|
HISTÓRIA
A
capoeira escrava e outras tradições rebeldes
Ao estudar a prática dos negros, historiador
encontra aspectos desconhecidos das relações entre
escravos, senhores e Estado
P
Como a classe dominante se relacionava com os capoeiras?
R O que havia era
o triângulo da desordem. Os interesses do Estado eram
uns; da elite proprietária, eram outros. A elite queria
que os escravos trouxessem dinheiro para ela. O que eles fizessem
na rua era outro problema, não interessava, a não
ser que fosse muito grave. Já a elite do Estado tinha
uma outra visão. Queria evitar que esse escravo na rua
trouxesse confusão, criasse conflito, que desordenasse
o ambiente urbano. Os interesses da elite do Estado não
batiam com os interesses particulares. Havia um conflito, só
resolvido em 1850, mais ou menos. A partir desse momento, o
Estado toma pé da situação. Até
a metade do século 19, era um conflito porque os próprios
senhores iam à Justiça para garantir a impunidade
dos seus escravos. Você tendo escravos presos, perde a
renda. Era muito comum viver da renda dos escravos. Preso, o
escravo não ficava apenas sem sua subsistência.
Era um escravo que retirava também a subsistência
senhorial. Havia muitos conflitos do Estado com os particulares.
Era um jogo percebido pelos escravos. Nossos intelectuais não
perceberam isso. Eles criaram um mito de que os senhores sempre
se uniram contra os escravos. Não é verdade, eram
interesses diferenciados. O policial não era um feitor.
O feitor dependia diretamente da ordem do proprietário,
ele trabalhava sob o controle estrito do proprietário.
A polícia, não. Ela estava a serviço do
Estado.
P
Qual era, basicamente, a atividade econômica desses
senhores?
R Muitos dos senhores
eram comerciantes, alguns inclusive tinham cargos dentro do
próprio Estado, como pequenos funcionários. Eram
sinecuras, recebiam sem trabalhar. Eles tinham seus escravos
como fonte de renda; era uma escravidão monetarizada,
muito diferente da rural. O escravo urbano trabalhava com dinheiro,
tinha o valor do dinheiro. Uma parte, ele entregava ao senhor
e outra ele usava. Ele comprava, era consumidor. Havia uma idéia
estúpida no século 20 de que a Inglaterra aboliu
a escravidão para transformar o escravo em consumidor.
É uma asneira. Ele era um consumidor em potencial. Ele
estava dentro de uma sociedade mercantilizada, e percebia esse
valor.
P
Até que ponto essa nova ordem urbana contaminou
o ambiente rural?
R Existe muita relação.
No meu primeiro trabalho, desenvolvi uma idéia meio separada,
de que a escravidão urbana e a rural eram mundos mais
ou menos separados. Mais ou menos, porque na minha tese de mestrado
uso material do meio rural como fuga. No doutorado, eu amplio
essa relação, que é maior ainda. Agora,
elas são muito diferenciadas. A lógica política
do escravo rural não é a mesma do escravo urbano.
Comunidade no meio rural era muito mais densa, numerosa. Essas
comunidades nas senzalas eram numerosas e, apesar do contato
entre si, em geral há muitos contatos internos, a maior
parte das relações se tecia dentro da comunidade.
P
Mas existia capoeira no meio rural?
R A informação
que tenho da capoeira no mundo rural é de 1850/60. Como
explico isso? A partir de 1850, com o fim do tráfico
no Atlântico, muitos escravos urbanos são levados
para o meio rural. Não é fluxo-refluxo. Eles saem
da cidade para o meio rural. Esses africanos levam os valores
do meio urbano para o meio rural. As informações
que tenho, meio fragmentadas, são relativas a essa década
de 60, daí em diante. Na década de 50, apesar
das relações entre si, as lutas do meio rural
e urbano tinham lógica e estratégias próprias.
P
No meio urbano, as idéias circulavam mais?
R Você tinha
uma cultura escrava urbana mais cosmopolita, que recebia influências
de outros países. Você tinha marinheiros, jornais
circulando. O escravo urbano estava mais aberto a influên-cias
externas, a grupos intermediários. Ele conversava com
viajantes, tinha uma rede de relações mais ampla,
estava mais ligado ao panorama internacional da escravidão.
P
Como o Estado via essa possibilidade de mudança?
R O Estado colonial
chegou aqui com grande força no século 18, mas
chega com mais força ainda no século 19, em 1808.
Quer dizer, o Rio vira uma corte portuguesa. Com isso, você
tem um aparato estatal militar muito grande, que deu uma segurança
para que não houvesse uma rebelião. Impediu, até,
uma grande rebelião no Rio como houve em Salvador. Mas,
ao mesmo tempo, os interesses desse Estado não são
os interesses dos particulares. Há um status quo, um
modus vivendi entre escravos e senhores do século 18,
que é um pouco perturbado por esse novo Estado. Ele quer
evitar que o escravo possa sair à noite, jogar capoeira,
uma série de atividades que os senhores autorizavam.
