Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 309 - 14 a 27 de novembro de 2005
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Desafio da integração é exposto a reitores de diversas
instituições do continente em seminário na Unicamp

O sonho da universidade latino-americana


LUIZ SUGIMOTO



O físico Enio Candotti, presidente da SBPC: "Apesar de tudo, temos nossos ‘pelés’ e ‘maradonas’, que produzem pesquisas importantes" (Foto: Antoninho Perri)O cenário é lúdico: milhares de estudantes circulando pelas universidades de toda a América Latina, que abririam suas portas também para centenas de professores dos países do continente, num intercâmbio acadêmico tão intenso que permitiria criar o conhecimento que nos interessa, em contraposição ao conhecimento que nos impõem os países avançados. “Um jovem da Patagônia receberia seu diploma em uma instituição de Manaus, e vice-versa. Dirão que isto é quase impossível, mas vivemos em um mundo impossível, onde sobreviver todos os dias é muito mais difícil do que atingir tal intento”, sonha o físico Enio Candotti, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC).

Presidente da SBPC lança desafio

Candotti lançou o desafio para as pessoas certas. No 2º Seminário Internacional de Ciência e Tecnologia na América Latina, realizado nos dias 9 e 10 de novembro na Unicamp, estavam presentes os reitores das universidades de Santiago, Córdoba, Rosário, Assunção, República do Uruguai e das federais de Santa Maria e Santa Catarina, além de representantes dos consulados da Argentina, Venezuela, Peru e México, e do Ministério da Educação de Cuba. “Primeiramente, precisamos definir se queremos ou não cooperar. Se queremos, devemos avaliar o que podemos fazer, como abrir as universidades para ampliar a circulação de estudantes e professores, criar programas prioritários de pesquisa para alcançar objetivos claros e definir os instrumentos para isso. É hora de parar com essas reuniões cheias de boas intenções”, provoca.

Marco Antonio Dias, assessor da Universidade das Nações Unidas: "Uma universidade do Pantanal não deve ser necessariamente igual à de Brasília" (Foto: Antoninho Perri)Concretamente, segundo Enio Candotti, já se pensou na criação de fundo de apoio ao desenvolvimento científico e tecnológico, pelo menos no âmbito do Mercosul. “Ele funcionaria nos moldes de uma Fapesp ou da Fundação Ford, reunindo recursos que poderiam vir do Banco Interamericano, de instituições governamentais de fomento e de fundações privadas dos países membros. Teríamos, assim, um instrumento concreto para fomentar a cooperação. Sempre se coloca a falta de dinheiro como empecilho, mas não precisamos de tanto e nem é difícil consegui-lo, basta procurar um pouco”, argumenta.

Durante o seminário na Unicamp foi reiterado que a América Latina está relegada aos últimos lugares em investimentos na pesquisa e desenvolvimento, respondendo por apenas 1% dos gastos globais, e contribuindo com 4% da produção científica. Sobre isso, o presidente da SBPC alerta para o interesse dos europeus em atrair os melhores estudantes latino-americanos, porque não têm como formar jovens para suas atividades em ciência e tecnologia em número suficiente para atender à demanda. “É um ‘rapto’ que está sendo planejado com muita habilidade diplomática. Apesar de tudo, temos nossos ‘pelés’ e ‘maradonas’ que produzem pesquisas importantes. Se não nos prepararmos para dar condições aos jovens talentos para permanecer na região, passaremos a meio por cento”, observa Enio Candotti.

Manobras – Na mesa-redonda em que se debateu a internacionalização das universidades, o professor Marco Antonio Dias, assessor da Universidade das Nações Unidas, atentou para outras manobras dos países desenvolvidos na área da educação superior. Lembrando que o conhecimento, hoje, é o elemento central da economia e que a globalização se apóia fortemente no desenvolvimento das novas tecnologias da informação e da comunicação, Dias informa sobre um documento do Banco Mundial, cuja filosofia é basicamente economicista, sustentando a transformação da educação superior em serviço comercial. “O documento segue os princípios do Consenso de Washington e estimula a privatização e a comercialização da educação”, acusa.

O escritor chileno Miguel Rojas Mix:"Querem trocar o que chamam de torre de marfim pela torre de shopping" (Foto: Antoninho Perri)De acordo com Marco Antonio Dias, muitos que falam sobre internacionalização da educação passam a confundir cooperação com venda de produtos educativos, como se esses produtos pudessem beneficiar os países em desenvolvimento, que só assim teriam acesso ao saber. “Agindo sob uma aparente neutralidade, os que defendem essas concepções colaboram para a instalação de sistemas educacionais neocolonialistas, que não respondem a necessidades específicas dos países em desenvolvimento. Uma universidade do Pantanal não deve ser necessariamente igual à de Brasília, e não tem de copiar Oxford nem vice-versa”, comenta.

