| Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 379 - 5 a 11 de novembro de 2007
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OPINIÃO

Por uma nova arquitetura curricular

LEANDRO TESSLER

Jovens durante a última edição da Unicamp de Portas Abertas: desde 2005, a Universidade adiciona pontos no vestibular a estudantes de escolas públicas (Foto: Antônio Scarpinetti)Quando esse ano terminar, milhões de jovens vão se submeter a extensos conjuntos de provas que selecionarão, entre os muitos pretendentes, os  mais dignos de serem admitidos nas instituições de Ensino Superior brasileiras. A Constituição, em seu artigo 208, garante a todos o acesso aos  níveis mais elevados do ensino, da pesquisa à criação artística, segundo a capacidade de cada um. Os vestibulares, portanto, deveriam de alguma forma avaliar a capacidade de cada candidato, o que, infelizmente, não acontece. 

Se os vestibulares selecionassem as pessoas segundo as suas capacidades, a população universitária seria o espelho da sociedade. Ou seja, teríamos mais eqüidade social e mais diversidade étnica nas universidades. O sempre polêmico debate em torno de cotas não estaria ocorrendo. E o modelo adotado  pela maioria dos vestibulares, juntamente com uma estrutura de Ensino Superior profissionalizante não seria excludente, elitizante e, acima de tudo, pouco eficiente. 

O Brasil despreza grande parte de sua capacidade criativa. É comum comparar os processos seletivos de instituições de ensino com os de jogadores de futebol. Temos uma das melhores equipes de futebol do mundo, porque existe uma rede muito efetiva de caça aos talentos. Todos meninos e meninas brasileiros passam pela experiência de jogar futebol na rua, na escola, no bairro. 

Se escrevo este artigo é porque o meu talento para o futebol é limitado. Se assim não fosse, eu certamente teria encontrado o caminho para alguma grande equipe. Assim como o talento para o futebol, o potencial para a pesquisa, a inovação e a geração de conhecimento devem estar homogeneamente distribuídos na população.

Devido a diversos fatores socioeconômicos, uma parcela muito grande da população abandona a escola nos primeiros anos da Educação Fundamental. Os vestibulares excludentes reforçam esse verdadeiro desperdício de talento, eliminando definitivamente aqueles que não tiveram o treinamento adequado para memorizar fórmulas, fatos e macetes. 

É possível mudar isso? Certamente sim, e alguns passos já estão sendo dados. As poucas instituições que mudaram radicalmente seus processos seletivos conquistaram resultados positivos. São novos vestibulares que identificam, entre os candidatos, aqueles com posicionamento crítico e que melhor sabem ler, elaborar hipóteses, argumentar e expressar suas idéias. Nada de fórmulas decoradas ou exigência de domínio perfeito da norma culta do português. 

Como resultado, as chances de um egresso de escola pública ficam próximas das de um egresso de escola particular, e os estudantes selecionados têm um perfil muito mais adequado à formação superior de qualidade, que deve(ria) se preocupar basicamente com a formação para a cidadania. Infelizmente no Brasil, a especialização profissional precoce não vem deixando espaço para a formação cidadã, transformando os jovens em profissionais com limitada capacidade de analisar, contestar, criar. Admitir os estudantes de escolas públicas com maior potencial pode de fato melhorar o nível médio dos estudantes. Desde 2005, a Unicamp adiciona pontos no vestibular a estudantes de escolas públicas (e mais pontos aos que entre estes se autodeclaram pretos, pardos ou indígenas) como forma de aumentar as chances de aprovação de candidatos de famílias com menor capital intelectual. 

O resultado não poderia ser melhor, tanto do ponto de  vista social como acadêmico. Em 2007, 29% dos inscritos no vestibular da Unicamp fizeram todo o Ensino Médio em escola pública. Entre os que se matricularam 32,4% eram egressos de escolas públicas. Ou seja, o porcentual de egressos de escola pública entre os matriculados superou o de inscritos, o que normalmente não ocorre nos vestibulares de universidades públicas. 

Quase todos os cursos beneficiados pelo programa melhoraram seu desempenho, onde, em metade dos cursos, os alunos de escolas públicas têm média superior aos demais. Dadas as condições propícias, as diferenças diminuem ou mesmo se invertem. As experiências da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) e da Universidade Federal do Paraná (UFPR), relatadas pela reportagem “Seleção Sem Trauma” publicada em CartaCapital, mostram que selecionar os estudantes depois de ter dado a eles a oportunidade de cursar o primeiro ano na universidade só aumentou a procura de egressos de escola pública. 

