CARMO GALLO NETTO
A política industrial tecnológica e de comércio exterior do governo federal tem como base cinco áreas principais: fármacos, indústria de softwares, indústria de semicondutores, bens de capitais, e maquinários e agronegócios. Os semicondutores se constituem em um dos pilares dessa política. Nesse setor, o instrumento para viabilizá-lo é o programa CI-Brasil (Circuito Integrado-Brasil), anunciado pelo Ministério de Ciência e Tecnologia (MCT) em agosto último. Um dos programas considerados estratégicos dentro do CI-Brasil é o Brazil-IP (Brazil-Intellectual Property), consórcio formado por oito universidades brasileiras, UFPE, UFRGS, USP, PUC-RS, UFCG, UFMG, UNB e Unicamp, que participa por iniciativa do professor Guido Costa Souza de Araújo, do Departamento de Sistemas de Computação, do Instituto de Computação (IC) da Universidade. Constitui objetivo do consórcio estruturar a área de projetos de circuitos semicondutores (circuitos integrados) no país através de duas missões: em curto prazo, a de aumentar a capacidade do Brasil de organizar atividades de projeto, expondo instituições de P&D a práticas internacionais de avaliação e, em longo prazo, a de agilizar a formação de massa crítica capaz de alavancar empresas brasileiras de projeto, conhecidas como design houses. O professor Guido Araújo considera que “o Brazil-IP procura atingir, na área de microeletrônica, o mesmo objetivo que o projeto genoma alcançou na área de biotecnologia, guardadas as escalas de financiamento”.
Araújo distingue duas vertentes na área de circuitos semicondutores; uma, que elabora o projeto intelectual (intellectual project) dos circuitos integrados (chips); outra, que viabiliza a produção em série desses chips em silício, ao que chama genericamente de fundições de silício. Segundo ele, “fundir silício é uma atividade extremamente cara além de envolver uma das mais sofisticadas tecnologias do planeta. Uma fundição (foundry) moderna de silício custa em torno de um a dois bilhões de dólares. Hoje elas correspondem à olaria que faz o tijolo para uma casa sofisticada em que o projeto muitas vezes vale mais do que seus tijolos. Há uma tendência mundial de valorizar o projeto intelectual, pois é ele que possibilita à fundição vender muito silício”.
De acordo com o docente, atualmente existe um conjunto de empresas que vendem projetos e os entregam para execução das fundições que lhes interessam. “É essa vertente que deveríamos explorar melhor, porque o mercado de projetos tem crescido no mundo em média 22% ao ano. É uma atividade que não demanda investimento gigantesco porque utiliza capital intelectual. São pessoas preparadas”.
Como funciona O Brazil-IP opera como um consórcio em que cada uma das universidades participantes desenvolve módulos IP (Intellectual Property) de semicondutores que podem ser utilizados no projeto de circuitos integrados em sistemas eletrônicos. Funciona de maneira descentralizada fisicamente e possui duas grandes coordenações: a Coordenação Geral, de responsabilidade da professora Edna Barros, da UFPE, e a Coordenação Técnica, dividida entre os professores Guido Araújo, da Unicamp, e Elmar Melcher, da UFCG. Essas coordenações sincronizam as atividades de P&D e acompanham suas execuções junto aos membros do consórcio. “Uma das características relevantes do Brasil-IP é seu caráter distribuído, que permite uma ampla participação de todos os seus membros e, para tanto, preocupamo-nos em manter a vocação colaborativa do consórcio”, diz Guido Araújo.
A rede conta com o apoio financeiro do MCT e tem sólido incentivo de representantes da indústria como a Forte Design Systems (EUA) que, reconhecendo a qualidade do Brasil-IP, estabeleceu parceria fornecendo ferramentas de desenvolvimento, a Freescale Semiconductors (EUA), maior empresa de projetos de CIs (Circuitos Integrados) estabelecida no Brasil, uma das fortes incentivadoras da iniciativa, como é o caso também da brasileira PI Componentes.
Encontro em café originou iniciativa
O professor Guido Araújo lembra que o consórcio Brasil-IP surgiu em 2001 de uma maneira pitoresca. Um grupo de professores de oito universidades brasileiras se reuniu em um café em Porto Alegre, após uma conferência, para discutir de maneira informal a evolução das atividades de P&D no País. Resultou desse encontro a idéia e a motivação para submeter um projeto ao CT-Info, um dos fundos setoriais de informática do governo federal vinculado ao MCT, de apoio à C&T. Logo depois, com financiamento desse fundo, divulgou-se edital para redes na área de informática, o que levou o grupo a se organizar, concorrer e ganhar uma das vagas do edital.
