismo, ele estimula o sistema imunológico e o corpo envia células de defesa para destruí-lo. Para enganar o sistema imunológico, muitos vírus sofrem pequenas mudanças nas proteínas que ficam em sua superfície. No influenza, tais mutações ocorrem com freqüência porque o vírus tem um mecanismo que permite erros no código genético durante a replicação viral. Numa dessas mudanças, o vírus pode se tornar transmissível entre humanos.
“Esse é um caminho bem provável”, diz Nancy. Segundo ela, as condições para que a mutação ocorra são intrínsecas ao vírus. “Quanto mais o vírus se replica, ou seja, duplica sua carga genética para fazer novos vírus, mais chance ele tem de sofrer mutações”, explica. As mutações, de acordo com a especialista, tanto podem ampliar quanto diminuir o seu grau de virulência. “Ao invadir a célula são milhões de vírus e todos eles estão mudando”, diz. “É uma loteria e, em algum momento, pode haver uma determinada mutação que permita a transmissão entre humanos”.
Há ainda, segundo os especialistas, uma terceira possibilidade, não de todo descartada. Nesse outro cenário, ocorreria o mesmo mecanismo do “mix de código genético”, só que o hospedeiro seria um mamífero de outra espécie em vez do homem. Um suíno, por exemplo. A recombinação dos vírus no organismo do hospedeiro criaria as condições necessárias para a sua transmissão entre humanos.
“Todos esses cenários são possíveis, mas é impossível prever qual ocorrerá primeiro”, analisa Luiz Jacintho. Na Indonésia, por exemplo, porcos pegaram H5N1 de aves. São mamíferos que se contaminam facilmente com gripes aviárias. Se, eventualmente, um dos suínos contaminados pelo H5N1 também estiver contaminado pelo influenza da gripe comum, pode ocorrer o quadro que a revista New Scientist descreve como de “pesadelo”: a junção dos dois, resultando num híbrido. O vírus resultante pode ter as características mortais do H5N1 e o grau de contágio duma gripe comum.
Não se trata de mera especulação. Estudos recentes do código genético do H1N1, causador da Gripe Espanhola (responsável por 40 milhões de mortes em 1919) revelaram semelhanças “impressionantes” entre aquele vírus e a cepa H5N1, causadora do atual surto da doença entre aves da Europa e da Ásia. Para alguns observadores, isso sugere que foram necessárias mudanças relativamente pequenas para que um vírus aviário como o de 1918 passasse a infectar humanos. “É provável”, diz Nancy. “Talvez o vírus tenha conservado o miolo de H5 mas desenvolvido o envelope de H1, e aí ficou mais transmissível”, especula. “A genealogia viral é muito difícil de estabelecer com o material obtido daquela época”, completa.
Caso o causador da atual gripe aviária aprenda a “saltar” de pessoa para pessoa uma pandemia é quase certa. Entretanto, segundo os especialistas, ainda é cedo para falar no mesmo grau de letalidade causado pelo vírus da gripe espanhola. “O vírus de agora também é extremamente patogênico, mas não dá para saber”, diz Nancy. “Quando um vírus é muito patogênico e letal, geralmente transmite menos”, completa. “Ainda não dá para especular sobre a letalidade e virulência de uma cepa pandêmica descendente do atual H5N1”, analisa Luiz Jacintho. Ele pondera, porém, que, se já ocorreu com a cepa de 1918, poderá acontecer novamente. “Teoricamente é possível”.
Sabe-se que o intervalo entre as três principais pandemias de influenza que ocorreram no século passado foi de 39 anos entre as chamadas Gripe Espanhola e a Gripe Asiática e de 11 anos entre esta e a Gripe de Hong Kong. Segundo os especialistas, não é possível prever exatamente quando uma nova pandemia ocorrerá, mas é viável, por meio do monitoramento dos vírus influenza e da situação epidemiológica nacional e internacional, identificar indícios de que este fenômeno possa estar mais próximo de acontecer.
Apesar das especulações, todas as contaminações humanas registradas no episódio atual foram transmitidas por aves. O H5N1 está presente nas fezes, sangue e secreções respiratórias das aves infectadas. A contaminação humana pode ocorrer pelo contato direto com as aves infectadas por meio de inalação dessas secreções (inclusive durante a limpeza e a manutenção nos aviários ou criadouros sem os cuidados necessários de proteção) ou durante o abate ou manuseio de aves infectadas. Segundo a OMS, não foi evidenciada transmissão pela ingestão de ovos ou pelo consumo de carnes congeladas ou cozidas de aves infectadas.
