A dialética iluminada de Drummond
Especialistas falam da obra do maior poeta brasileiro,
cujo centenário de nascimento é comemorado neste mês
ANTONIO ROBERTO FAVA
"No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra".
Quando o poeta Carlos Drummond de Andrade publicou esse poema em 1928, "insignificante em si", diria mais tarde, talvez não imaginasse que fosse causar tanto escândalo e que seria motivo de tantas divergências. Uma brincadeira (ou não?) que renderia ao poeta censuras e elogios. Agora, 74 anos depois, quando se comemora o centenário de nascimento do poeta (31 de outubro), a polêmica parece esquecida e o poema agora é visto sob um outro ângulo.
Poeta, contista e cronista, Drummond é considerado um dos maiores poetas da língua portuguesa e da literatura latino-americana. É respeitado por críticos nacionais e estrangeiros como um dos grandes poetas universais. Funcionário público, homem de natureza reservada, avesso principalmente às entrevistas, só mesmo no fim da vida o mineiro de Itabira, Minas Gerais, se liberou para as manifestações pessoais. Cada vez mais freqüentes, elas foram uma voz lúcida e iluminada. Ao longo de sua vida, produziu mais 40 livros, muitos deles traduzidos para países como França, Inglaterra, Itália, Alemanha, Suécia, Argentina, Chile, Peru, Cuba, Estados Unidos, Portugal, Espanha e Tchecoslováquia.
Para Alcides Villaça, professor de Literatura Brasileira da USP e ex-professor-visitante da Unicamp, especialista em Drummond, a importância do poeta para a poesia brasileira "está na altura a que ele elevou um discurso poético carregado, ao mesmo tempo, de reflexão inteligente e fortíssima sensibilidade, de tal modo que o leitor é envolvido por uma onda rítmica, onde belas imagens e iluminações do pensamento se dialetizam o tempo todo".
Nos poemas da década de 50, sobretudo em Claro Enigma (1930), é forte a presença de Paul Valery, de cujos versos Drummond se valeu na epígrafe do livro. "Mas é bom ressaltar que, acima de qualquer influência sofrida, a poesia de Drummond é personalíssima, individualíssima, tanto nos temas que freqüenta (entre eles, as raízes mineiras e provincianas, a oposição entre o arcaico e o moderno) como nas várias soluções de estilo que adotou ao longo dos seus mais de 60 anos de poesia", conta Villaça. Acompanhar as chamadas "fases" da poesia de Drummond, segundo observações do professor, significa ir reconhecendo uma sucessão muito variada de formas, que foram respondendo às suas também variadas perspectivas do mundo e necessidades de expressão.
O "modernismo" de Drummond, no sentido estrito que o liga ao Movimento de 22, está, sobretudo, no primeiro livro que o poeta publicou: Alguma poesia (1930), justamente no humor piadístico e num acentuado desejo de expressar o instante, o cotidiano, a "nota social" -- além de cultivar uma linguagem desconcertante e fragmentária, como no Poema de sete faces, por exemplo. "Mas a pedra de toque foi mesmo o No meio do caminho, que gerou tantas controvérsias e tantos comentários que, décadas mais tarde, o poeta publicou um livro -- No meio do caminho -- História de um poema, onde reúne todas as reações, glosas, paródias, censuras ou elogios que o poema provocou. O escândalo associava-se à forma do poema, repetitiva e circular, que irritava os ouvidos acostumados às harmonizações da poesia convencional, bem como aos enigmas da expressão "pedra no caminho", que todo mundo queria porque queria "decifrar", explica o professor Villaça. Talvez até fosse resultado de uma brincadeira do poeta.
Sozinho, entre mangueiras
Carlos Drummond de Andrade nasceu em Itabira, Minas Gerais, em 1902, e morreu no Rio de Janeiro, em 1987, aos 85 anos. Passa boa parte da infância na fazenda da família, "sozinho, entre mangueiras" , como diria, mais tarde, em seu poema Infância, publicado em Alguma Poesia. É tido como um dos mais maiores poetas que o Brasil já teve, comparado aos maiores poetas estrangeiros. Drummond foi redator do Diário de Minas. Mais tarde foi responsável pela abertura no jornal de textos modernistas. Depois de haver completado o curso de Farmácia, atividade profissional que não exerceu, foi convidado pelo amigo Augusto Capanema, então Ministro da Educação, para chefiar o referido gabinete, em 1930. Mais tarde, Drummond tornou-se chefe do Serviço do Em 1930 lança Alguma Poesia e, em 1934, Brejo das Almas, ambos com textos carregados de fina ironia. Foi uma fase que, enquanto ironizava os costumes e a sociedade, asperamente satírico em seu amargor e desencanto, entrega-se com empenho e requinte construtivo à comunicação estética desse modo de ser do poeta de Itabira.
