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Pesquisadora da Unicamp recebe prêmio internacional por criar ‘escala de estigma na epilepsia’
O tamanho do preconceito
"Você contrataria uma pessoa que sofre de epilepsia para trabalhar em sua casa?”. Esta foi uma das perguntas que a psicóloga Paula Teixeira Fernandes dirigiu aos entrevistados, em pesquisa de doutorado para dimensionar o tamanho do preconceito diante de pessoas com epilepsia. “Muito se fala do estigma na epilepsia, mas nunca se pensou em um instrumento para avaliar a sua magnitude dentro da sociedade. O que estimula o estigma é a crise epiléptica, fenômeno que ainda assusta e desconcerta”, afirma a psicóloga, que defendeu a tese no início de outubro, sob orientação do professor-doutor Li Li Min, do Departamento de Neurologia da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp
Doença atinge 3 milhões de brasileiros
Epilepsia é uma palavra de origem grega que significa “ser invadido” ou “ser possuído”. O preconceito, portanto, existe desde a origem da palavra e ainda hoje vemos pessoas que buscam a cura neste sentido: para se livrar de um “mal sagrado”, de uma “possessão demoníaca”. Na verdade, a crise epiléptica é desencadeada quando um grupamento de neurônios deixa de funcionar adequadamente por um breve tempo. O cérebro passa a enviar impulsos elétricos de forma errônea, levando a manifestações clínicas em diferentes partes do corpo: a pessoa cai, se debate e saliva em excesso. De modo figurado, o que acontece é um curto-circuito, que geralmente dura um ou dois minutos.
Estima-se que aproximadamente 3 milhões de brasileiros (de 1% a 2% da população) tenham epilepsia, mas entre 70% e 80% deles poderiam estar com as crises controladas utilizando medicamentos de baixo custo, levando uma vida plenamente normal. A convulsão ou a crise “tônico-crônica”, que testemunhamos nas ruas, corresponde à metade dos casos. Quando testemunhamos uma crise, tudo o que devemos fazer é apoiar a cabeça da pessoa para que não se machuque, virar seu rosto de lado para que não aspire a saliva e esperar o fim da crise. O socorro deve ser chamado em raras ocasiões, como por exemplo, quando a crise se prolonga por mais de cinco minutos ou há crises repetidas sem que a pessoa recobre a consciência.
A outra metade dos casos reúne formas de epilepsia de difícil diagnóstico e que podem passar desapercebidas. Uma delas afeta principalmente crianças, como aquela que está brincando normalmente e, repentinamente, desliga-se do mundo por segundos. Existe ainda a crise “parcial complexa”, em que o paciente se desliga mas mantém o controle dos movimentos, podendo, por exemplo, despir-se sem a consciência de estar em público o que muitas vezes é confundido com transtorno mental. Se na grande maioria dos casos a epilepsia pode ser controlada com apenas um dos quatro medicamentos básicos distribuídos pela rede pública, há aqueles que exigem a associação de remédios com outros tipos de tratamento, inclusive a cirurgia.
Escala A partir de um questionário com cem perguntas abertas “o que é epilepsia?”, “o que sabe sobre o tratamento?”, “quais as dificuldades que a pessoa com epilepsia enfrenta no dia-a-dia?” Paula Fernandes chegou a uma “escala de estigma na epilepsia”, com dez perguntas altamente consistentes e devidamente avalizada por especialistas quanto à sua abrangência para mensuração. Aplicada em 1.850 entrevistados de várias regiões de Campinas, e feitos os cálculos estatísticos, a escala permitiu verificar as diferenças de percepção do estigma conforme o sexo, religião, classe econômica e nível de escolaridade. Como pacientes com epilepsia também foram incluídos no levantamento, pôde-se avaliar como eles próprios percebem o preconceito que os atinge.
“Em nossa região, as mulheres mostraram maior percepção do estigma do que os homens. A escolaridade também influi, pois quanto mais baixa, maior a percepção, o que provavelmente está relacionado com a falta de acesso a informações sobre a epilepsia. Esperávamos que o preconceito se mostrasse acentuado em certas religiões, mas os resultados foram parecidos, diferenciando-se apenas a religião espírita, com uma menor percepção do estigma”, resume Paula Fernandes. Quanto à pergunta inicial desse texto sobre contratar uma pessoa com epilepsia para trabalhar em sua casa , as pessoas com epilepsia responderam prontamente que “sim”, mas a maioria dos não-pacientes descartou a hipótese, alegando risco de complicações no doente ou por puro preconceito.
A escala elaborada por Paula Fernandes inclui questões que visam comparar o estigma na epilepsia com outras condições, como Aids e diabetes. “Foi interessante perceber que o preconceito está muito próximo ao que se tem da Aids, talvez por causa da impressão equivocada de letalidade e de contágio da epilepsia”, observa a psicóloga. Este conceito coletivo mostrou-se bastante presente junto às crianças de 4ª série, que aos 10 anos de idade expõem suas idéias sem preocupação com respostas socialmente adequadas. “A imagem que mais apareceu entre as crianças foi de uma doença que ‘mata, que engole a língua e que pega (contagiosa)’. Ainda hoje, sabemos de alunos que são convidados a se desligar depois de uma crise epiléptica dentro da escola. Eles não são aceitos pelos diretores, nem pelos professores e colegas”, afirma.
