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Cientistas mostram que as partículas de altíssima energia são
provavelmente geradas em galáxias vizinhas à Via Láctea

Pesquisadores começam a desvendar
enigma da origem dos raios cósmicos

MANUEL ALVES FILHO

Carlos Ourivio Escobar, docente do Instituto de Física Gleb Wataghin (IFGW) da Unicamp e coordenador da parte brasileira do projeto: “A descoberta inaugura a era da astronomia com raios cósmicos” (Foto: Antoninho Perri)Um enigma que desafia a ciência há décadas, a origem dos raios cósmicos, começa finalmente a ser decifrado. As partículas de altíssima energia são provavelmente geradas em galáxias vizinhas à Via Láctea, mais especificamente nos Núcleos Ativos de Galáxias (AGNs, na sigla em inglês), espécies de buracos negros com centenas de milhões de massas solares. A hipótese acaba de ser apresentada publicamente por uma equipe de cientistas de 17 países, entre eles o Brasil, vinculada ao Observatório Pierre Auger de Raios Cósmicos, empreendimento científico internacional instalado numa área semidesértica da província de Mendoza, na Argentina. O artigo com o postulado é capa da última edição da revista Science, que começou a circular no dia 9 de novembro. “Com esta descoberta, fica inaugurada a era da astronomia com raios cósmicos”, comemora o professor Carlos Ourivio Escobar, docente do Instituto de Física Gleb Wataghin (IFGW) da Unicamp e coordenador da parte brasileira do projeto.

Trabalho está na capa da Science

De acordo com Escobar, os cientistas buscam explicações para a origem dos raios cósmicos de alta energia desde 1962, quando John Linsley relatou, em artigo publicado na Physical Review Letters, ter observado um evento com energia igual a 16 joules. Ou seja, uma única partícula subatômica (um próton) carregava energia equivalente à de uma bola de tênis arremessada por um tenista profissional. “Na época, Linsley trabalhou com um detector com cerca de um quilômetro quadrado de área. Ocorre que a probabilidade dessa partícula atingir a Terra é de um evento por quilômetro quadrado por século. Foi como ganhar na loteria”, conta o docente da Unicamp. De lá para cá, a ciência acumulou alguns conhecimentos acerca do fenômeno. Faltava, porém, descobrir evidências mais claras sobre a origem das partículas.

A esfera celeste com 472 AGNs (asteriscos), sendo 318 no campo de visão do Observatório Auger. Os círculos são os eventos (27) com energia superior a 60 EeV (quase 10 joule), dos quais 20 correlacionam-se com AGNs. O fundo branco é a região da esfera celeste que não é visível pelo Auger Sul mas que seria por um Auger NorteIsso só ocorreu agora, após quase quatro anos de atividades do Pierre Auger, o maior observatório a céu aberto do mundo. Segundo Escobar, os experimentos possibilitaram duas constatações importantes. A primeira diz respeito à região onde são formados os raios cósmicos. Os cientistas acreditam que as partículas com energia acima de 10 joules têm origem na nossa vizinhança, considerando-se a dimensão cosmológica. Traduzindo em números, trata-se uma distância inferior a 300 milhões de anos-luz. Realmente é próximo, se levarmos em conta que o universo tem cerca de 13 bilhões de anos-luz. Tal constatação, acrescenta o docente da Unicamp, deve encerrar a controvérsia criada em torno da teoria do corte GZK, sigla formada pela primeira letra dos sobrenomes dos cientistas Kenneth Greisen, George Zatsepin e Vadem Kuzmin.

Em 1996, o trio postulou que os raios cósmicos com energia superior a 5 x 1019 elétron volts seriam absorvidos à medida que viajassem pelo espaço e que, por isso, jamais seriam observados na Terra.  “Essa teoria diz que o universo é opaco e que essa opacidade vem da radiação cosmológica de fundo, cuja elucidação rendeu dois prêmios Nobel. Segundo os três cientistas, a radiação de altíssima energia interage com essa radiação cosmológica. Assim, ao se propagar pelo universo, a primeira perde energia. Ou seja, para atingir a Terra com elevada energia, as partículas não poderiam vir de muito longe. Ao contrário, precisariam partir da vizinhança da nossa galáxia”, explica o físico. A segunda constatação dos cientistas que trabalham no Pierre Auger refere-se às fontes dos raios cósmicos.

