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1 2 3 45 6 7 8/9 10/11 12/13 14/15 16/17 18 19 20 Jornal da Unicamp - Outubro de 2000 VIOLÊNCIA 7 'Amélias e a mesma tragédia Psicóloga desnuda em livro o universo psiquicamente desestruturado de mulheres que convivem com a violência doméstica ; autora constata que "equilíbrio neurótico" conduz à perpetuação de um "vínculo sadomasoquista" Sete mulheres e um terrível destino. Esse foi o ponto de partida para a psicóloga Lucélia Braghini, doutoranda do curso de Saúde Mental da Faculdade de Ciências Médicas (FMC) da Unicamp, na jornada que culminou num dos livros mais instigantes sobre violência doméstica já produzidos no Brasil. E tão honesto que, à revelia da histórica militância feminista da autora, acabou conferindo um relativo certificado científico à pérola da "sabedoria popular" até então só cultuada nos mais rudes botecos ou entre os fãs de carteirinha do cáustico Nelson Rodrigues: "Mulher gosta de apanhar". Porém, se os chauvinistas de plantão se sentirem tentados a buscar aí qualquer tipo de respaldo, podem desistir de folhear Cenas repetitivas de violência doméstica - um impasse entre Eros e Tanatos, lançado recentemente pela Editora da Unicamp (Coleção Teses). Lucélia teve a coragem de se aprofundar nesse assunto tão polêmico que, a grosso modo, até poderia ser tratado como "complexo de Amélia" exclusivamente pela intenção de desvendar o mecanismo inconsciente que leva mulheres não todas, mas muitas a se manterem em situações conjugais onde agressões físicas e de outras ordens se verificam de forma crônica. Sem contar que, além do valor acadêmico, a obra, referenciada na teoria psicanalítica, esboça propostas terapêuticas para essas pessoas que, como ela classifica, "ainda não conseguiram firmar um contrato com a vida". O livro é o resultado da prática de 12 anos de atendimento da psicóloga no SOS Ação - Mulher e Família, entidade de combate à violência contra mulheres, e teve como embrião sua dissertação de mestrado. Foi no SOS que Lucélia selecionou sete clientes para um estudo qualitativo de casos e as submeteu a entrevistas semidirigidas e a testes projetivos gráficos (ao grupo foi solicitado desenhos, tanto de inspiração livre, como ligados aos temas "cena doméstica", "a figura humana" e "duas pessoas"). Ao mesmo tempo em que contribuíam para o trabalho, as mulheres passavam por terapia. Devido a formação de psicóloga de Lucélia, a pesquisa se distancia da abordagem sócioantropológica, na qual o feminismo costuma se fundamentar com mais freqüência. Mas ela não nega que a violência doméstica é produto de uma "somatória de fatores", do econômico ao histórico e cultural (a prevalência da sociedade patriarcal, para ser mais exato). Nessa opção pelo foco psicológico, a escritora situa sua fonte de inspiração: "No contato freqüente com essa clientela, foi se insinuando na minha cabeça um enigma. Apesar do caráter emergencial das queixas pois muitas das mulheres chegavam à entidade seriamente feridas pelos parceiros e até ameaçadas de morte por quê elas quase sempre acabavam voltando pra casa, mesmo sabendo que iam apanhar de novo?" A resposta soa desconcertante: "Por mais incrível que possa parecer e por mais que negassem no plano consciente, elas auferiam gratificações, ainda que patológicas, das surras que levavam dos companheiros". A explicação, segundo a autora, estaria no grau de desestruturação psíquica das pacientes, elevado a ponto de perpetuar esse "vínculo sadomasoquista". "Daí, foi natural a conclusão de que aquelas mulheres que vivenciavam relações de violência com os companheiros raramente as rompiam, por estarem sujeitas ao conformismo típico do que chamamos de equilíbrio neurótico", continua Lucélia. "Em todos os processos" frisa "constatei algum quadro de orfandade". Condição que, em pelo menos um dos casos analisados, se verificou ao pé-da-letra. A paciente referida como Mirtes (os nomes são fictícios, para preservar as mulheres) teve os pais falecidos quando ainda era bem criança e, no diagnóstico de Lucélia, não teve "oportunidade de elaborar a perda". Foi com essa fragilidade que, já aos 34 anos, procurou o SOS, encaminhada pela Delegacia de Defesa da Mulher. No rosto, um enorme hematoma. Marca de uma mordida do marido, relatou a vítima. Empregada doméstica, primeiro grau incompleto, sua primeira manifestação à equipe do SOS está registrado no livro: "Eu quero me separar; sou casada há 14 anos, tenho um