O assessor da ONU informa, a propósito, que em outubro a Conferência Geral da Unesco aprovou, pela quase totalidade dos países, texto contendo uma série de princípios que reserva aos povos o direito de estabelecer suas ações nos campos culturais e educativos condizentes com suas culturas e necessidades. Por outro lado, recusaram-se a aprovar documento visando constituir um sistema internacional de reconhecimento de títulos e diplomas controlado por países ricos. “O não-reconhecimento teria implicações econômicas, políticas, culturais e educacionais imediatas. O fato de o documento não ter sido aprovado é um fato isolado, pois estamos falando de um processo que vai continuar através de uma série de mecanismos”.

Função pública – O escritor chileno Miguel Rojas Mix criou o Centro Extremenho de Estudos e Cooperação com a América Latina, sediado na Espanha e que deu origem à Cumbre – reunião de reitores de universidades públicas ibero-americanas. “Na primeira reunião, em Santiago, assinalei que no Chile não havia universidade pública, e sim universidade estatal. Isso porque os móveis, edifícios e professores eram pagos pelo Estado, mas as universidades não cumpriam nenhuma função pública. De uma universidade que cobra taxas de cinco mil dólares ao ano, não se pode afirmar que está garantindo a igualdade de condições que a constituição deve garantir”, afirma.

Rojas Mix, no debate sobre internacionalização das universidades, preocupava-se em estabelecer as diferenças entre elas. A seu ver, também é preciso diferenciar a universidade privada, que por vezes atua pelo interesse público, da universidade neoliberal, que assume fundamentalmente o papel de escola profissional. “A formação humanística, cívica, e o compromisso com a sociedade não estão representados no conceito da escola profissional. Os neoliberais querem acabar com a escola tradicional, fazendo pesadas críticas à universidade pública porque ela seria incompetente e ineficiente por não implicar em benefícios para o mercado. Querem trocar o que chamam de torre de marfim pela torre de shopping. O pior que pode ocorrer à universidade pública é converter-se em escola profissional”, adverte.

Diante deste embate, Rojas Mix afirma a importância de se pensar a universidade do século 21, e faz mais uma distinção, entre sociedade da informação e sociedade do conhecimento. “A sociedade da informação é um caudal do desenvolvimento, mas não é o mesmo que sociedade do conhecimento. O conhecimento é a informação processada. E os critérios para processar a informação, quando se pretende a integração dos nossos países, têm a ver com aquilo que serve para o nosso desenvolvimento e para a nossa identidade. Transformar a sociedade da informação em sociedade do conhecimento é a tarefa fundamental da universidade”.

 

O esforço da AUGM

O professor Julio Theller, secretário acadêmico da AUGM: "A América Latina corre o sério risco de ficar à margem do progresso mundial" (Foto: Mani Maria Pereira)“Houve o tempo em que os recursos naturais eram a riqueza mais importante de um país e o seu motor de desenvolvimento, colocando a Argentina, por exemplo, como uma das sete potências do mundo no início do século 20. Hoje está claro que a maior riqueza é o conhecimento, e os países mais desenvolvidos são aqueles que melhor utilizam seus recursos humanos. Nesse sentido, a América Latina é um continente que corre o sério risco de ficar à margem do progresso mundial”, afirma o professor Julio Theller, secretário acadêmico da Associação de Universidades Grupo Montevidéu (AUGM), que esteve na Unicamp para o 2º Seminário Internacional Ciência e Tecnologia na América Latina.

O encontro para debater temas como o papel das universidades no desenvolvimento científico e tecnológico, a internacionalização dessas instituições e suas relações com as empresas para promover a inovação, trouxe a Campinas reitores e pesquisadores de vários países do continente. “Tivemos mais de trezentas inscrições para o seminário, o que demonstra o grande interesse em estreitar as relações entre as instituições latino-americanas. A presença marcante de reitores é importante para identificarmos os pontos mais relevantes para o desenvolvimento da ciência e tecnologia, estabelecendo os passos seguintes a partirO professor Luís Cortez, coordenador da Cori: "A presença marcante de reitores é importante para identificarmos os pontos mais relevantes para o desenvolvimento da ciência" (Foto: Antoninho Perri) desta sinalização. Nesse sentido, a AUGM é uma parceira fundamental”, observa o professor Luís Cortez, coordenador da Coordenadoria de Relações Institucionais e Internacionais (Cori) da Unicamp, que organizou o seminário.

A AUGM é uma rede de 18 universidades públicas da Argentina, Brasil, Paraguai, Uruguai e Chile que nasceu juntamente com o Mercosul, em 1991. “É um espaço acadêmico ampliado para cerca de 800 mil estudantes e 70 mil acadêmicos, onde ocorrem atividades importantes como a discussão de grandes temas através da rede e jornadas anuais de jovens pesquisadores, sobre temas como saúde, desenvolvimento regional, meteorologia, educação”, explica o professor Rafael Guarga, secretário executivo da organização e reitor da Universidade da República do Uruguai. Julio Theller destaca ainda os programas de mobilidade estudantil e de professores, como ferramenta poderosa de integração regional. “Em 2006, a Unicamp enviará 40 alunos a outras universidades da AUGM e receberá 40 desses países. Este semestre de estudos em outra instituição é reconhecido na carreira do estudante”, explica Theller.