Pesquisa aponta erros e desvios do financiamento da
agricultura familiar
Dos
R$ 4 bilhões liberados por ano, somente a metade
chega aos agricultores
LUIZ
SUGIMOTO
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O
agrônomo Gilson Bittencourt: decompondo
números que eram públicos, mas ignorados
por autoridades da área de agricultura |
Em tese, o Programa Nacional de
Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) criado
em 1995, no início do governo Fernando Henrique,
deveria corrigir um erro histórico do Brasil,
que poucos incentivos ofereceu aos agricultores familiares
, embora estes formem mais de 80% das propriedades
rurais. A agricultura familiar representa mais de
4 milhões de estabelecimentos (ou famílias)
que produzem sobretudo itens destinados à cesta
básica como arroz, feijão, milho, mandioca,
leite e aves.
Entretanto, uma tese defendida na
Unicamp demonstra que esta iniciativa inédita
e originariamente nobre pode ir para a vala dos programas
agrícolas cujos recursos se esvaíram
no caminho até a população necessitada,
como água que nunca chega ao sertão.
Abrindo a Caixa Preta: O financiamento da agricultura
familiar no Brasil é a dissertação
de mestrado do agrônomo Gilson Alceu Bittencourt,
apresentada em agosto no Instituto de Economia (IE),
sob orientação do professor Antônio
Márcio Buainain. E já está dando
o que falar.
Entre as questões levantadas,
as que se sobressaem são: em números
redondos, por que o governo disponibiliza R$ 4 bilhões
por ano ao Pronaf, mas somente R$ 2 bilhões
são tomados pelos agricultores familiares?;
por que os custos da intermediação bancária,
especialmente dos bancos públicos federais,
são tão elevados?. Representantes do
Tribunal de Contas da União, por exemplo, já
solicitaram ao pesquisador sua análise sobre
o tema.
O
envolvimento de Gilson Bittencourt com a terra vai
bem além da agronomia. Com 36 anos de idade,
ele traz na bagagem uma experiência de dez anos
assessorando movimentos sociais rurais no Sul do país,
tendo participado de várias negociações
com o governo. De abril de 2001 a setembro de 2002,
geriu os recursos do próprio Pronaf, enquanto
secretário de Agricultura Familiar do Ministério
do Desenvolvimento Agrário. Tendo conhecido
os dois lados da moeda, o especialista volta nesta
quarta-feira a Brasília, agora para assumir
postos de intermediação, na Secretaria
Executiva para a Área Rural do Ministério
da Fazenda e no Conselho do Banco Popular do Brasil,
um braço do Banco do Brasil voltado ao microcrédito.
O convite foi anterior à dissertação,
mas vou trabalhar justamente na área de financiamento
da agricultura familiar, mantendo relações
com os bancos e o próprio governo para repensar
toda essa lógica, explica Bittencourt.
Dos R$ 4 bilhões anuais destinados
ao crédito para agricultura familiar anunciados
nos últimos anos, apenas 50% têm sido
efetivamente aplicados. Entre os motivos apontados
por Gilson Bittencourt, destacam-se a existência
de poucos agentes financeiros que atuam com agricultores
mais pobres, escassez de recursos para cobrir os custos
dos financiamentos, a falta de garantias reais entre
os agricultores familiares e o anúncio de recursos
acima dos efetivamente disponíveis pelos três
Fundos Constitucionais de Financiamento.
Dados públicos
Os dados necessários para qualquer uma destas
análises, inclusive em relação
aos elevados custos de intermediação
são públicos. Eles estão
na Internet e no Diário Oficial. Tratei apenas
de sistematizar as informações, aplicando
as fórmulas para vincular os valores disponibilizados
pelo governo e depois chegar aos gastos. Creio que
ninguém, além do próprio Tesouro
Nacional, tinha feito estas contas antes, afirma
o pesquisador.
Bittencourt começou analisando
o crédito sob dois aspectos. Primeiramente,
a relação entre governo e agricultores,
que se dá por meio dos bancos. Ele explica
que, como o Pronaf utiliza recursos públicos
na quase totalidade de suas fontes (Fundo de Amparo
ao Trabalhador - FAT, Orçamento Geral da União
e de Fundos Constitucionais de Financiamento Regional),
o dinheiro é necessariamente administrado por
instituições financeiras federais. O
Banco do Brasil assume a gerência de perto de
74% das verbas. É praticamente um monopólio,
observa. O segundo aspecto é que o Pronaf vem
firmando em torno 900 mil contratos por ano (atendendo
cerca de 750 mil famílias), quando existem
4,2 milhões de famílias de pequenos
agricultores. Nem todos querem crédito,
mas o atendimento ainda é muito menor do que
a demanda, ressalva.
Aplicadas as fórmulas, Bittencourt
exibe os resultados. Todo dinheiro tem um custo e
para dar sua parte o FAT que responde por mais
de 70% dos recursos do Pronaf cobra uma taxa
de juros que está em 12% ao ano (TJLP). Os
agricultores, porém, recebem o empréstimo
a juros de 4%. Quem banca a diferença de 8%
é o governo. Além disso, em algumas
linhas de financiamento destinados às famílias
mais pobres, era concedido um desconto (subsídio)
de R$ 200, caso pagassem as prestações
em dia. O governo precisa pagar também este
rebate, soma Bittencourt.