menino de 14 anos e uma de 9. Eu e meu marido sempre vivemos mal, a gente briga muito. Ele já me bateu demais. Acontece que ele não dá nada, tudo que fazia era com a mão. Se masturbava e punha lá dentro, às vezes até me machucava. Um dia eu me cansei disso e arrumei outro. Hoje, já não tenho mais nada com essa pessoa. Mas ele ficou sabendo e não esquece disso". Vítimas de si mesmas Dentre as sete pacientes que tiveram as histórias exploradas no livro, Mirtes e outras duas trazem as cargas mais marcantes de violência física. E esse subgrupo apresentou uma característica comum, segundo a psicóloga: nenhuma vergonha de exibir os ferimentos. "Ao contrário, os ostentavam, como uma forma de dizer Olha, eu sou a santa; ele, o vilão. Uma rotulação simplista para duas pessoas representando papéis num processo de amor patológico", afirma Lucélia. No livro, ela chega a ser mais categórica: "A mulher não é vítima do companheiro em si, mas dos próprios impulsos ativados pelas vivências traumáticas de infância no sentido do aniquilamento do próprio eu." No caso de Ivete, mãe de um filho pequeno, a situação de orfandade detectada pela pesquisadora não é tão literal, mas igualmente traumática. Ao pedir ajuda à entidade, ela tinha 23 anos e se queixava da falta de apoio do pai nos episódios de agressão que sofria do marido. Que, por sinal, é seu primo em primeiro grau. O parentesco tão próximo chegou a inquietar a família, empecilho do qual o homem identificado como José Carlos teria se livrado ameaçando de morte o pai de Ivete. Casada com José Carlos há sete anos, Ivete garante que o fez por imposição do rapaz, que a "perseguia pra namorar" desde a infância. Para a psicóloga, o assédio sofrido desde os 9 anos, seguido do casamento ainda na adolescência, estancou o desenvolvimento da personalidade de Ivete. Impressionante é o nível de crueldade que ela atribui ao marido. Ivete diz que ele preferia espancá-la quando estava amamentando. No teste do desenho de uma cena doméstica, a paciente retratou uma mulher cumprindo três afazeres domésticos ao mesmo tempo, utilizando para isso até os dedos dos pés. Na avaliação da psicóloga, um reflexo da "relação senhor/escrava" em que estava mergulhado o casamento. Outra história dramática é a de Rosa. Tinha 28 anos quando procurou o SOS, o rosto coberto de cicatrizes. Acabara de sofrer uma tentativa de assassinato pelo marido e se viu obrigada a pedir asilo na casa de uma amiga. "Eu sofri tanto quando era solteira" lembra Rosa, referindo-se à mãe alcoolista que a espancava constantemente, ante à indiferença do pai "Pedi a Deus que pusesse no meu caminho uma pessoa para me tirar daquela vida, para me sentir um dia feliz, mas foi tudo ao contrário". Terem sofrido espancamentos na infância ou visto a mãe sendo agredida são traços comuns nas mulheres pesquisadas. "Elas acabam por introjetar o modelo segundo o qual ser mulher é ter que sofrer calada", observa a escritora. Mãe de três meninas, Rosa é de origem nordestina, praticamente analfabeta e sobrevivia como faxineira. Pelas características da clientela do SOS, a pesquisa alcança exclusivamente mulheres de camadas sócioeconomicas e de nível cultural baixos. "Mas a violência contra a mulher é atemporal e incidente em todas as classes sociais" ressalva Lucélia "O que acontece é que nas parcelas mais privilegiadas da sociedade há a tendência de se abafar os casos. A não ser que explodam na mídia, como está sendo o exemplo do jornalista Pimenta Neves, que matou a ex-namorada, Sandra Gomide". Sina de sofredoras Quando, popularmente, se fala em "sina", com referência a mulheres que vivem se metendo em relações violentas, a abordagem não é totalmente desprovida de cientificidade. A pesquisadora chegou à conclusão de que mulheres com histórico de vida de opressão e agressões familiares tendem a procurar parceiros violentos. "Energeticamente dá liga", define Lucélia. A autora de Cenas repetitivas... destaca "dois sentimentos fortes" que contribuem muito para manter mulheres prisioneiras de relacionamentos brutais: medo e culpa. "Na queixa emergencial, é lógico que elas exteriorizam o medo de morrer. Mas esse medo é mais insidioso, mais visceral: é o medo de tocar a vida por conta própria. É aquela história do ruim com ele, pior sem ele. Acham que não conseguiriam sustentar sozinhas os filhos o que, na realidade, muitas já fazem, sem ao menos ter consciência plena disso. Medo também da desaprovação familiar", enumera a