A hora de cada um
Ramo
da biologia estuda ritmo dos relógios internos
que comandam as funções do corpo humano
MANUEL
ALVES FILHO
O
jogador Romário, do Fluminense, costuma chegar
aos treinamentos muito depois dos seus companheiros
de clube. O atleta, que tem dificuldade para acordar
cedo, alega render muito mais física e intelectualmente
no período da tarde. Mera idiossincrasia do
craque? Segundo a Cronobiologia, ramo da Biologia
que estuda a organização temporal da
matéria viva, a justificativa do atacante não
só pode ser verdadeira, como encontra amparo
na ciência. O ser humano possui relógios
internos que comandam as funções do
corpo. Algumas pessoas, por exemplo, são do
cronotipo matutino típico (aproximadamente
10% da população). Estas têm maior
disposição e desempenham melhor suas
atividades pela manhã. Outras, como pode ser
o caso de Romário, são do cronotipo
vespertino típico (outros 10%), ou seja, têm
uma performance superior à tarde e início
da noite. Respeitar os ponteiros dos relógios
biológicos, conforme os especialistas, é
uma medida fundamental para garantir uma vida mais
saudável e produtiva, com menor desgaste.
Além dos dois cronotipos
já citados, há ainda um terceiro, formado
pelas pessoas que são indiferentes ao período
do dia. Estas representam os outros 80% da população.
De acordo com o professor Edson Delattre, do Departamento
de Fisiologia e Biofísica do Instituto de Biologia
(IB) da Unicamp, o estudo dos ritmos biológicos
é relativamente recente no Brasil cerca
de 25 anos -, mas já tem oferecido contribuições
importantes para diversas áreas. Os conhecimentos
gerados pela Cronobiologia, afirma, têm aplicações
em múltiplos setores, como o social, o econômico
e, destacadamente, o da saúde.
Ao analisar os ciclos biológicos
humanos, os cronobiologistas procuram identificar,
entre outros aspectos, qual é o horário
em que um fármaco deve ser administrado, para
que tenha maior eficácia. Delattre lembra que
o organismo sofre mudanças ao longo das 24
horas. Parâmetros biométricos (peso,
altura, espessura de dobra de pele) e funcionais (pressão
arterial, produção de hormônios,
desempenho motor ou cognitivo, metabolismo e temperatura
central, atividades renais, respiratórias e
digestivas) variam no decorrer do dia. Até
para nascer ou morrer existem horários preferenciais,
o mesmo ocorrendo para surtos de asma, acidentes vasculares
cerebrais (derrames), infartos etc. Essas mudanças
constantes fazem com que o corpo reaja de forma diferente
ao medicamento, dependendo da hora em que este é
aplicado. Há uma máxima interessante
que diz que a diferença entre o remédio
e o veneno está na dose. Para a Cronobiologia,
essa diferença, além de estar na dose,
também está no tempo, que pode ser entendido
como a hora ou até a estação
do ano, diz o docente do IB.
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O
professor Edson Delattre, do Instituto de Biologia:
Não basta ter ritmos, tem que sincronizá-los |
Para compreender melhor esse conceito,
tome-se uma experiência de laboratório
feita com camundongos. Ao contrário do homem,
esses animais têm hábitos noturnos. Os
cientistas administraram a mesma dose de veneno (toxina
de E. coli) a seis grupos de camundongos, em seis
diferentes horas do dia. Enquanto às 16 horas
morreram 85% dos animais, à meia-noite a mortalidade
foi de apenas 13%. De acordo com Delattre, experimentos
cronofarmacológicos têm servido para
aprimorar o combate a vários tipos de câncer.
Conhecendo o melhor momento para administrar as drogas
anticancerígenas, os médicos podem reduzir
as doses das mesmas, o que minimiza os seus efeitos
colaterais, otimizando o tratamento. Isso também
tem uma implicação econômica,
pois os custos caem à medida que os medicamentos
são usados em menor proporção,
esclarece.
Os conhecimentos gerados pela Cronobiologia
também podem ser aplicados no campo social.
Como já foi dito, as pessoas apresentam maior
ou menor disposição conforme o período
do dia. Imagine-se, então, uma mulher do cronotipo
matutino típico que se casa com um homem do
cronotipo vespertino típico. Pela manhã,
quando ela demonstra enorme vitalidade, ele está
sonolento, um tanto apático. No final da tarde,
quando ela está reduzindo o seu ritmo de atividade
e apresenta certo cansaço, é ele quem
está com a pilha toda. Eis uma
situação no mínimo favorável
para um conflito no relacionamento. Se essas
pessoas tiverem conhecimento prévio dos seus
ciclos biológicos, porém, elas poderão
definir estratégias que harmonizem a convivência
familiar com as características individuais,
afirma Delattre.
No campo econômico, a Cronobiologia
também encontra aplicação. O
especialista do IB reforça que o homem é
um ser tipicamente diurno. Entretanto, em razão
das exigências da vida moderna, diversas atividades
precisam ser executadas também durante a noite.