É o chamado direito costumeiro, que tem uma margem: olha,
eu quero que você faça isso como escravo, mas em
compensação você vai ter uma série
de regalias; você pode ter isso, jogar sua capoeira etc.
Nisso, a capoeira entra como elemento desse modus vivendi. Havia
uma complacência senhorial. Existia um acordo entre escravos
urbanos e senhores no século 18.
P
E o Estado interfere nesse processo?
R O Estado chega
e atrapalha esse acordo. Cria um conflito entre três grupos:
os escravos, os particulares e o Estado. A partir de 1840, por
exemplo, você tem a chegada ao poder de Dom Pedro II,
que gera uma expectativa de esperança e renovação.
Há um certo investimento dos escravos sobre ele: é
um cara novo, é um cara desligado das elites portuguesas,
um brasileiro... Um investimento que dá frutos a partir
de 1857, quando ele comuta todas as penas de morte de escravos
e a prisão perpétua. Isso é lido como uma
posição do imperador a favor dos escravos e contra
os senhores; contra o próprio Estado, que criou a pena
de morte. Então há uma leitura política.
Os escravos lêem politicamente, não são
incapazes de pensar. Até há uma estratégia
de apoiar grupos menos conservadores.
P
Em seu livro, o senhor relata casos de corrupção
nas relações entre a polícia e os senhores/escravos.
Isso era novo à época?
R Você mais
ou menos tem um mundo urbano já monetarizado. Mas o Estado
chegou tarde no Brasil colonial. A lógica das relações
de poder sempre foi, no Brasil colonial, a lógica paternalista,
de favor, do patriarcalismo, do apadrinhamento. Então
tudo isso é coisa tradicional no Brasil, não é
uma visão de cidadania. É uma relação
muito pessoal. Isso é do meio rural e das raízes
da nossa sociedade. Quando falamos hoje de Estado, parece uma
coisa abstrata. Na época não era, o Estado era
o rei, era propriedade do rei. Os escravos não são
propriedade do Estado, mas do imperador. Tanto que tem até
um caso no livro em que escravos do governo mandam um manifesto
ao imperador reclamando contra maus-tratos no Arsenal de Marinha.
Então o que eles vêem: que não são
propriedade do Estado, mas sim do imperador. Quando eles foram
maltratados, o imperador não sabia; então eles
mandam um aviso. Na época não havia uma divisão,
e a sociedade brasileira é tradicionalmente patrimonialista.
A polícia, nesse cenário, é o novo. Não
que não houvesse formas de controle social antes, mas
a polícia é um corpo militar no meio urbano com
uma função específica de controle na ordem
da cidade. É um grupo profissional. O que havia antes
eram soldados do exército, pessoas civis, que andavam
armados nas ruas, mais ou menos exercendo a função
de polícia. Só que é diferente de uma função
que já nasceu como polícia, em 1809. É
uma instituição nova chegando ao Brasil, mas desvinculada
desses interesses particulares. Antigamente os particulares
faziam sua segurança.
P
Os historiadores divergem sobre a origem do termo capoeira.
O que o senhor pesquisou a respeito?
R Passei quatro anos
pesquisando. Fui a Angola e Portugal (um mês em cada).
Utilizei fontes dos dois países, principalmente em Portugal,
que foi mais fácil. Lá trabalhei no Arquivo Ultramarino
de Lisboa e encontrei evidências de escravos portando
facas, andando em grupos à noite, toda a descrição
do capoeira, mas não o termo capoeira. O fenômeno
capoeira foi muito anterior à palavra, que não
é africana, mas luso-indígena. Possivelmente foi
um vernáculo que não foi criado pelos africanos,
mas pelos portugueses, a partir da experiência colonial.
Para a cidade, ela está ligada mais ao cesto; tem o termo
rural também. De certa forma, a polícia pegou
esse termo, que tem origem no cesto de palha.
P
A capoeira é hoje um esporte muito difundido e
praticado no Brasil. Como o senhor vê esse fenômeno?
R A capoeira é
uma marca da nacionalidade. Nasceu nos grandes centros
como Rio e Salvador e se espalhou como símbolo
de uma identidade. Nossa elite é muito aberta a influências
estrangeiras. Nessa sociedade que é muito capilar, a
capoeira serve como traço de identidade que está
saindo e ganhando o mundo. Ela inverte o quadrante, cria uma
espécie de auto-estima, afaga nosso ego.
P
Como essa capoeira poderia ser classificada?
R Trata-se de uma
capoeira esportivizada, transformada em apresentação.