Uma vez no organismo, o H5N1 desencadeia um quadro mais grave que a gripe comum. “A gravidade dessas cepas se manifesta pela capacidade de causar pneumonia viral e falência múltipla de órgãos”, diz Luiz Jacintho. Normalmente, os vírus da influenza acometem células do trato respiratório. “No caso do H5N1 também há, além dos sintomas respiratórios, diarréia, encefalite, febre, dor abdominal, náuseas e coma”, explica. “Cepas muito virulentas, como se crê tenha ocorrido em 1918, seriam capazes de infectar outras células, de outros órgãos”, explica.
Até o momento, não foi desenvolvida uma vacina capaz de combater o H5N1. Pesquisas estão sendo desenvolvidas e os governos da Hungria e da Austrália afirmaram que obtiveram resultados efetivos nos últimos testes. Sem um agente que previna o organismo contra a ação do vírus, a única alternativa até agora é o antiviral Tamiflu, produzido exclusivamente pelo laboratório farmacêutico suíço Roche Holding. O medicamento mostrou-se eficaz no tratamento da gripe aviária em humanos. Esta droga, juntamente com outra semelhante, o zanamivir, age inibindo a liberação do vírus da superfície celular, impedindo assim sua replicação. Mas os especialistas desaconselham uma corrida às farmácias para estocar o produto em casa. “Quem estiver doente deve procurar o médico”, diz Nancy. Outra medida é manter-se bem informado.
O governo brasileiro acertou a compra do antiviral Tamiflu, numa quantidade suficiente para tratar 9 milhões de pessoas. Ainda não está definida quando chegará a primeira remessa do medicamento. Na compra, foram gastos R$ 193 milhões. O Ministério da Saúde também deverá providenciar o treinamento de pessoal, o monitoramento de aves migratórias, a fiscalização das importações e a restrições de animais vivos de um estado para outro. Na opinião de Luiz Jacintho, porém, caso a pandemia ecloda, seria impossível impedir a sua entrada no Brasil. A melhor estratégia, segundo o infectologista, seria retardar a disseminação, ganhando tempo até que se tenha disponível uma vacina, e reduzir a mortabidade da epidemia.
Butantan vai desenvolver vacina
O governo federal destinou R$ 3,1 milhões para o Instituto Butantan com o intuito de acelerar a construção de uma unidade de produção de vacina contra a gripe aviária asiática, provocada pelo vírus H5N1. A unidade deverá ficar pronta em janeiro. O Instituto é responsável pela produção de 82% das vacinas no país, inclusive a de prevenção ao Influenza, causador da gripe comum. A Organização Mundial da Saúde (OMS) tem a intenção de reservar um estoque estratégico da vacina, para prevenção em caso de epidemia global, e a auto-suficiência do Brasil seria bem-vinda.
Nenhum país iniciou a produção da vacina em larga escala, mas a OMS já disponibilizou o lote-semente que servirá de matriz. Segundo o Ministério da Saúde, a expectativa é que o País possa iniciar a fabricação da vacina já em 2006. O plano prevê, inicialmente, a produção de 100 mil doses para reserva e ação rápida em caso de pandemia. Há cerca de um mês, o diretor do Instituto Butantan, Isaias Raw, representou o Brasil na 2ª Conferência Européia de Influenza, realizada em Malta. Na oportunidade, apresentou à OMS proposta para que o País seja um dos núcleos mundiais da produção de vacina. Em entrevista ao Jornal da Unicamp, Isaias Raw analisa a escalada da epidemia na Ásia e fala sobre a produção da vacina no Brasil.
Jornal da Unicamp – A gripe aviária
na Ásia e na Europa colocou o mundo outra vez
em alerta. Há motivo para pânico?
Isaias Raw – Por enquanto o vírus passou de aves para pessoas mas ainda não foi transmitido de um ser humano para outro ser humano. Enquanto o vírus não se adaptar a ponto de passar de uma pessoa para outra, não haverá pandemia.
JU – Na sua opinião, quais
as chances do vírus passar por uma mutação
que o torne capaz de ser transmitido de uma pessoa
para outra?
Isaias Raw – O vírus muda
continuamente por dois processos diferentes. No primeiro
deles, o vírus da gripe aviária e o
vírus da gripe comum entram simultaneamente
num mesmo hospedeiro dando origem a um vírus
híbrido capaz de ser transmissível de
pessoa para pessoa. No outro, o próprio vírus
da gripe aviária vai acumulando mutações
até desenvolver condições para
transmissão de humano a humano. Obviamente
o mundo tem de estar preparado, mas até agora
não existe nenhuma evidência garantida
de que haverá uma pandemia.
JU – O retrospecto histórico
registra pandemias de gripe no espaço médio
de vinte ou trinta anos. A última grande contaminação
em massa foi a Gripe de Hong Kong em 1968, quando
46 mil pessoas morreram. Essa projeção
deve ser levada em conta ou não passa de mito?
Isaias Raw – É a mesma
coisa que dizer que um vulcão entra em erupção
a cada vinte ou trinta anos. Esse cálculo é
uma loteria, não tem nenhum significado.
