| Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 310 - 28 de novembro a 4 de dezembro de 2005
Leia nesta edição
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Artigo
O tamanho do preconceito
DIU
Rabiscos na França
Produção de fármacos
Bacia do Piçarrão
Utopia e Renascimento
Nas bancas
Mortadela e salsicha de tilápia
Ecologia: teoria deve se
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O Mário das crianças
 

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O Mário das crianças

Eu sou um escritor difícil
Que a muita gente esquisita,
Porém essa culpa é fácil
De se acabar de uma vez:
É só tirar a cortina
Que entra luz nesta escuridez

(A Costela de Grão Cão)

MANUEL ALVES FILHO

Mário de Andrade, as crianças e os desenhos: faceta pouco conhecida do público (Fotos: Reprodução)O poema acima é de autoria de Mário Raul de Moraes Andrade, mais conhecido como Mário de Andrade, um dos expoentes do Modernismo, movimento artístico-cultural ocorrido entre os anos 20 e 40 do século passado. Embora possa ter sido considerado um tanto hermético por alguns, neste texto o autor oferece aos seus leitores uma dica para descortiná-lo. Tal tarefa foi cumprida com esmero pela pesquisadora Márcia Gobbi, em tese de doutorado apresentada na Faculdade de Educação (FE) da Unicamp. No estudo, ela fez emergir uma faceta de Mário de Andrade pouco conhecida do grande público: o homem comprometido com universo e o bem-estar das crianças, e que elegeu os desenhos feitos por elas como elemento para conhecê-las melhor. “Ele inovou no que diz respeito à formulação de uma política pública voltada para o atendimento da infância”, afirma Márcia.

A análise da pesquisadora é feita a partir das atividades de Mário de Andrade como diretor do Departamento de Cultura do município de São Paulo, cargo que exerceu entre 1935 e 1938. Dentre as várias ações executadas pelo escritor, poeta, ensaísta e professor à frente do órgão, uma se destacou, em razão do seu alcance social e até mesmo político: a criação de parques infantis, destinados a filhos de operários, com idades entre 2 e 12 anos. Conforme Márcia, foram construídas três unidades do gênero: no Ipiranga, Parque D. Pedro e Lapa. Este último existe até hoje. Nesses locais, as crianças desenvolviam uma série de atividades, como ginástica, marcenaria, bordado, dança, colagem e desenho. “Era um programa que garantia a arte, associando-a ao cotidiano das crianças”, explica a autora da tese.

No entender de Márcia, a experiência de Mário de Andrade à frente dos parques infantis promoveu uma revolução em relação à estética que prevaleceu na primeira fase do Modernismo. Além disso, transformou o projeto numa ação ideológica. “Mário tinha uma grande preocupação com a função social da arte. Num primeiro momento, ele se mostrou indeciso, mas depois realizou um mergulho profundo no cotidiano do ‘fazer política’. Em alguns momentos o envolvimento foi tão intenso, que ele colocou a sua condição de artista em segundo plano”. Embora tenha suscitado críticas dos meios mais conservadores, o modelo acabou sendo copiado por outras cidades. Também em Campinas foi criado um parque inspirado no projeto do escritor.

Antes mesmo de idealizar os parques, conta Márcia, Mário de Andrade já demonstrava grande interesse pelas crianças, sobretudo pelos seus desenhos. Ele colecionava obras produzidas pelos filhos de parentes e amigos. Uma das suas preocupações era entender o universo infantil por meio dos traços, cores e formas. Quando os pequenos o visitavam em casa, o escritor tinha uma tática infalível para estimulá-los a desenhar. Ele escondia balas e doces em vários cômodos. Na medida em que os convidados achavam as guloseimas, ganhavam caixas de lápis de cor e papel para desenhar. Desse modo, não é de se estranhar que dentre as atividades realizadas nos parques, a que mais chamava a atenção do então diretor municipal de cultural da Capital era justamente a “oficina de desenho”, que na época sequer tinha essa denominação.