Em Confissões de Minas (1944), obra de Ensaios e Crônicas, Carlos Drummond de Andrade admitia: "Entro para a antologia, não sem registrar que sou o autor confesso de certo poema, insignificante em si, mas que a partir de 1928 vem escandalizando meu tempo, e serve até hoje para dividir no Brasil as pessoas em duas categorias mentais". Referia-se ao poema No Meio do Caminho. Drummond publicou aproximadamente 50 livros. Teve ainda obras publicadas em espanhol, inglês, francês, italiano, alemão, sueco, tcheco, entre outras línguas.
Em 1987, doze dias depois da morte de sua única filha Maria Julieta, Drummond morria a 17 de agosto, deixando obras inéditas como O Avesso das Coisas, O Amor Natural e Moça Deitada Na Grama.
Horizontes e limites no mundo prosaico
No entanto, como se vê, a ironia é uma constante na poesia de Drummond, que nasce, segundo Villaça, "do contraste entre um forte idealismo, que está sempre no horizonte dos afetos e da consciência do poeta, e uma forte experiência dos limites que há em cada indivíduo e no mundo prosaico em que vivemos". Sua ironia nasce a cada vez que o poeta se defronta com a impossibilidade de realizar as altas aspirações humanas que estão nele, como em quase todos nós: amar e/ou conhecer o outro de modo absoluto, conhecermo-nos a nós mesmos de modo absoluto. "Talvez o existencialismo sartreano tenha deixado no poeta a convicção de que de fato "o inferno são os outros", ao mesmo tempo em que o sentimento de responsabilidade pessoal para com o mundo faça de cada um de nós o responsável pela liberdade de todos", acredita Villaça.
Carlos Drummond de Andrade, que escreveu José, Resíduo e A morte do leiteiro era um homem reservado, cioso da sua intimidade, em geral avesso a entrevistas e contatos pessoais. Muitos de seus amigos como Mário de Andrade, primeiro, e Ziraldo, depois, sentiram seu grande interesse em conversar por telefone ou por cartas, muito maior do que em papear "cara a cara". Drummond preferia passar uma hora ao telefone a se encontrar com alguém em sua casa. "No entanto, aos sábados, reunia-se sempre com seus amigos - escritores e intelectuais - - na casa de Plínio Doyle, eventos que acabaram sendo chamados de os "sabadoyles". Nessas reuniões, até ata faziam. Só não conversavam sobre política, para não azedarem a conversa", diz o professor.
Villaça recorda-se que Pedro Nava, no seu livro de memórias Beira-mar, fala muito das "travessuras" do grupo de jovens intelectuais da Belo Horizonte dos anos 20, entre os quais estava um Drummond de óculos e bigodinho, de aspecto grave, respeitado por todos, mas capaz de gestos tresloucados, como escalar um alto arco de pontilhão e desafiar o guarda-noturno, que lhe dera voz de prisão, a ir buscá-lo lá em cima. O grupo costumava freqüentar a zona de meretrício de Belo Horizonte, de onde os rapazes saíam melancólicos e cheios de fossa existencial... Os prazeres sexuais facilmente atendidos provocaram no poeta grandes remorsos, uma sensação de "nojo de si mesmo", sentimento que se expressa em boa parte dos poemas do livro Brejo das almas e não deixa de ecoar num poema como a Mão suja.
O especialista que veio da Bulgária
A convite da Unicamp, o professor Rumen Stoyanov, da Universidade de Sófia, na Bulgária, proferiu uma conferência no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL). Stoyanov é um dos mais importantes tradutores de escritores brasileiros. E Carlos Drummond de Andrade, com o qual manteve um relacionamento de mais de 13 anos, é um deles. E não é de se estranhar que o poeta brasileiro seja um dos escritores mais conhecidos na Bulgária.
Professor de Literatura e Cultura do Brasil na Universidade de Sófia, Stoyanov acaba de escrever, em português, o livro Drummond e a Bulgária, ainda inédito. Trata-se, segundo diz, de uma obra na qual traz minucioso trabalho de pesquisa sobre o que Carlos Drummond de Andrade escreveu em versos e prosa sobre a Bulgária. Além de conter farto material sobre o que a crítica do seu país escreveu sobre o poeta mineiro, aborda também uma série de correspondências, ensaios e citações a respeito do poeta brasileiro.