Caixa preta Mas é
um terceiro aspecto analisado pelo pesquisador que
abre a caixa preta: o ganho dos bancos para intermediar
os recursos, denominado spread, que chega a 17% no
caso dos segmentos mais pobres. Um ganho aviltante,
considerando-se que o risco é mínimo:
o índice de inadimplência no Pronaf é
de menos de 1%, reafirmando a máxima de que
pobre paga suas dívidas; o dinheiro
captado é público; o governo garante
a diferença dos juros e o rebate; a clientela
é antiga e de confiança; e a média
anual é de 900 mil contratos, que apesar dos
valores pequenos garantem uma escala que atinge cifras
compensadoras.
O que se questiona é
o spread tão alto apenas para pegar o dinheiro
do governo e emprestá-lo a um agricultor que
sabidamente cumpre com seus compromissos. Feitas as
contas, para conceder um financiamento de R$ 1.200,
o governo gasta mais R$ 473, somando a diferença
da taxa de juros, o subsídio e um spread de
17% ao banco, exemplifica Bittencourt.
No crédito de investimento
(para construção de um estábulo,
compra de uma ordenhadeira), é maior o prazo
de pagamento, variando de 3 a 8 anos, e menor o spread
cobrado pelo banco, entre 4% e 6,6% ao ano. No entanto,
o prejuízo do governo aumenta: Um agricultor
que toma R$ 3.200 por 6 anos, terá um desconto
de R$ 700 se pagar em dia. Somando o spread de 6,6%
que vai se somando ano a ano, o Tesouro gastará
no período mais R$ 2.100, ou 66% do valor que
financiou, exemplifica o agrônomo.
Soma geral Sendo grave
o quadro envolvendo os pobres que demandam apenas
créditos de custeio (sementes, adubos, preparo
do solo), Bittencourt, ao analisar o crédito
rural no Brasil como um todo, constatou que a equação
se repete para os médios e grandes produtores.
No setor patronal, para emprestar R$ 42 mil, o governo
gasta quase R$ 4 mil só para pagar o agente
financeiro. O fato é que o Tesouro, ao pagar
os bancos por operações destinadas aos
grandes produtores, acaba subsidiando também
o empréstimo do setor patronal, observa.
Feita a soma geral, o pesquisador apresenta os totais
arredondados: O governo gasta com equalização,
somente no Pronaf, em torno de R$ 600 milhões
por ano. Adicionando a equalização dos
patronais, que chega a R$ 400 milhões, temos
R$ 1 bilhão. Subtraindo os juros das fontes
como o FAT e o desconto concedido para parte dos produtores,
os bancos ficam com mais de 60% do total, conclui.
Dentro do governo para combater as
distorções
Gilson Bittencourt chega
ao Ministério da Fazenda trazendo
sua dissertação de mestrado
com cerca de 20 propostas para embasar
a discussão sobre uma revisão
profunda do sistema de financiamento da
agricultura familiar no Brasil. Em linhas
gerais, ele vai propor a mudança
na gestão das fontes dos recursos
oficiais para o crédito rural,
a ampliação do número
de instituições financeiras
atuantes, alterações nas
condições de crédito,
além de apresentar mecanismos para
ampliar o acesso de agricultores.
As propostas são
muito detalhadas. Para ficar apenas na
questão dos agentes financeiros,
Bittencourt defende a redução
do spread para níveis razoáveis,
de 3% a 6% ao ano, dependendo do público
atingido e da modalidade de crédito
ofertada. Sugere ainda o aumento do número
de instituições e a realização
de leilões públicos dos
recursos e dos subsídios. Hoje
são os bancos que definem a região
ou município onde empregar o dinheiro
e com qual público irão
operar. No leilão, o governo poderá
determinar limites de taxa, públicos
e regiões a serem contemplados,
e quanto será cobrado do beneficiado,
simplifica.
Um exemplo de distorção
é a grande concentração
do crédito rural no Centro-Sul.
Em termos percentuais, o Nordeste
recebe menos crédito quando comparado
com a participação de sua
produção agropecuária
no total do Brasil. Em número de
famílias, o Nordeste abriga 50%
delas, produz 15% do valor da produção
nacional e recebe apenas 6% do crédito
rural. Equilibrar este quadro é
uma decisão política,
afirma. Para disseminar o atendimento,
Bittencourt propõe maior diversidade
de agentes financeiros, como as cooperativas
de crédito e agências locais
de crédito.
Gilson Bittencourt espera
que aA divulgação dos dados
da dissertação promova uma
cobrança dentro do próprio
governo e uma pressão sobre os
bancos. Creio que a maior contribuição
deste trabalho é levar as informações
a público, pois nem os ministérios
afins, como da Agricultura e do Desenvolvimento
Agrário, participavam da gerência
dos recursos destinados ao meio rural.
Eles eram apenas informados sobre o valor
da conta que seria debitada em seus orçamentos,
finaliza.
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