Identidade nacional
e outras identidades
Milhares de documentos dos séculos 19 e 20 adquiridos pela Unicamp enriquecem acervo para pesquisa
ANTONIO ROBERTO FAVA
Há exatamente 115 anos, a edição 96 do jornal Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro publicava, na primeira página, entre os mais variados assuntos, uma crônica-poema de Machado de Assis intitulada Gazeta de Hollanda.
Esse é apenas um dos milhares de documentos que estudantes, professores e pesquisadores poderão ter acesso nas estantes do Arquivo Edgard Leuenroth (AEL) do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. O acervo pertence à Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro e sua aquisição, em forma de microfilme, faz parte de um dos Projetos Coletivos desenvolvidos pelo Centro de Pesquisa em História Social da Cultura (Cecult/IFCH), intitulado: Cultura e diversidade no Brasil: para além da história da identidade nacional (séculos 19 e 20). Além desse projeto, financiado pelo Pronex/CNPq, o Centro abriga ainda dois outros grandes projetos: Santana e Bexiga. Cotidiano e cultura e trabalhadores urbanos em São Paulo e Rio de Janeiro entre 1870 e 1930, um Projeto Temático Fapesp, e Diferenças, territórios, identidades: os trabalhadores no Brasil, 1790-1930, um programa de intercâmbio interinstitucional com apoio do Procada/CAPES.
Segundo o professor Sidney Chalhoub, do IFCH, um dos objetivos do projeto financiado pelo Pronex/CNPq é tentar prover a Unicamp de uma infra-estrutura de pesquisa em história e ciências humanas. A aquisição de microfilmes cria possibilidades para que a própria Universidade tenha condições de oferecer mais oportunidades de fontes de pesquisa para historiadores, professores e alunos de um modo geral.
Os microfilmes copiados da Biblioteca Nacional que detém os originais são catalogados e indexados no Cecult e enviados ao Arquivo Edgard Leuenroth. O trabalho é feito por bolsistas-trabalho do SAE (Serviço de Apoio ao Estudante) e permite que o acervo possa estar disponível para a consulta do público de forma mais rápida.
Clubes, cartórios e folguedos
O projeto financiado pelo Pronex/CNPq concentra quatro núcleos de pesquisa: "Culturas e identidades entre africanos e seus descendentes"; "Culturas de classe, trabalhadores urbanos"; "Os literatos e os "outros": uma história social da literatura" e "Culturas do povo, cultura nacional: tradições e festas". O primeiro deles refere-se à história dos negros no Brasil, e utiliza documentos impressos, como os jornais, e vasto material arquivístico.
Há inúmeros trabalhos sendo desenvolvidos no próprio IFCH, que usam uma fonte que se tornou importante para esse tipo de pesquisa: a documentação cartorial, incluindo aí os processos cíveis e criminais, os inventários e os registros de alforria. "Ainda nesse primeiro eixo, estamos procurando a identidade dos africanos que vieram para o Brasil e o que aconteceu com os descendentes deles, aqui", explica a professora Silvia Hunold Lara, diretora do Cecult.
O segundo eixo trata da cultura e da história dos trabalhadores urbanos, dos operários. Esse é um campo que tem uma tradição de estudos, com suas peculiaridades. Mas, aqui, as pesquisas não enfatizam apenas a história do movimento operário, do sindicato ou dos partidos políticos. Buscam, notadamente, a história cotidiana dos trabalhadores, dos locais onde se reuniam, fora dos lugares mais tradicionais, das fábricas ou dos sindicatos.
"Nesse caso, há um grande banco de dados sobre clubes e sociedades em que os trabalhadores se organizavam nesse período. Os pesquisadores recolhem dados sobre as sociedades dançantes, clubes de carnaval... É uma tentativa de pesquisar a experiência dos trabalhadores de uma forma mais ampla do que examinar só os operários de uma determinada produção", diz o professor Sidney Chalhoub.
Garimpagem
Para elaborar esse banco de dados, de onde são retiradas as informações pertinentes, por exemplo, onde se encontravam, a que clube pertenciam e onde se localizavam esses mesmos clubes, "a gente precisou mapear a cidade de São Paulo e, sobretudo, a cidade do Rio de Janeiro, onde a pesquisa se desenvolveu de modo mais consistente", ressalta Chalhoub. As informações foram retiradas de jornais e outros materiais impressos do século 19 e início do século 20. "Muitas vezes utilizamos até pequenos jornais ligados aos referidos grupos, que hoje são peças raras, cujos originais podem ser encontrados na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro", diz Silvia.
O terceiro eixo estuda justamente quem falou ou escreveu sobre os operários, os negros, os trabalhadores de forma geral. "São os literatos, os cronistas que escreviam para jornais do século 19. Entre esses literatos estava Machado de Assis (1839-1908)", revela a professora Silvia. Um exemplo disso é a crônica-poema que Machado de Assis publicou em 1887, no jornal Gazeta de Notícias.
Como resultado das pesquisas desenvolvidas por esse núcleo, há ainda um banco de crônicas, várias delas somente publicadas no século 19 e nunca mais reeditadas. Existe também uma linha de publicações do Cecult que está editando livros com séries de crônicas publicadas em jornais, com notas e comentários sobre o autor, fruto também do trabalho dos pesquisadores do Cecult. Investigando os textos produzidos por esses literatos e por folcloristas que estudaram diversas manifestações populares daquela época, é possível que pesquisadores da Unicamp descubram uma porção de coisas interessantes sobre a vida cotidiana, os valores e as estratégias de solidariedade e de luta dos trabalhadores dos séculos 19 e 20.
O último dos núcleos enfoca o que a historiografia costuma chamar de "tradições das festas", referindo-se ao carnaval e a outras festas populares. "Também para isso os jornais são peças fundamentais, pois preservam detalhes dessas muitas histórias e permitem saber mais sobre esses temas. Por isso, parte significativa do dinheiro que conseguimos com o projeto financiado pelo Pronex é aplicada na compra de rolos de microfilmes, que contêm jornais impressos dos séculos 19 e 20", explica Silvia.