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Visões de 25 Brasílias
Pesquisadora resgata projetos de arquitetos
que concorreram com o urbanista Lúcio Costa
LUIZ SUGIMOTO
O urbanista Lúcio Costa deu asas a Brasília. Seguindo os contornos do lago, ele distribuiu a cidade em espaços de traçado alado que abrigam as obras de Oscar Niemeyer - o Palácio da Alvorada, o Congresso Nacional, a Esplanada dos Ministérios. É um conjunto arquitetônico que ainda hoje impressiona estudiosos do mundo todo, um símbolo do urbanismo moderno. A Capital Federal, contudo, nasceria com formas bem diferentes, tivesse sido outro o vencedor do concurso nacional aberto pelo presidente Juscelino Kubitschek para escolha do plano piloto, em 1957. Foram 26 concorrentes.
Uma fileira de edifícios com a altura da torre Eiffel (300 metros) dominaria Brasília, segundo o trabalho apresentado pelo arquiteto Rino Levi. Estreitos demais em relação ao comprimento, os prédios de 75 andares, numa vista aérea, pareceriam gigantescas placas de captação de energia solar. Essas torres serviriam como habitações, enquanto as áreas térreas acomodariam os poderes governamentais. Mais: os elevadores maiores ganhariam a função de avenidas verticais; os elevadores menores serviriam as residências, tal como ruas locais.
Por causa da ousadia, as torres de Levi são as mais conhecidas depois das asas de Lúcio Costa. Os demais trabalhos acabaram no esquecimento e seriam simplesmente excluídos de um fato histórico relevante como a construção da capital administrativa do país. "Foi uma grande surpresa perceber que não existia uma documentação do concurso, com exceção do vencedor. Os projetos desclassificados não foram catalogados. Encontrei registros de alguns em periódicos da época, mas outros se perderam completamente", afirma a arquiteta Aline Moraes Costa. Ela escolheu o concurso do plano piloto como objeto de sua dissertação de mestrado em História da Arte, junto ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, sob orientação do professor Marcos Tognon.
Aline realizou uma pesquisa pioneira. Percorreu o país atrás dos arquitetos, entrevistando-os e recolhendo documentações. Em casos de falecimento, conversou com familiares ou responsáveis pelos acervos. Havia quem não guardou o projeto, mas se dispôs a desenhar croquis. "É curioso que todos os textos eram escritos à mão, em papel parecido com o de embrulhar pão, e copiados em carbono", observa a arquiteta.
O resultado da peregrinação está em um volume de 620 páginas: (Im)possíveis Brasílias Os projetos apresentados no concurso do plano piloto da nova capital federal traz aproximadamente 250 imagens entremeadas por informações e depoimentos igualmente ricos. "Os arquitetos opinaram sobre o resultado do concurso, contaram como receberam a desclassificação. Muitos concordaram com a vitória de Lúcio Costa, outros choraram pela injustiça. São entrevistas excelentes", garante Aline.
Tanto trabalho, mas um só exemplar. "É filho único de mãe solteira", brinca Aline, que pagou caro e do próprio bolso pela impressão, buscando agora financiamentos que cubram novas brochuras. Ela espera despertar o interesse, por exemplo, do governo do Distrito Federal, visto que se trata da própria história da Capital. Enquanto isso, debruça-se sobre um CD e uma página de Internet para disponibilizar o conteúdo aos profissionais da área.
O mais poético - Com base em suas entrevistas, Aline Moraes conclui que existia certo consenso entre os críticos e profissionais da área de que o plano piloto de Lúcio Costa era realmente o melhor. "Era o que mais se adequava aos itens do edital e ele o fez de maneira muito elegante e funcional", opina, embora houvesse fundamento na especulação de que o concurso fora elaborado para que Lúcio Costa vencesse, em função de sua amizade com Oscar Niemeyer.
Entre os críticos ao concurso estavam os irmãos Marcelo Roberto e Maurício Roberto, que apresentaram o mais extenso estudo social dentre os projetos, avaliando população, habitação, uso do solo, otimização da agricultura, etc. "Lúcio Costa fez um simples desenho em papel de seda, entregou com atraso e ganhou", diz a pesquisadora. Ela sugere que, apesar da pressão do Instituto Brasileiro de Arquitetos (IAB), o concurso nacional vingou principalmente porque valorizaria a idéia nacionalista da construção de uma capital por brasileiros, evitando a acusação de monopólio de atividades.
Analisando os trabalhos desclassificados, Aline destacada o segundo colocado, de Boruch Milmann. "A cidade teria um eixo semelhante ao do projeto vencedor, mas era muito mais ortogonal, reto e bem menos poético", explica. Outro plano, dos irmãos Roberto, fundamentado na descentralização, acabou desclassificado pela rigidez nas formas eram hexagonais, voltadas para os edifícios públicos centrais, descartando a monumentalidade tão apreciada pelo júri. José de Sabóia Ribeiro, que se declarava um arquiteto eclético, incluiu elementos da cidade renascentista, da cidade-jardim, com as construções num plano elevado em relação ao lago em tempos medievais, valorizava-se a localização colocando o mosteiro ou castelo no topo.
A utopia modernista
A conceito de urbanismo moderno predominante na época da construção de Brasília estava baseado, principalmente, nas teorias de Le Corbusier. Ele fragmentou o bairro numa série de elementos de construção - a habitação, a rua, os edifícios públicos - e a cidade tornou-se um agrupamento de bairros, reunidos em grupos. Essa metodologia respondia a critérios da produção industrial.
Le Corbusier buscava uma profunda transformação cultural que contestasse a divisão do trabalho, assim como suas instituições, hábitos e interesses consolidados. Na verdade, o foco da discussão não uma cidade que funcione melhor, mas uma cidade que funcione para todos e reparta com eqüidade entre os cidadãos os benefícios dos possíveis melhoramentos.
O arquiteto franco-suiço sistematizou quatro pontos estruturadores de um traçado racional para a cidade: habitação, trabalho, lazer e circulação. A habitação deveria estar sempre próxima ao trabalho e oferecer todos os equipamentos coletivos: creche, escola primária, igrejas, centros culturais, pontos comerciais. A circulação previa hierarquia de vias, com avenidas sem cruzamentos para o fluxo rápido e ruas locais para o fluxo tranqüilo. O lazer seria valorizado nas zonas residenciais, onde as pessoas gastariam o tempo livre em áreas verdes com praças, playgrounds, quadras de esporte, cinemas.
"A idéia da superquadra traz as habitações (prédios) no pavimento superior, com o solo totalmente liberado para que a pessoa circule aleatoriamente no quarteirão, sem uma rua a seguir; de repente, ela se vê diante do playground ou escola", ilustra Aline. A pesquisadora ressalta a utopia modernista de igualdade social: "Todos têm acesso à superquadra e não existe uma idéia tão rígida da propriedade privada. Num mesmo prédio temos apartamentos de um a quatro quartos, contemplando famílias de tamanhos e classes sociais diferentes", acrescenta.
Para Aline, os brasileiros incorporaram algumas vertentes internacionais do urbanismo moderno, mas com ênfase em características próprias, tornando Brasília uma referência. "Por isso, a construção é tão polêmica. Pode-se gostar ou não de Brasília, mas os realizadores merecem respeito pela atitude, a de erguer uma cidade dos tempos modernos".
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