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Em gênero, número e grau
Levantamento feito por pesquisadores do Núcleo de Estudos do Gênero da Unicamp (Pagu) em delegacias especiais que investigam ocorrências contra minorias discriminadas comprova que falta muito para que os casos mais graves sejam alvo de julgamento
Tipificar as ocorrências criminais contra as minorias de uma maneira mais incisiva e considerar a relevância de implantação de Varas específicas no Judiciário. Essa é uma das conclusões da pesquisa Gênero e Cidadania: tolerância e distribuição, conduzida por pesquisadores do Núcleo de Estudos do Gênero da Unicamp (Pagu) em delegacias especiais de polícia voltadas para a investigação e apuração dos delitos envolvendo as chamadas minorias discriminadas mulheres, crianças, jovens e idosos.
Os dados da pesquisa, financiada pela Fundação Ford, foram amplamente debatidos por especialistas e agentes do Ministério da Justiça e de secretarias de segurança pública no seminário Gênero & Cidadania - 20 anos de Morte em Família, realizado entre 16 e 18 de outubro na Unicamp.
Na entrevista abaixo, as professoras Guita Grin Debert e Adriana Piscitelli, respectivamente coordenadoras da pesquisa e do seminário, detalham os pontos principais do estudo.
Qual foi o ponto de partida da pesquisa?
Guita Debert - O foco principal do projeto foram as delegacias especiais de polícia voltadas para a investigação e apuração dos delitos envolvendo minorias discriminadas, sobretudo as Delegacias de Atendimento à Mulher (DDMs), embora não exclusivamente. O interesse do projeto, no entanto, é mais amplo, vai além do funcionamento dessas delegacias.
Até onde chega?
Adriana Piscitelli - Nosso interesse foi compreender os entraves que interferem no acesso dos grupos desprivilegiados à Justiça. O projeto, orientado por essa preocupação, teve diversos objetivos. Um deles era explorar a visibilidade e a confiabilidade das delegacias especiais junto ao público atendido, levando em conta basicamente três aspectos. O primeiro era a familiaridade das agentes, particularmente daqueles trabalhando em Delegacias de Defesa da Mulher (DDM), com uma perspectiva de gênero. O segundo era a articulação das delegacias com os movimentos sociais. E o terceiro, entender a inserção das delegacias no sistema de segurança pública. Procuramos compreender esses aspectos situando as delegacias numa perspectiva comparativa. Além disso, procuramos pensar em como contribuir para refinar o sistema de informações das delegacias, uniformizando os dados.
Qual foi a metodologia adotada?
Adriana Piscitelli - Trabalhamos com delegacias especiais de polícia em três municípios de tamanhos diferentes localizados no Estado de São Paulo - a capital, São José do Rio Pardo, São Carlos e em Salvador, onde desenvolvi uma parte da pesquisa. A capital baiana foi escolhida devido à relevância dos movimentos sociais lá organizados. Assim, seria possível comparar a relação desses movimentos com a dinâmica das delegacias especiais, tais como a Delegacia de Atendimento à Mulher, com a Delegacia de Atendimento à Criança, que não existe em São Paulo, e com a pressão existente para a implantação de uma Delegacia de Crimes Raciais. O movimento negro, em Salvador, ainda não obteve sucesso, em termos de uma delegacia especial, mas conseguiu algo importante: uma promotoria voltada para a apuração dos crimes raciais.
O que no geral constatou a pesquisa?
Guita Debert - Ela mostra que a dinâmica das DDMs sofreu uma mudança radical com a criação da Lei 9099 que deu origem aos Juizados Especiais Criminais (Jecrim), que tratam de crimes de menor potencial ofensivo, cujas penas não passam de um ano de detenção. Acontece que boa parte dos registros feitos pelas mulheres, que são de lesões corporais ou ameaças, acabaram migrando para o Jecrim, onde os juízes não estão tão preparados para lidar com o problema como as delegadas especializadas.
Adriana Pitiscelli - Em termos gerais, os agentes acham que é importante contar com delegacias especiais, sobretudo porque essas delegacias dão visibilidade a certos crimes, incidindo em que delitos não percebidos como crime pela população passem a ser assim considerados. Isso aconteceu com as Delegacias de Defesa da Mulher (DDMs). As pessoas incorporaram a idéia de que violência contra a mulher é crime. Por esse motivo setores do movimento negro, em Salvador, afirmam a necessidade de criar uma delegacia voltada para crimes raciais. Mas, hoje, diferentemente de 15 anos atrás, quando foram criadas as primeiras DDMs, há, entre diversos agentes, uma percepção de que é necessária a instalação de instâncias de atendimento, não apenas no plano das delegacias da Polícia Civil, mas também no Ministério Público. Alguns consideram fundamental, também, a criação de varas especializadas no Judiciário.
O Jecrim de alguma forma acaba alimentando a impunidade?
Guita Debret - Sim, porque tirou muito do poder de pressão das delegacias. Como foi criado para agilizar os processos judiciais, o Jecrim evita a prisão ao trabalhar com penas alternativas. Muitas vezes o marido agressor paga uma cesta básica para alguma instituição de caridade, o que não deixa de ser muito humilhante para a mulher agredida.