psicóloga. Sobre a culpa, Lucélia lembra as origens milenares do sentimento, que tem o melhor exemplo na clássica "sedução" de Adão por Eva. "Atravessada por conflitos dessa ordem, a mulher acaba acreditando que apanhar ajuda a expiar a culpa", teoriza a autora. A dependência psicológica é outra barreira. "Inconscientemente a mulher não quer sair da situação; ela tem o parceiro como seu verdugo, mas ao mesmo tempo, seu protetor, Ser vítima acaba sendo meio de vida" explica a pesquisadora "Romper é difícil também porque implica em reviver vínculos passados". Segundo ela, muitos dos casos esbarram na chamada reação terapêutica negativa, mecanismo pelo qual o paciente não deixa o tratamento surtir efeito. A medição do impacto psicológico no drama da mulher vítima de maus tratos serviu para tornar o SOS mais criterioso ao apreciar a solicitação de assessoria judicial para separação, que quase sempre é a primeira a despontar. "A mulher procura a instituição como depositária de suas queixas. Mas depois, volta pra casa e acaba se reacomodando no ciclo da violência. Por isso, é importante oferecer outros atendimentos. O advogado entra mais na frente do processo, pois mudar a vida implica em tomar consciência", defende Lucélia. Cavalos desencontrados Eros e Tanatos, os deuses da mitologia grega que Freud elegeu para personificar as pulsões da vida e da morte, figuram no subtítulo e permeiam o livro de Lucélia. Seriam elementos que "se opõem internamente como personagens ativos no psiquismo de homens e mulheres, e, ao serem projetados na figura do companheiro, encontram as condições ideais para se digladiarem". No entanto, ela acredita que "é possível trabalhar terapeuticamente com estas forças, domá-las e utilizá-las de forma inteligente e sensata em favor da saúde e do bem estar de seus possuidores." A autora chega a render-se ao romantismo ao comparar esses princípios antagônicos a "cavalos selvagens, um preto, relegado aos domínios sombrios e obscuros da personalidade, e um branco, representante da mente consciente e lúcida, a face com que esta se apresenta ao mundo. Quanto mais distantes um do outro, maior a alienação e os riscos à desestruturação psíquica. Tornando-se conhecidos, poderiam deixar de ver-se como inimigos, mas se perceberem como partes distintas de um todo maior, podendo se complementarem harmoniosamente num enlace das forças elementais da natureza". A extensa bibliografia de Cenas repetitivas... é recheada de sisudos tratados, mas não deixa de abrir espaço para abordagens mais livres, como As brumas de Avalon, best-seller pelo qual Bradley se aventurou numa prospecção do cotidiano das mulheres que teriam vivido à sombra da mítica Távola Redonda do Rei Arthur. Já na epígrafe de seu livro, Lucélia explica o porquê da inclusão: "Mesmo tendo que se adequar aos padrões de cientificidade, este estudo não deixou de ser escrito pela pena da emoção e pela ótica da mulher". Status barra pesada Campinas é um centro urbano fértil para estudos de casos de agressões a mulheres. Esse status, nada animador, foi confirmado já em 1996, durante visita de uma relatora especial da ONU para Assuntos de Violência Doméstica, que situou Campinas entre as cidades com mais casos dentre as que constaram do relatório relativo ao Brasil. Quem lembra o fato é a antropóloga Maria José de Mattos Taube, coordenadora do SOS Ação - Mulher e Família, que fez a apresentação do livro de Lucélia. O SOS de Campinas, que completará 20 anos de atuação no mês que vem, mantém uma média anual de mil atendimentos a mulheres espancadas pelos parceiros (20% das queixas registradas na Delegacia da Mulher, por ano). "É difícil utilizar essa estatística em termos comparativos rígidos, pois se de um lado, ela reflete a existência de uma entidade atuante, há o eterno problema da subnotificação de casos, sem contar que Campinas possui uma demanda reprimida, até pelo fato de não contar com mais de um SOS", justifica Maria José. Apesar das dificuldades, a coordenadora destaca a importância do apoio que o SOS recebe da Pró-Reitoria de Extensão e Assuntos Comunitários da Unicamp. "Desde 1987, quando foi firmado o convênio, tivemos avanços notáveis. Um dos principais é o viés de estudo e pesquisa, que fez do SOS quase um hospital-escola", elogia. É nesse contexto que, de acordo com ela, obras como a de Lucélia ganham o potencial de "impulsionar a implantação de políticas públicas". |
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