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HISTÓRIA
De
seminarista a marxista
Duarte Pereira, um dos principais militantes
da Ação Popular, deixa
seu depoimento ao Arquivo Edgard Leuenroth
ANTÔNIO
ROBERTO FAVA
Menino
de vida simples, ele gostava de cinema e futebol e amava a liberdade
das ruas de Santo Amaro da Purificação, cravada
no Recôncavo Baiano. Nasceu em 7 de março de 1939,
quando começava a Segunda Guerra que abalou o mundo.
Do pai, Agenor, herdou o espírito de luta em favor dos
trabalhadores e dos menos afortunados desde cedo preocupava-se
com as crianças pobres da periferia da pequena cidade.
Com a mãe aprendeu a ler e a escrever e dela também
recebeu parte da influência religiosa e cultural, os rudimentos
do francês e os primeiros contatos com a literatura francesa,
coisa rara naquela época, ainda mais num vilarejo do
interior.
Duarte Brasil Pacheco Pereira, jornalista e professor, que durante
as décadas de 60 e 70 militou no movimento de esquerda
Ação Popular, concedeu um longo depoimento que
integrará o acervo do Arquivo Edgard Leuenroth, do Instituto
de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp.
Figura
importante da AP idealizada pelo sociólogo mineiro Herbert
de Souza, Duarte Pereira pontuou seu testemunho com momentos
curiosos. Contou que vem de uma família tradicional,
que chegou a dar um governador para a Bahia, Regis Pacheco.
Eu pertencia ao lado pobre da família, não
reconhecido pelo ramo mais rico e importante.
Por
volta do terceiro ano ginasial, achou que queria ser padre.
Entrou para o Seminário Central da Bahia, uma das escolas
mais importantes do estado, e ali estudou por seis anos, até
perceber que não queria aquela Igreja. Não
era o projeto de vida que havia alimentado durante tanto tempo.
Lembra
da dificuldade em cumprir à risca a lei do celibato,
onde a obediência e a submissão virtudes
que não me distinguiam eram elementos extremamente
rígidos. Recorda-se ainda que no seminário tinha
22 amigos: vinte abandonaram a vocação antes da
formatura e, dos dois que completaram o curso, um não
é mais padre.
O
pai Agenor, embora sem concluir o curso de direito, praticava
advocacia trabalhista. Mantinha estreitas relações
com os trabalhadores e embriões de sindicatos da região,
participando dos conflitos contra a construção
de linhas de distribuição de energia que tirariam
terras de muitas famílias. Conflitos armados, defendendo
terras que também possuía. Meu pai liderava
grupos que derrubavam postes, impedindo que a luz elétrica
fosse instalada.
Naqueles
anos 30, Agenor já havia se vinculado a Getúlio
Vargas. Uma das minhas primeiras imagens da infância
é a de um enorme retrato de Getúlio na sala de
visitas. A outra é a de meu pai ligando o rádio
para ouvir o discurso do presidente e o velho refrão:
trabalhadores do Brasil!, que me fazia repetir,
colocando-me em cima da mesa. Uma lembrança tênue
é a de estar nos ombros do pai, durante comício
de um candidato comunista à presidência da República,
após o fim do Estado Novo. Fomos sob protesto de
minha mãe e o tal comício acabou em conflito,
conta.
Os
Pacheco Pereira começaram então a viver uma crise,
fruto das posições do pai, sucessivamente perseguido.
Seguiu-se a derrota de Vargas na transição para
a democracia, com o fortalecimento da UDN e do grupo de Juraci
Magalhães. Opositor declarado, Agenor perdeu o emprego
e a família passou necessidades. Acabou preso e só
foi solto graças à influência de alguns
políticos.
Navegantes
Com pais autodidatas, a casa obviamente era repleta de
livros. Seu nome, Duarte Brasil Pacheco de Pereira, foi uma
espécie de homenagem do pai a um dos grandes navegantes
portugueses, que teria estado no Brasil por volta de 1498. Portanto,
o verdadeiro descobridor do Brasil seria o Duarte Brasil e não
Cabral, ironiza o jornalista.
Quando
esteve internado no Liceu Salesiano de Salvador, que possui
a primeira Biblioteca Infantil Monteiro Lobato, teve a oportunidade
de ler toda a obra do escritor. É uma literatura
infantil progressista e aberta. Lembro-me de um professor no
seminário, o Assis Brasil, que chegou a escrever um livro,
famoso na época, que curiosamente se chamava A Literatura
de Monteiro Lobato O Comunismo para Crianças,
conta rindo.
À medida que avançava em sua compreensão
da história e da Igreja, Duarte começava a perceber
uma grande contradição: o próprio Liceu
separava os alunos pobres dos ricos. Havia separação
de prédios e refeitórios, além da visível
distinção quanto à alimentação.
Apesar da disciplina rígida para todos, o tratamento
aos pobres era mais grosseiro, inclusive com castigos físicos,
como o de ficar de joelhos em silêncio absoluto. Aquilo
me chocava porque era contrário ao processo educacional
tão apregoado por Dom Bosco.
Por
causa dos problemas financeiros, a família morou em bairros
pobres de Salvador. Alguns com nomes saborosos, como Toca da
Onça, Bairro da Liberdade, Beco do Mandu e o Engenho
Velho, perto da sede dos Filhos de Gandhi. Todos os meus
amigos de infância eram pobres, negros ou mulatos. E são
essas amizades que conservo até hoje.
Ascensão
Duarte Pacheco nunca pertenceu à Juventude Universitária
Católica (JUC), movimento criado no início da
década de 60 por Betinho, Luiz Alberto Souza e Aldo Arantes,
e que daria origem à Ação Popular. No estado
havia um Partido Comunista Brasileiro muito forte e o Grupo
Baiano formado por Diógenes Arruda, Carlos Mariguela,
Jacob Gorender e Mauro Alves só foi perder a hegemonia
com o surgimento da AP, da qual Duarte tornou-se militante no
segundo semestre de 1962. A formação cultural
fez com que ele ascendesse rapidamente dentro da organização,
fazendo parte da delegação escolhida para o congresso
de 1963 na capital baiana. Isso já mostrava a base
da Ação Popular em Salvador, cuja articulação
começava a envolver os estados de Minas, Rio e São
Paulo e, principalmente, a Bahia.
Embora tivesse deixado o seminário ainda mantendo a fé
religiosa, Duarte não se vinculou a nenhuma outra instituição
política até os anos 70. Algum tempo depois, perdendo
um pouco da fé cristã, tornou-se marxista.
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