JU – Vacinas estão sendo desenvolvidas
e os governos da Hungria e da Austrália afirmaram
que obtiveram resultados efetivos nos últimos
testes. O senhor acha que desta vez a ciência
está próxima de uma vacina definitiva?
Isaias Raw – A Organização
Mundial da Saúde encarregou certas instituições,
principalmente as norte-americanas e inglesas, de
fazer os lotes-semente para produzir a vacina. Essa
semente é produzida todos os anos para a gripe
comum e a OMS disponibiliza para todos os produtores
de vacina. É a mesma vacina padrão no
mundo inteiro. No caso da gripe do frango, a semente
será produzida a partir do H5N1. Por um processo
de atenuação, mudam-se dois aminoácidos
do vírus para que se transforme numa vacina
que não é agressiva e que portanto pode
ser usada. A vacina não é viva.
JU – A ciência e a tecnologia
evoluíram significativamente nos últimos
anos, mas a ameaça de uma pandemia de gripe
continua ameaçando o mundo. Por que é
tão difícil desenvolver uma vacina 100%
eficaz?
Isaias Raw – O problema é
que todos os vírus, que têm RNA em vez
de DNA (Ácido Desoxirribonucleico Nucléico,
molécula que reproduz o código genético
e é responsável pela transmissão
das características hereditárias de
cada espécie), mudam continuadamente. Quando
a célula sintetiza um DNA, ela tem um conjunto
de enzimas muito bem organizado, que corrige qualquer
erro. Se não fosse isso quase todo mundo teria
uma doença genética. Quando uma célula
se reproduz, o DNA é sintetizado e depois revisado
cuidadosamente e, se houver algum erro, ele tira aquele
pedaço e conserta. Não é o caso
dos vírus em questão, que em vez de
DNA têm RNA (ácido ribonucléico,
molécula-irmã do DNA que também
armazena instruções genéticas
e, ao contrário dele, consegue induzir reações
químicas sozinha). A enzima que produz RNA
não tem essa capacidade de correção.
Então as mutações vão
se acumulando continuamente. Por essa razão,
a gripe nunca é a mesma todos os anos. Isso
torna mais difícil desenvolver uma vacina que
funcione para todos.
JU – A semelhança entre
o vírus da gripe espanhola e a cepa H5N1, causadora
do atual surto da doença entre aves da Europa
e da Ásia, é impressionante, e sugere
que foram necessárias mudanças relativamente
pequenas para que um vírus aviário como
o de 1918 passasse a infectar humanos. Isso seria
um indicativo de que são grandes as chances
de o vírus atual passar a ser transmissível
de humano a humano?
Isaias Raw – Não obrigatoriamente.
Mesmo porque a gripe de 1918 começou como uma
gripe igual a qualquer outra e depois foi piorando.
Pode ser como pode não ser. Em 1957, nos Estados
Unidos, o governo vacinou toda a população
contra a gripe do porco e não aconteceu nada.
JU – Caso o vírus aprenda
a “pular” de humano a humano o senhor
acredita que uma possível pandemia atingiria
as mesmas proporções da gripe espanhola,
com milhões de mortes? Ou seja, o mundo está
preparado para enfrentar um super-vírus?
Isaias Raw – O problema não
é estar preparado ou não. A maior parte
da produção de vacina está concentrada
no Hemisfério Norte, em paises como Inglaterra,
Estados Unidos, Bélgica, França e Canadá.
Se essa vacina for usada para conter o começo
da pandemia na Ásia, não vai ocorrer
nada no mundo. Mas se cada país decidir guardar
a vacina para usá-la só quando a pandemia
chegar em seu território, a essa altura já
esparramou tudo, mesmo porque, com o tráfego
aéreo, o número de gente que anda por
aí é brutal.
JU – O governo federal já
determinou a liberação de recursos para
que o Instituto Butantan passe a fabricar vacinas
contra a gripe aviária, caso a ciência
chegue a uma vacina comprovadamente eficaz. Já
há previsão sobre o início da
produção?
Isaias Raw – O lote-semente deverá
ser embarcado nos próximos dias. Virá
de um laboratório inglês. Temos de preparar
um laboratório rapidamente para iniciar a produção.
Estamos esperando os recursos e a previsão
é de que esse laboratório esteja pronto
em dezembro. Inicialmente a intenção
não é estocar vacina. Primeiro vamos
fazer ensaios para verificar se conseguimos produzir
uma vacina mais eficaz. Isso será testado primeiro
em camundongos e, depois, em voluntários. A
produção efetiva deverá começar
em fins de janeiro.
JU – Este trabalho também
estará sendo feito paralelamente em outros
países?
Isaias Raw – Até agora não houve
pressão para fazer isso. Por isso, de uma certa
forma, estaremos fazendo um pouco na frente dos outros.
Mas no contexto atual é possível que
todos também comecem a fazer a mesma coisa.