Terapia Na opinião de Paula Fernandes, o preconceito contra a pessoa com epilepsia é muitas vezes mais estressante e prejudicial do que a própria condição. Por não encontrar barreiras étnicas, sociais, etárias ou sexuais, a epilepsia é freqüentemente associada com dificuldades psico-sociais. Entre as questões colocadas por pacientes entrevistados na pesquisa em Campinas, sobressaem as dificuldades no mercado de trabalho e nas relações afetivas. “Alguém que admita ter epilepsia dificilmente será contratado e, se trabalha, será demitido na primeira crise. O estigma persegue a pessoa também quando tenta namorar e constituir família. A inserção na sociedade fica muito difícil. Muitos se isolam por vergonha e nem procuram o tratamento adequado”, ressalta a psicóloga.
Paula Fernandes assiste pacientes com epilepsia no ambulatório da FCM e destaca a importância da terapia em grupo para que eles troquem informações e experiências, com o objetivo de melhorar a auto-estima, autoconfiança e habilidades sociais. “O paciente muitas vezes não se sente querido e se acha incapaz de realizações. Não raro, atribui esta incapacidade às crises epilépticas, quando o estigma, na verdade, é que o incapacita. Quem tem a doença sob controle pode levar uma vida normal. Por um lado, nosso trabalho é capacitá-lo para que se insira na sociedade; por outro, devemos preparar a sociedade para melhor recebê-lo, informando corretamente sobre o que é epilepsia. Não adianta convencer o paciente de que ele é capaz se a sociedade não o aceita”.
Trabalho recebe prêmio e
pode direcionar campanhas
Intitulado “Estigma na Epilepsia”, o trabalho de doutorado da psicóloga Paula Teixeira Fernandes Boaventura recebeu o prêmio Young Investigator Award, no 26º Congresso Internacional de Epilepsia, realizado em Paris no final de agosto. Dentre mais 1.400 trabalhos inscritos (número recorde), somente 31 foram selecionados. “Quatro trabalhos premiados são brasileiros: dois de São Paulo, um de Porto Alegre e o nosso de Campinas. É um prêmio importantíssimo, entregue a jovens pesquisadores com menos de 35 anos de idade”, informa a psicóloga, que tem 30 anos. Ela lembra que sua pesquisa originou-se do projeto demonstrativo “Epilepsia fora das Sombras”, campanha global que tem o levantamento do estigma como uma de suas fases.
No Brasil esta campanha internacional é executada pela Aspe (Assistência à Saúde de Pacientes com Epilepsia), organização criada pelo professor Li Li Min, da FCM, e que reúne profissionais da área médica e da Faculdade de Educação (FE) da Unicamp, e também de outras instituições paulistas. “Sabendo como a sociedade percebe o estigma na epilepsia podemos idealizar estratégias de intervenção muito mais efetivas. Todos falam sobre a importância da campanha informativa por meio da mídia, mas essa campanha precisa ser direcionada, como por exemplo, para mulheres, crianças e profissionais da área”, afirma Paula Fernandes, que é secretária executiva da Aspe.
A psicóloga adianta que, em seu projeto para o pós-doutorado, pretende investigar o substrato neural envolvido na percepção do estigma na epilepsia. Segundo ela, já é sabido que certas regiões do cérebro respondem por determinadas funções, como as emoções e a memória, ou que o córtex pré-frontal está associado ao julgamento moral. “A idéia é estudar a percepção do estigma através da ressonância magnética funcional. Tendo um voluntário dentro da máquina de ressonância, vamos aplicar perguntas do questionário e exibir vídeos no intuito de avaliar as regiões do cérebro que são ativadas durante o experimento”, resume Paula Fernandes.
A Aspe Quem consultar a página da Aspe na Internet, em www.aspebrasil.org, terá acesso a informações importantes sobre a epilepsia e também a edições da revista Sem Crise, que traz entrevistas com autoridades e especialistas, informes de associações espalhadas pelo país e depoimentos de pacientes. O professor Li Li Min, contudo, decidiu ir além do esforço para esclarecimento da população, levando a associação a oferecer cursos de qualificação aos profissionais da rede de saúde, visando contemplar, direta ou indiretamente, as 17 mil equipes do Programa de Saúde da Família.
Li Li Min explica que nem sempre é fácil diagnosticar a epilepsia, a não ser nos 50% dos casos de convulsão. A epilepsia não é uma doença em si, podendo advir de um leque grande de doenças. Tampouco, sua causa é única. Um tumor cerebral pode causar epilepsia, assim como má formação do cérebro, traumatismo crânio-encefálico em acidente, defeito genético, problemas no parto. “O diagnóstico surge essencialmente da história que o paciente conta ou do testemunho de quem o vê em crise, não existem aparelhos ou exames que acusem a epilepsia. Daí a importância dos cursos de educação continuada oferecidos pela Aspe e Unicamp”, enfatiza o professor.
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