Com isso, criou-se o trabalho em turnos, o que pode
ser prejudicial a homens e mulheres. Vários
estudos demonstram que o raciocínio, os reflexos
e a acuidade visual e auditiva ficam prejudicados
durante a madrugada. A produtividade, portanto, também
é afetada de modo negativo. O recomendável,
nesse caso, é que as pessoas que trabalham
no regime de turnos alternados tenham folgas mais
prolongadas, para que não sofram tanto os efeitos
do desrespeito aos seus relógios biológicos,
pondera Delattre.
Não é por acaso, conforme
o cronobiologista, que alguns dos maiores acidentes
industriais, creditados a falhas humanas, ocorreram
de madrugada, justamente no horário em que
o organismo apresenta baixo metabolismo e menores
recursos para responder com rapidez aos estímulos.
Entre estas catástrofes estão Three
Miles Island, nos EUA; Bophal, na Índia; e
Chernobyl, na ex-União Soviética.
Para quem pensa que o respeito aos relógios
internos é algum preciosismo, Delattre lembra
que os ritmos biológicos são geneticamente
determinados. Não podem, portanto, ser alterados
na sua essência, salvo após transplante
experimental dos núcleos nervosos, executados
em animais. O que as pessoas fazem é
adaptar (deslocar) parcialmente seus ritmos às
suas necessidades profissionais e sociais.
Isso é possível, mas
tem um alto preço: favorece o surgimento de
doenças cardiovasculares, gastrintestinais,
psiquiátricas e, no limite, pode até
mesmo reduzir a expectativa de vida, afirma.
Mas é possível cumprir o caminho contrário,
isto é, adaptar as atividades cotidianas ao
nosso ciclo biológico? A resposta é
sim, embora não seja uma medida muito simples
e freqüente. Experiência nesse sentido
foi conduzida por pesquisadores da USP.
Delattre esclarece que, assim que
entra na adolescência, a garota ou o garoto
enfrenta uma enxurrada de mudanças. Uma delas
é denominada tecnicamente de atraso de
fase. Simplificando, o jovem passa a dormir
mais tarde e acordar mais tarde, conseqüentemente.
Ao acompanhar os alunos do ensino fundamental da Escola
de Aplicação da USP, como parte de sua
tese, uma pesquisadora observou que justamente quando
atingiam esse estágio da vida, os alunos eram
transferidos, paradoxalmente, do período vespertino
para o matutino. Resultado: acompanhavam as aulas
sonolentos, bocejando, espreguiçando-se, prestavam
menos atenção ao que estava sendo ensinado
e, obviamente, tinham o desempenho prejudicado. Com
base nas conclusões da pesquisa, a direção
da escola decidiu promover um remanejamento de horários,
de modo a respeitar o relógio biológico
dos estudantes, conta o professor do IB.
Estudos tiveram início no século
18
Embora seja uma ciência
relativamente recente, as primeiras observações
ligadas à Cronobiologia surgiram
no século 18, graças ao
astrônomo francês J. J. De
Mairan. Ao observar uma planta sensitiva,
provavelmente a Mimosa pudica, que mantinha
ao lado da luneta, na janela de sua casa,
ele verificou que as folhas da planta
se moviam, abrindo e fechando, de acordo
com a posição do sol. O
cientista percebeu, então, que
aquele ser vivo mantinha relação
com o ambiente geofísico. A partir
daí, ele começou a formular
algumas hipóteses e partiu para
os experimentos.
Um deles consistiu em
colocar o vaso da planta dentro de um
baú, que foi armazenado no porão.
Depois de algum tempo, De Mairan observou
que a planta mantinha o ritmo biológico
coincidindo com o ciclo dia/noite, a despeito
da ausência de luz no baú.
O astrônomo concluiu que a atividade
de abrir e fechar as folhas era inerente
à espécie e independente
do ciclo de luz. Até então,
acreditava-se que as alterações
rítmicas eram resultado exclusivo
das ações externas, como
o dia, a noite, o frio e o calor. Um amigo
botânico levou seus resultados à
Academia Real de Ciências de Paris,
em 1729, que o rejeitaram solenemente.
Os membros da entidade acreditavam que
pelo menos algum raio de luz, ou outra
pista ambiental, chegara à planta.
Naquela época, e ainda hoje,
era difícil aceitar o novo,
diz Delattre.
O professor do IB ressalva,
entretanto, que o ser humano vive em um
mundo real e não no meramente cronobiológico.
As pessoas sofrem outros tipos de
influências, além da temporal.
É claro que variação
de pressão arterial ao longo do
dia também tem a ver com estresse,
atividade física, posição
corporal no espaço etc. Para a
Cronobiologia, essas outras variáveis
são denominadas de agentes
mascaradores, explica. Delattre
acrescenta, ainda, que embora os ritmos
biológicos sejam inerentes a todas
as espécies vivas, eles são
sincronizados pela natureza. Os dias e
as estações do ano têm
grande relevância para o bom andamento
das funções orgânicas
e, por isso, precisam ser respeitados,
como sincronizadores que são. Para
os humanos, a convivência social
é o outro poderoso agente sincronizador
dos ritmos endógenos. Parodiando
aquela frase de um antigo comercial de
televisão: não basta ter
ritmos, tem que sincronizá-los,
enfatiza o cronobiologista.
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