Alta (in)definição
Docentes da Unicamp têm contribuído
nas discussões sobre implantação da TV digital
MANUEL ALVES FILHO
Imagine a seguinte cena: o fã de Gustavo Kuerten chega em casa, liga o televisor, acomoda-se no sofá e começa a acompanhar uma partida do tenista. No momento em que o brasileiro saca, o telespectador mira a bolinha e enxerga, com absoluta nitidez, a textura da mesma. Mais: o som da transmissão, que tem a mesma qualidade do proporcionado pelo cinema, faz com que ele tenha a sensação de estar assistindo ao jogo da arquibancada. Dentro de poucos anos, a seqüência descrita anteriormente deixará o campo da hipótese e virará rotina para os brasileiros. As discussões em torno da implantação da TV digital no país, que envolvem a definição da tecnologia e do modelo de negócios a serem adotados, estão ingressando na reta final.
O debate, conduzido atualmente pela Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), iniciou-se há quatro anos. Nesse período, técnicos, pesquisadores e representantes de emissoras de televisão vêm analisando os aspectos técnicos, econômicos e sociais da adoção da TV digital no Brasil. Um grupo formado por três docentes da Unicamp, pertencentes ao Departamento de Comunicações (Decom) da Faculdade de Engenharia Elétrica e de Computação (FEEC), tem oferecido contribuições regulares à reflexão e chamado a atenção para alguns aspectos fundamentais.
O professor Dalton Soares Arantes ressalta que a TV digital não pode ser encarada como uma panacéia, idéia que alguns procuram disseminar. "Chega-se a sugerir que a TV digital poderia servir como alívio para as mazelas sociais, inserir o cidadão no mundo digital, prover serviços de telecomunicações de forma eficiente e barata, atender receptores fixos, móveis e portáteis, além de levar a TV de alta definição a todos os lares sem o auxílio de antenas externas. Infelizmente, tais afirmações carecem de suporte técnico e podem desviar o foco das discussões realmente importantes", afirma. De acordo com ele, uma premissa básica a ser considerada na escolha do padrão da TV digital é a preferência do telespectador brasileiro. Pesquisa de opinião realizada pela Fundação CPqD em parceria com a Anatel constatou que a maioria das pessoas consultadas considera muito importante uma imagem de alta definição, uma das possibilidades mais relevantes da TV digital.
Max Henrique Costa, chefe do Decom, diz que três padrões de transmissão desenvolvidos no mundo vêm sendo analisados e testados no Brasil desde 1998. São eles: o ATSC (norte-americano), o DVB-T (europeu) e o ISDB-T (japonês). De modo geral, conforme os estudos conduzidos pelo grupo da Unicamp, todos apresentam vantagens e desvantagens entre si. "Na modalidade de alta definição, a TV digital permite a transmissão de quadros de 1920 por 1080 pixels (pontos), da ordem de seis vezes maior que a resolução atual. A escolha do padrão vai depender fortemente do modelo de negócios a ser adotado e de possíveis acordos comerciais mais abrangentes", diz. Costa ressalta, porém, que a opção deve ser fundamentada também em critérios técnicos. Ele lembra que, no passado, o Brasil sofreu grandes prejuízos por adquirir tecnologias supostamente adequadas às necessidades da época, mas que não haviam sido rigorosamente testadas nos países de origem e mostraram-se inadequados no longo prazo.
Arantes acrescenta que um exemplo clássico desse equívoco é o acordo de cooperação nuclear firmado com a Alemanha. A parceria previa a transferência de tecnologia ao Brasil, o que se mostrou inviável na prática. Resultado: o país aplicou mal algumas dezenas de bilhões de dólares. "O mesmo pode ocorrer em relação à TV digital, se não tomarmos os devidos cuidados", adverte, salientando que mesmo nas nações que saíram na frente, a introdução da TV digital ainda se encontra no estágio inicial. Com base nas pesquisas que já realizou, o grupo da Unicamp considera ineficiente a transmissão de sinais digitais a receptores móveis em ambientes urbanos por sistemas compartilhados com a transmissão de alta definição para receptores fixos. Conforme o professor José Geraldo Chiquito, que completa a equipe da Universidade, existem dificuldades técnicas para que isso ocorra.
Primeiro, a recepção de TV simplesmente não é compatível como o ato de dirigir um automóvel, ao contrário do que acontece com a recepção de rádio AM ou FM. Além disso, lembra Chiquito, seria necessário fazer concessões enormes de cobertura, potência consumida e taxa efetiva de bits, o que penalizaria o mercado de recepção fixa, notadamente o mais importante. O envio de sinais digitais de vídeo para receptores móveis é muito mais viável, de acordo com ele, com a estrutura de transmissão em pequenas regiões (células), com múltiplas antenas, como nas futuras gerações (3G e 4G) das comunicações celulares. "Deve-se considerar, ainda, que a recepção móvel de TV analógica, que também seria tecnicamente viável, nunca despertou entusiasmo e nem gerou tentativas sérias de implantação".
Mercado e democracia
Ainda em relação às precauções que o país precisa tomar antes de definir qual padrão de TV digital adotará, o grupo de pesquisadores da Unicamp cita um ponto nevrálgico. Segundo os especialistas, é preciso evitar a adoção de sistemas que não sejam utilizados em outros países no formato brasileiro de canalização, ou seja, com canais de 6 MHz. Do contrário, avisam, isso nos isolaria do restante do mundo e criaria uma reserva de mercado inaceitável, restringindo o mercado exportador e impedindo a queda de preços possibilitada pela concorrência externa . O professor Arantes considera que a TV digital abre ao país possibilidades técnicas e econômicas de longo alcance. O Brasil poderia abrigar, por exemplo, uma moderna indústria de monitores de tela plana e projetores de alta resolução, além de uma indústria de receptores digitais e componentes eletrônicos. As estimativas dão conta de o marcado de TV digital movimente algo em torno de US$ 100 bilhões nos primeiros dez anos de sua implantação no Brasil.
Mas seria verdade que a futura tecnologia só poderá ser desfrutada pela elite? Os professores da Unicamp acreditam que a TV digital de alta resolução se transformará em um produto de consumo de massa. Os docentes lembram que o preço dos receptores nos EUA vem caindo rapidamente. Os modelos que eram vendidos inicialmente a US$ 7 mil já podem ser comprados por cerca de US$ 1,5 mil. "Isso já ocorreu com outros produtos que ostentavam conotação de alta tecnologia no momento em que foram introduzidos no mercado. É o caso da TV em cores, do forno de micro-ondas, do telefone celular e mais recentemente do DVD. Hoje, são aparelhos que já foram ou estão sendo popularizados", afirmam.
Uma alternativa para quem não puder comprar um aparelho de TV digital imediatamente é a aquisição de um set-top-box, equipamento que converte os sinais digitais em analógicos e que hoje custa menos de US$ 150 nos EUA. A diferença, nesse caso, estará na nitidez da imagem e na perfeição do som. Para o telespectador que estiver acompanhando a partida de Gustavo Kuerten pelo televisor digital de alta resolução, a emoção causada por uma eventual vitória do tenista brasileiro certamente deverá ser muito maior.