O projeto vencedor propunha a criação de um conjunto de módulos ou IPs, de forma a que cada universidade participante desenvolvesse projetos que passariam a constituir uma única plataforma, um único sistema, denominado “Fênix”, alusão à necessidade do País ressurgir das cinzas na área. Essa plataforma deveria conter os principais e mais importantes módulos de um sistema eletrônico moderno e ser capaz de atender às mais avançadas demandas tecnológicas. O professor Guido Araújo complementa: “A plataforma Fênix é apenas um dos resultados do Brasil-IP, pois o objetivo básico do consórcio é a formação de recursos humanos especializados em projeto. Para atingirmos este objetivo, estabelecemos a meta de projetar uma plataforma moderna para eletrônica de consumo. Para tanto esta plataforma deveria incluir módulos capazes de processar áudio (MP3) e vídeo (MPEG4), de transmitir informações (USB e Bluetooth) e realizar processamento dedicado (8051). Todos os módulos desenvolvidos seguem metodologia de projeto compatível com padrões internacionais e, para isso, o Brasil-IP se tornou membro do Virtual Socket Interface Alliance ((VSIA), um consórcio mundial que define padrões para projetos de IPs”.
O pé das coisas Guido Araújo considera que o Brazil-IP significa o início da recuperação de uma área que estava muito debilitada no Brasil. O consórcio, iniciado há dois anos e que tem mais dois para concluir o projeto da plataforma, constitui hoje parte da política industrial do governo brasileiro. Como resultado intermediário da plataforma Fênix, o CINE-IP consiste de um protótipo que congrega os módulos MP3, MPEG4 e 8051 e permite o processamento de áudio e vídeo, além do controle de um pequeno robô. Esses módulos, devidamente concluídos pelo grupo, já possuem implementação consolidada em lógica programável.
Vários outros módulos se encontram em fase bastante adiantada de projeto e serão eventualmente integrados ao demo do CINE-IP ou a outros demos baseados na plataforma Fênix. O professor enfatiza: “Os módulos MP3 e MPEG4 do CINE-IP são partes importantes do coração de qualquer ‘setop box’ moderno de uma TV Digital e podem também ser utilizados em vários outros produtos de eletrônica de consumo. Estes dois módulos foram inteiramente projetados no Brasil pelas universidades do consórcio Brasil-IP e, até onde vai o nosso conhecimento, é a primeira vez que uma demonstração deste tipo é feita no País”. Um pequeno vídeo demonstra o funcionamento do CINE-IP e pode ser acessado no link.
Um 'jogo de memória'
O CINE-IP é um sistema que tem por objetivo demonstrar a qualidade dos módulos IP de hardware desenvolvidos pelo consórcio Brasil-IP e pode ser considerado um ‘jogo de memória’ para o cinema. Um jogador escolhe separadamente, através de números em um painel, trechos de áudio e vídeo de ‘trailers’ de filmes conhecidos. A escolha do jogador será correta se o áudio e o vídeo escolhidos forem do mesmo filme. Neste caso o jogador pode fazer nova jogada. Se áudio e vídeo escolhidos não forem do mesmo filme, o jogador é informado do erro e cede a vez ao próximo participante. Ganha o jogo quem conseguir casar todos os áudios e os vídeos corretamente. No filme demonstrativo um robô funciona como crítico de cinema do CINE-IP, ‘dançando’ sempre que o usuário faz a escolha correta. O robô é controlado por um microprocessador 8051, também totalmente projetado pelo consórcio.
Perspectivas são promissoras
Durante conferência realizada em junho na Califórnia (Conferência IEEE/ACM DAC), foram divulgados estudos que apontam para um crescimento vertiginoso no mercado mundial de IPs, que atinge a média anual de 22%. O professor Guido Araújo explica: “Estes módulos estão sendo usados por empresas que desenvolvem equipamentos eletrônicos que utilizam sistemas digitais complexos em um único chip. Graças a esses sistemas, desenvolve-se hoje um telefone celular que tira fotos e acessa a Internet”. E complementa: “Para conseguir essa funcionalidade em equipamento tão pequeno, alimentado por bateria, um sistema contendo módulos para processamento de áudio e imagens precisa ser implementado em no máximo um ou dois circuitos integrados. Cada uma das partes que constituem esses CIs (Circuitos Integrados) são adquiridos como IPs ou módulos, de propriedade intelectual, das mais diversas empresas, pois a complexidade do produto final e a velocidade do ‘time-to-market’ impedem que uma única companhia consiga projetar todo o sistema sozinha”.
Este processo, explica o professor, teve início na Inglaterra no começo da década de 90, quando o processador ARM começou a ser vendido não como um chip pronto, mas como um arquivo que continha o projeto do processador. Isto passou a permitir que as empresas escolhessem a melhor fundição para transformar o projeto em silício, dando flexibilidade, independência e margem de negociação às empresas. Com isso, empresas que detinham o projeto passaram a escolher a melhor fundição, que atendesse às suas necessidades de prazo e preço. O professor Guido Araújo conclui: “O crescimento da eletrônica embarcada, nos mais diversos equipamentos, descortina um nicho bastante interessante para o Brasil não só na área de IPs como também na área de projeto de sistemas. Mas em um mercado mundial, para competir com países como China e Índia temos que nos diferenciar em qualidade, prazos e custos”, possibilidade que vê com otimismo, pois nestas áreas julga a massa crítica brasileira já existente de muito boa qualidade, cabendo ao Brazil-IP ampliá-la e disseminá-la pelo País.