Outra estratégia usada para garantir o ingresso de bons estudantes de escolas públicas é a praticada pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), no Rio Grande do Sul, e pela Universidade de Brasília (UnB). Com processos seriados de admissão, em que são feitas provas anuais ao final de cada série do Ensino Médio, universidade e escolas podem melhorar a formação do aluno. Ao mesmo tempo, os estudantes sentem-se motivados a encarar o desafio da formação superior em instituições públicas de qualidade. 

No entanto, tão importante quanto mudar o processo seletivo é aumentar o número de vagas nas instituições públicas. Isso esbarra em custos proibitivos, devido a um sistema federal de Ensino Superior caro e ineficiente. O modelo predominante de instituição de Ensino Superior federal é a universidade, instituições de alto custo que combinam ensino, pesquisa, extensão e pós-graduação. Na prática, tal modelo não se aplica à grande parte das universidades públicas ou em quase todas as “universidades” privadas brasileiras. 

Nos Estados Unidos, onde estão as melhores universidades do mundo, mais da metade dos estudantes em nível superior estão em instituições superiores não-universitárias, dedicadas exclusivamente à formação profissionalizante. Nem por isso sua formação é de baixa qualidade. Ao contrário das universidades, essas instituições investem em infra-estrutura para suprir eventuais deficiências na formação fundamental.

Talvez a proposta mais radical para expandir o sistema público com qualidade seja a Universidade Nova, cujo projeto é mudar a arquitetura curricular da graduação. Em vez de optar por uma profissão já na inscrição para o vestibular, os estudantes ingressam em um bacharelado interdisciplinar. A estrutura desse bacharelado garante formação sólida numa área específica ao mesmo tempo em que permite contato do estudante com outras áreas do conhecimento. 

Ao fim de três anos, o estudante recebe um diploma de formação superior e pode completar a formação profissional específica na sua instituição de origem ou até em outra, podendo  ter a experiência de conhecer e interagir com uma cultura diferente da sua. Para os que decidirem interromper sua formação, o mercado de trabalho ofereceria diversas opções (grandes empresas atualmente recrutam profissionais de qualquer área e oferecem sua própria formação corporativa específica). 

O projeto contribui para corrigir alguns dos piores vícios do sistema brasileiro: a especialização precoce, os currículos rígidos e bitolados, a proliferação de disciplinas exageradamente específicas e a ineficiência. Ele permite formar mais. Ele permite formar melhor. 

Quaisquer propostas de mudanças na educação encontram oposição ferrenha por todos os lados. É muito difícil quebrar a tradição enciclopédica do Ensino Superior brasileiro.Atualmente, formar um  engenheiro no Brasil requer quase o dobro de atividades acadêmicas do que nos Estados Unidos. Existe um número exagerado de profissões regulamentadas de nível superior. Várias corporações de ofício arvoram-se o papel de guardiãs de uma suposta qualidade, exigindo uma formação exagerada e excessivamente especializada. Por sua vez, professores das instituições de Ensino Superior têm receios sobre como ensinar em um novo contexto. Eles próprios foram formados no sistema tradicional e têm dificuldade em conviver com um modelo focado no aluno. 

Vozes da esquerda colocam-se contra uma suposta “precarização” da formação. Famílias de classe média convivem mal com a idéia de abrir  mão da reserva das melhores vagas, tendo que ver seus filhos disputando vagas nos cursos mais concorridos em igualdade de  condições com muito mais gente. Enfim, há mais interesse em  manter o que está posto do que em reestruturar o vestibular. 

Mas há esperança. A sociedade está discutindo o Ensino Superior como nunca o fez antes. O governo acena com programas que visam modernizar o sistema e torná-lo mais eficiente. Novas instituições, como a Universidade Federal do ABC, apresentam projetos acadêmicos inovadores e muito promissores. Devemos esperar que, nos próximos anos, os processos  seletivos mais inteligentes conduzam mais jovens de todas as  cores e matizes socioeconômicos a cursos de formação mais humanista e voltada para a cidadania. Somente assim o Brasil  poderá desenvolver plenamente seu potencial como nação.

Leandro Tessler é professor no IFGW e coordenador da Comissão Permanente para os Vestibulares da Unicamp (Comvest). Este artigo foi publicado originalmente na revista Carta na Escola, da CartaCapital


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