Adriana Pitiscelli - É um problema muito complexo. Do ponto de vista de uma delegada de Salvador, a lei 9099 é útil, porque ela tinha problemas com a confecção de inquéritos. Com a lei, ela obtém uma resolução para o caso, mesmo que a pena seja leve. Mas tem o outro lado da história. A delegada, por exemplo, me mostrou uma pasta com imagens impressionantes de mulheres agredidas. Ela disse o seguinte: "O problema é a lei, que diz que isso (mostra as fotos) é lesão corporal leve". A não ser que você esteja impossibilitado de trabalhar por 30 dias e tenha perdido um órgão ou coisa parecida, o caso é tratado como omissão corporal leve. E, sendo assim, a pena é inferior a um ano.
O que é preciso fazer para mudar esse quadro?
Guita Debret - É preciso tipificar as ocorrências de uma maneira mais incisiva. A sociedade e o movimento feminista precisam se mobilizar para dar maior autonomia às delegacias, sobretudo no que diz respeito à classificação dos crimes. As ocorrências criminais precisam ser direcionadas à Justiça Comum e não mais ao Jecrim.
Qual tem sido o papel da academia nisso tudo?
Guita Debret - A academia é fundamental porque fornece elementos para a aprimorar a implantação de políticas públicas. Hoje não se faz nenhuma política pública sem que se pesquise antes a demanda. É imprescindível esse diálogo da academia com a sociedade para a formulação dessas políticas públicas.
Uma obra fundamental
Gênero & Cidadania - 20 anos de Morte em Família foi o tema escolhido para a abertura do evento, em comemoração às duas décadas de lançamento do livro Morte em Família, Representações Jurídicas de Papéis Sexuais, da professora Mariza Corrêa, do Departamento de Antropologia do IFCH.
Para a professora Heloisa Pontes, também do Departamento de Antropologia, o livro de Mariza "foi uma obra que inovou quando a pesquisadora realizou um estudo consistente e rigoroso, analiticamente desafiante, tendo como objeto apenas os crimes de morte ocorridos em discussões, que após os anos 70 passaram a ser relegados como crimes menores".
A investigação de Mariza contribuiu também para que o movimento feminista brasileiro, nos anos 80, viesse à baila e desse visibilidade aos casos considerados como "problema de casal", que precisavam ser denunciados e não seguir à risca aquela velha e conhecida frase "em briga de marido e mulher não se deve meter a colher";
A professora Adriana Piscitelli explica que o livro de Mariza revela uma perspectiva pioneira no Brasil, quando centra sua análise nos processos judiciais resultantes de homicídios entre casais ocorridos nas décadas de 50 e 60 em que homens matavam a sua companheira. Para elaborar a sua tese - em que se transformou no livro - a autora analisou os argumentos utilizados nos julgamentos e descobriu que no decorrer da audiência os argumentos se deslocavam do réu, que alegava defesa de honra, para a vítima sobre a qual recaia quase toda a culpa.
"O livro abriu um campo de pesquisa para a reflexão contra a violência da mulher, e contribuiu para a articulação de movimentos sociais em torno da questão", explica Adriana. Por outro lado, Heloísa Pontes lembra que, se a princípio, a dissertação de Mariza Corrêa defendida em 1975 gerou dúvidas sobre a sua eficácia, se tornaria uma bandeira cinco anos mais tarde, quando foi criado o SOS Mulher no dia 10 de outubro de 1980.
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A dor que sai no jornal
O movimento Nacional de Direitos Humanos pesquisou todos os homicídios contra crianças e adolescentes noticiados por jornais de 14 Estados do país, de janeiro a dezembro de 1997, e conclui que 34,4% dos homicídios infantis foram cometidos por parentes (pais, avós, tios e irmãos) e 4,6% vizinhos e amigos. O autor do crime não é conhecido em 55,3% dos casos, e 44,3% dos crimes investigados ocorreram na própria casa das crianças. Essas informações constam do artigo da professora Guita em co-autoria com a professora Maria Filomena Gregori, As Delegacias Especiais de Polícia e o projeto Gênero e Cidadania, com base em reportagem do jornal Folha de S. Paulo.
O artigo revela que no Estado do Rio de Janeiro a proporção é ainda mais elevada. Os Boletins de Ocorrência feitos em 1991 mostram que 67% dos homicídios praticados contra crianças (de zero a onze anos) foram perpetrados pela própria família. E mais: em 1995, os conflitos interpessoais representaram cerca de 56% dos crimes que tiveram seus motivos claramente identificados. Verificou-se que dos homicídios dolosos ocorridos no período, só 7,8% foram esclarecidos; desses, 64% envolviam crimes passionais. Dados recentes do Departamento de Homicídios da Polícia Paulista indicam que, há cerca de três anos, na cidade de São Paulo, 429 mulheres foram vítimas de homicídios - no mesmo período 5.460 homens foram assassinados. O homicídio, nesse caso, aparece entre as 10 principais causas de morte de mulheres e o crime passional é o principal motivo pelo qual elas são mortas na cidade de São Paulo.
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