O Jornal da Unicamp torna público, pela primeira vez, um fragmento do primeiro capítulo de Elementos formadores da sociedade portuguesa na época do descobrimento, tese defendida por Sérgio Buarque de Holanda, em 1957, na Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo, e inédita até hoje. O ensaio de Sérgio, encontrado pelo professor Edgar de Decca, pertence ao espólio confiado à Unicamp pela família do historiador falecido em 1982.
Leia trecho de tese
inédita de Sérgio Buarque
Parece natural, aliás, que em tão remotas paragens se espalhassem de qualquer
|
Primeira página da tese inédita( abaixo) de Sérgio Buarque de Holanda (acima): conexão com Raízes do Brasil |
forma alguns dos padrões e imagens familiares a colonos originários de um país onde a parcela mais ativa da população se adensava junto às praias, às angras, às bocas dos rios navegáveis, entregue à faina do comércio, e também aos mistéres da navegação, das pescarias, dos tráfegos das salinas. Mesmo quando o Reino ainda não tinha principiado a despovoar-se aos cheiros da canela indiana, quem saísse por exemplo de Salamanca, e alcançasse a fronteira pelo Douro, que era transposto em simples balsas, iria deparar, sobre uma desolada paisagem, com uma gente rala e miserável, vivendo em furnas, quase à maneira de trogloditas.
Foi precisamente o que sucedeu em 1446 aos companheiros de Leão de Rozmital, cavaleiro da Boêmia, que chegaram a atravessar o país sem achar mantimento para os homens e as bestas de transporte e carga. A razão estava nisto, que ninguém cogitara em mandar fazer ali estradas, de modo que acontecia passarem-se quatro e cinco anos consecutivos sem que se visse em toda a região um único viandante. A fome, a sede, as agruras da rude jornada, só cessariam para os homens de Leão quando chegaram finalmente a Braga, cidade considerável onde os esperava a melhor acolhida de parte do bispo local (16).
Enquanto a maior extensão do Reino, além da orla marítima, jaz estéril, mofina e inóspita, Lisboa faz-se, ao contrário, de todos admirar, pela pujança de sua atividade, a abastança de seu comércio, o concurso de inúmeros forasteiros de todas as origens, que lhe dão uma fisionomia cosmopolita, verdadeiramente ímpar na Europa. Ainda em fins do século XVI passaria por uma das três maiores cidades do continente, ao lado de Constantinopla e Paris (17). Eminência conservada mesmo na primeira metade dos Seiscentos, era de abatimento nacional, que os sucessos da Restauração não chegam sequer a dissimular (18).
O país vive, a bem dizer, do exterior e para o exterior. Toda a sua gente, ou a maior parte dela, segundo lembra Filippo Sassetti, em carta de 1578 a Baccio Valori, sustenta-se de gêneros levados por via marítima, que a terra em si é maninha e remissa. Por isso "aqui barcos em profusão infinda, saídos da Dinamarca, do Báltico, da Holanda e de Flandres inteira, de Inglaterra e toda a costa da Bretanha e França, trazendo de tudo, mesmo ovos e galinhas, sem falar nas somas em dinheiro, e levando de volta especiarias" (19).
Outra carta sua, datada do ano seguinte e endereçada a Francesco Bonciani, de Florença, diz mais: "A bondade do porto a tudo daria remédio se fôra natural, e não o é, a esterilidade do país, pois vêm desde os mares gélidos as vitualhas que os sustentam, desde os portos de além da Polônia, através de muitas centenas e milhares de léguas, como sejam os centeios e outros grãos, trigos, queijos, manteigas, peixes salgados, carnes salgadas; e de Flandres e Bretanha, ovos, galinhas, galos e cações, e logo se vendem uns depois dos outros. De que serve, pois, querer forçar a todo custo a própria terra? Por que tamanha lida, se as coisas hão de chegar a seu tempo ao porto do mais belo rio da Europa inteira, no seu entender?" (20).
Dispor assim em abundância de produtos aparecidos e procurados pelos estrangeiros, como são as especiarias do Oriente, o ouro da Mina, o marfim, os escravos, as madeiras, as madeiras tintoriais, mais tarde o açúcar, o tabaco, os diamantes, o café, para, em troca, receber os gêneros mais necessários ao sustento diário: não é essa, em suma, a idéia que terão constantemente em mente os portugueses ao longo de sua expansão ultramarina? No Brasil especialmente é o desenvolvimento de produções altamente cobiçadas do estrangeiro, produções para exportar, e que representará desde o início e não deixa de representar até hoje a meta de nossa existência econômica. "Se vamos à essência de nossa formação", escreve um autor recente, "veremos que na realidade nos constituímos para fornecer açúcar, tabaco, alguns outros gêneros; mais tarde ouro e diamantes; depois, algodão e, em seguida café, para o comércio europeu. Nada mais que isto. E com tal objetivo, objetivo exterior, voltado para fora do país e sem atenção a consideração que não fossem aquele comércio que se organizarão a sociedade e a economia brasileiras" (21).
Ora, e essa mesma espécie de extroversão econômica e social o que já encontramos entre os portugueses da Europa no limiar dos grandes descobrimentos. E assim como naquelas terras remotas irão eles reproduzir quase naturalmente e sem mudança alguns traços distintivos da vida da metrópole, ali também, em sua pequena pátria européia, cria-se como uma breve epítone dos mundos explorados pelos seus homens.