Stoyanov diz que Drummond era um poeta bastante admirado na Bulgária e que seu povo tem grande admiração e simpatia pela literatura brasileira, em especial a poesia do poeta de Itabira. Stoyanov conta que o poeta teve 13 livros traduzidos para o búlgaro por especialistas em Drummond. Um deles é o próprio Stoyanov. Para ele, Drummond, "é, sem dúvida, o mais importante poeta da nossa época. Tanto é que, passados mais de 15 anos de sua morte, ainda é reverenciado no meu país, desfrutando de alto prestígio não apenas entre os intelectuais, mas também entre o povo. Eu diria que, devido à força de concisão do poeta brasileiro, Drummond é tão ou até mais importante que Pablo Neruda".
Um legado de rigor e experimentação
Para o professor Paulo Franchetti, do Departamento de Teoria Literária do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp (IEL), e atual diretor da Editora da Unicamp, Drummond representa o momento de consolidação da poética modernista no Brasil. Por isso mesmo, é uma das maiores vozes líricas da poesia brasileira do século 20. "Acredito que o lugar de Drummond para as gerações atuais, para a literatura que se pratica hoje no Brasil, é assegurado, não pelos primeiros livros modernistas que publicou, como Alguma Poesia (1930) e Brejo das Almas (1934), que têm um interesse mais propriamente histórico hoje, mas mais pela alta dicção do poeta a partir de José", observa o professor. Mas assinala que a grande obra de Drummond é aquela que compôs entre José e Lição de Coisas, este na década de 60. Franchetti acredita que a partir do livro Claro enigma (1952), Drummond tenha deixado um legado de extrema importância para a poesia contemporânea de rigor, de experimentação, de sobriedade e de recuperação das formas tradicionais da literatura.
Os poemas de Drummond que Franchetti mais aprecia são Máquinas do mundo, Rapto e outras obras que pertencem a essa fase. Muito mais do que os poemas-piadas de começo da carreira, que tiveram, evidentemente, a sua importância, algumas obras até polêmicas como No Meio do Caminho, que à época tinham um efeito demolidor e era lido mais como um ato de intervenção. "Era um tipo de poesia mais conceitual, que naquele momento tinha uma inserção dentro de uma polêmica pela afirmação de novos critérios estéticos. Creio que esse lado vem alcançando um interesse histórico cada vez maior e que o Drummond de hoje, presente na linguagem de nossos poetas, é o poeta das décadas de 40 e 50. Mesmo o Drummond político de Sentimento do Mundo (1940) e A Rosa do Povo (1945), embora seja um grande poeta, não me parece que nesse momento está tão presente na poesia que se faz hoje no Brasil", avalia.
Para o professor da Unicamp, Drummond é um poeta de expressão internacional. "É um dos poetas brasileiros que foram mais traduzidos. Acredito que ele tem uma inserção internacional ao lado de João Cabral de Mello Neto. No entanto, é difícil fazer comparações. Não resta dúvida que é um poeta lido em várias línguas e que representa, em qualquer língua, um momento elevado da lírica do século 20".
O profano e a concepção fragmentária
Poeta abundante, multifacetado, Drummond segue estudado sob ângulos também variados. A professora Suzy Sperber, do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp, encontra em sua poesia até mesmo "o espaço do sagrado" - tema de um ensaio recente.
"A apreensão do real e das dimensões do espírito humano aproximam Carlos Drummond de Andrade da mais profunda compreensão do sagrado", escreve Suzy. "Há diferentes poemas cujo tópico trata da urbe, da produção da poesia, da natureza, ou do corpo. Ao usar o recurso da enumeração caótica, ou, tematicamente, quando ele fala sobre as urbes cindidas, sobre o cotidiano esfacelado, Drummond aborda um tema caro para a modernidade: o mundo fragmentado. A concepção fragmentária do mundo se deve a uma concepção profana, que se define pelos instantes, pelas obrigações de trabalho, sociais", assinala a professora.
Ela explica que "o imediatismo das ações e eventos dificulta a compreensão do todo, do evento inserido no mundo, passando a ter um estatuto ontológico disperso, diferente. Desvaloriza a vida em sociedade, a solidariedade, levando o ser humano para uma solidão última, no limite sartreana. Nos poemas de Drummond também se percebe a angústia do eu lírico diante uma tendência para o novo a todo custo, para o apagamento das raízes, de tradições, de valores, de ética, caracterizadores das atuais misérias humanas".