Não é mais luta marcial, mas arte marcial, transformada
em ginástica. Ela sofreu muitas influências, mudou
seus fins, mas manteve seus meios. Suas músicas, por
exemplo, demonstram uma coisa do cotidiano, da forte presença
católica, da afirmação. Manteve seu padrão
social de baixa renda e uma certa identidade de cor, que foi
um pouco alterada na segunda metade do século 19, mas
que voltou no século 20. Ela é também uma
espécie de canal com nosso passado; em geral, o Brasil
é um país sem memória. Ela tem uma memória
gestual, é uma coisa muito lúdica. Não
é um campo muito intelectualizado, por mais que se fale
sobre ela e ela seduza os intelectuais. Acabou se tornando um
elo com nossa raiz escrava, crioula e africana. E um elemento
de afirmação de identidades negra e nacional,
que estão conjugadas, o que não é muito
comum.
P
O senhor vê alguma relação entre
a repressão de hoje nas periferias das grandes cidades
e aquela da qual os capoeiras eram vítimas?
R Você tem
uma leitura de controle desse meio urbano que se assemelha.
Por exemplo, os grupos de traficantes que dominam parte dos
morros cariocas. Ao contrário do que muita gente fala,
a favela não está ligada ao quilombo, como se
pensa. Ela está ligada a uma leitura urbana, um recorte
urbano que vem do século 19. Está ligada ao beco
da viela; não tinha beco e viela no quilombo. A favela
nasce quando os indivíduos são expulsos desse
meio urbano por causa das reformas do século 20 e vão
morar nas áreas que escaparam disso, que no caso são
os morros. Mas eles trazem do meio urbano toda uma vivência.
A favela de hoje repete cenários urbanos do século
19. Ela tem uma topografia e um desenho urbanístico que
se aproximam muito mais da cidade colonial do que a gente pensa.
Tem essa coisa labiríntica, da experiência comunitária,
que vivia no subterrâneo, vivia escondida do mundo repressor.
Os cenários mudaram, mas não muito. Nagôs
podem ser Comando Vermelho, Terceiro Comando e por aí
vai. Eles disputavam o domínio urbano, contra a polícia.
Isso foi uma tradição que foi seguida, não
surgiu agora.
P
E no caso da resistência cultural? A periferia
de São Paulo produz, por exemplo, manifestações
populares que são reprimidas, como é o caso do
movimento hip hop. Como o senhor vê isso?
R A sociedade brasileira
se moderniza, mas a exclusão continua. A lei é
igual para todos, mas na prática quem enche as cadeias
são pessoas de origem pobre e de origem negra. A modernização
não conseguiu superar as mazelas fundamentais dessa sociedade.
Então, a exclusão utiliza um novo ambiente para
se manifestar. O que acontece é que o campo da desigualdade
é internacional. Nos EUA, também, teoricamente,
todos são iguais... Mas não é assim. A
maioria negra é excluída, sempre foi assim, e
vai piorar com os republicanos. A coisa do nacionalismo para
esses movimentos negros, como no passado, não interessa
muito. Esse escravo africano não estava muito interessado
em defender sua pátria, na medida em que a pátria
o colocava de joelhos. No século 19, os escravos se relacionavam
com os de outras regiões da América, por exemplo.
Havia toda uma tendência, os interesses eram os mesmos,
o discurso nacionalista não criava solução
para nada, não dava possibilidade, era um discurso conservador.
Em nível de América, de Hemisfério Ocidental,
você tem mesmo uma questão de exclusão racial
e social mais ou menos coligada. O hip hop é um pouco
aquilo: se incomoda meu opressor, deve ser bom para mim também.
É uma espécie de aliança tácita
nesse sentido. A coisa é criada um pouco nos opostos.
Quer dizer: do que nossa elite branca gosta? Ela gosta de música
suave, do erudito, então você carrega nos opostos.
É uma manifestação de classe, de afirmação
racial, é um jogo de espelhos: se você me oprime,
a minha identidade não pode ser igual a sua. A democracia
até facilita isso. Esses grupos urbanos estão
querendo uma identidade própria, mas eles não
têm acesso à identidade ancestral, a não
ser a religião. O jovem é um pouco deslocado,
inclusive na religião, que é muito hierárquica.
Nesse cenário, o campo internacional se torna o campo
da identidade. Como resposta a essa pressão, eles traçam
uma identidade reacional. Tem um sentido político em
relação a isso. A tendência é ele
se aprofundar cada vez mais, buscar suas contradições.
P
Com isso, a repressão é perpetuada...
R O que você
tem é a modernização conservadora, o que
não significa uma mudança fundamental das condições
de vida. O que acontece é que essa energia dos jovens,
essa coisa da busca de afirmação, bate de frente
com essa coisa da polícia já ter nascido com objetivo
racial. Quando a polícia nasceu, ela já tinha
isso no estatuto: controlar a massa escrava. A polícia
não foi criada no Brasil para o bem-estar público,
mas sim para garantir os interesses do Estado. O regime militar
piorou ainda mais isso. A polícia está aí
para garantir a ordem, não a manutenção
da segurança. Ela está mudando lentamente por
causa da democracia. As comunidades pobres são vistas
como potenciais perigosas. E o jovem é visto como o mais
perigoso de todos. Ele é o cliente primário da
ordem policial.
|
|