Os objetos responsáveis pela aceleração das partículas, que apresentam energia cerca de 100 milhões de vezes mais elevada do que a obtida a partir do mais poderoso acelerador produzido pelo homem, são provavelmente os AGNs ou algo relacionados a eles. Embora o mecanismo de aceleração ainda não seja totalmente compreendido, acredita-se que o fenômeno ocorra mais ou menos dessa maneira: os AGNs “engolem” poeira, gás e outras matérias vindas de suas galáxias anfitriãs e “cospem” as partículas de alta energia. “Quando iniciamos as pesquisas, nós considerávamos os AGNs como possíveis fontes dos raios cósmicos, mas eles não apareciam como primeira hipótese. À época, acreditávamos que poderia se tratar de um fenômeno totalmente novo, algo que pudesse inclusive violar os princípios da relatividade de Einstein”, revela Escobar.

As hipóteses formuladas pela equipe do Pierre Auger, prossegue o docente da Unicamp, abrem o que ele classifica de “novas avenidas de investigação”, agora baseadas também na astronomia de raios cósmicos e não somente na astronomia óptica. “A partir dos estudos realizados no Pierre Auger, penso que os astrofísicos teóricos vão ter que quebrar a cabeça para elaborar teorias que ajudem a explicar os mecanismos de aceleração extragalácticos. De nossa parte, creio que teremos uma tarefa extra a partir de agora. Temos que utilizar todo o aparato do observatório para extrairmos novas informações sobre os raios cósmicos, de modo a não continuarmos fazendo inferências baseadas na correlação com a astrofísica. Temos que determinar de forma independente se essas partículas são de fato prótons, como imaginamos”, analisa Escobar.

Mas por que, afinal, é tão importante para a ciência investigar os raios cósmicos? De acordo com o professor da Unicamp, os primeiros resultados dos estudos realizados na Argentina significam um passo positivo em busca da explicação da origem do universo. “Ao ratificarmos que a radiação de fundo não é um fenômeno local e sim cosmológico, estamos relacionando o fenômeno a algo ligado ao princípio do universo. Evidentemente, isso não explica tudo, mas abre caminhos para novas pesquisas que certamente nos trarão esclarecimentos adicionais acerca do assunto”. Além disso, acrescenta o físico, ao conhecer como as partículas de altíssima energia são naturalmente aceleradas, os cientistas poderão, eventualmente, reproduzir o fenômeno em laboratório, o que inauguraria uma nova fase para o estudo de mecanismos de aceleração.

Escobar lembra que as tecnologias disponíveis atualmente nessa área, como os síncrotrons, estão com os dias contados. Isso porque os aceleradores são equipamentos enormes, que exigem altíssimos investimentos e disponibilidade de espaço. “Não é possível imaginar que, para avançarmos nesse segmento, tenhamos que construir um acelerador com centenas de quilômetros de diâmetro”, pondera. Para os cientistas vinculados ao Pierre Auger, os resultados das pesquisas são gratificantes do ponto de vista pessoal. “Isso ficou muito claro na reunião que tivemos no início de outubro, no Brasil. O clima de satisfação entre os membros do grupo era flagrante. Todos estavam muitos contentes, especialmente os pesquisadores mais antigos em termos de participação no projeto. Eu, por exemplo, faço parte do Auger desde 1995”, revela o professor da Unicamp. A expectativa da equipe quanto à receptividade do artigo publicado na Science, afirma Escobar, é grande. “Esperamos que a comunidade científica possa debater os dados e trazer novas contribuições às nossas pesquisas”.

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