Prova disso é que o escritor decidiu lançar um concurso de desenho entre os pequenos. Ele determinou aos funcionários que distribuíssem lápis de cor e papel da melhor qualidade para os meninos e meninas. Orientou, ainda, que os servidores não interferissem na produção das crianças. Não seria permitido, por exemplo, sugerir temas. Cada um poderia participar com quantas obras desejasse. O vencedor ganharia um prêmio de 25 mil réis, aspecto que gerou certa polêmica na época. Mas o dado mais curioso sobre o tal concurso dizia respeito a um critério específico. Este estabelecia que todos os desenhos ficariam de posse do instituidor do concurso, ou seja, do próprio Mário de Andrade. “Com isso, é possível inferir que ele criou a competição apenas para ter a oportunidade de reunir um grande número de obras para a sua coleção particular”, interpreta a pesquisadora. Foram inscritas, ao todo, 1.243 peças, que mais tarde se juntariam ao acervo do escritor, composto por 2.160 obras.

De acordo com Márcia, não há dados disponíveis sobre o vencedor do concurso. Durante a pesquisa, porém, ela teve oportunidade de manter contato com alguns ex-alunos dos parques infantis. Uma das crianças, que tinha o cadastro número 9, está hoje com 80 anos. Assim que deixou o Departamento de Cultura, prossegue a autora da tese, Mário de Andrade mudou-se para o Rio de Janeiro, onde foi lecionar História da Arte. O escritor costumava utilizar vários dos desenhos infantis da sua coleção particular em sala de aula. Estes normalmente retratavam casas entre montanhas, flores e frutas, carrinhos e, claro, alguns rabiscos incompreensíveis aos olhares dos adultos pouco familiarizados com esses traços.

Mário de Andrade morreu em 25 de fevereiro de 1945, em São Paulo, vítima de um enfarte do miocárdio. A coleção de desenhos ficou sob a guarda da sua família até 1968, quando foi doada ao Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da Universidade de São Paulo (USP), como parte da biblioteca do escritor, composta por aproximadamente 17 mil volumes. Todo este acervo, segundo Márcia, está aberto à visitação pública. Além disso, parte dos desenhos (73 peças) integrou uma exposição denominada “Desenhos de Outrora, Desenhos de Agora”, que ocorreu entre 11 de outubro e 27 de novembro no Sesc Pinheiros, em São Paulo. Não por acaso, a exposição, concebida pela pesquisadora, levou o mesmo título da sua tese de doutorado.

FRASES

“Ao afirmar ser o desenho ao mesmo tempo uma transitoriedade e uma sabedoria, Mário de Andrade o aproximou da escritura e o fez provérbio, por carregar uma experiência vivida e transformada. Arguto com as palavras, entendia o desenho tal como um poema: ambos feitos em tempo lento e depurado, no qual uma idéia migrava para a sua representação gráfica sem a pressa da prosa comum”.
Danilo Santos de Miranda, diretor regional do Sesc São Paulo

“Uma, entre tantas lições deixadas por Mário de Andrade, é o compromisso com as diferentes culturas: traduzido em projetos para apresentar o povo brasileiro a ele mesmo. As crianças, e dentre elas aquelas de pouca idade, constituem um pedaço deste povo, por vezes silenciadas, não ouvidas. Mário de Andrade, em sua coleção de desenhos de meninos e meninas, valoriza as manifestações infantis nesta busca pelo povo”.
Márcia Gobbi, pesquisadora

“(...) Essa é outra característica essencial do desenho entre as artes plásticas: a sua rapidez expressiva. (...) o desenho nos toca do mesmo jeito que o som curto dos instrumentos de cordas dedilhadas, o piano, o cravo, uma guitarra”.
Mário de Andrade, escritor, poeta ensaísta e professor

“O verdadeiro limite do desenho não implica de forma alguma o limite do papel, nem mesmo supondo margens. Na verdade, o desenho é ilimitado”

Idem

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