A Unicamp vai aos quilombos do Ribeira. Para ensinar
e aprender
Universidade
desenvolve, ao lado de outras instituições,
dois projetos em cinco
comunidades rurais às margens do Ribeira
ÁLVARO
KASSAB
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Crianças na igreja da comunidade de André
Lopes |
Desenformado com zelo, o cuscuz
feito com arroz macerado e amendoim torrado foi colocado
sobre a mesa da cozinha da escola municipal do bairro
rural de André Lopes, no município paulista
de Eldorado. A poucos metros dali, numa sala de aula
improvisada como dormitório, uma mensagem de
boas-vindas escrita a giz rasgava assimétrica
toda a extensão da lousa. Em comum, nos dois
ambientes, havia mais que desenhos na parede e a caligrafia
esmerada em cartazes a revelar a faixa etária
dos alunos havia a alegria em receber o povo
do Unicamp que chegara na madrugada alta de
27 de setembro, um sábado. (À noite,
um forró pé-de-serra completaria o programa
de recepção).
Tão logo o dia amanheceu
sob uma névoa que cobria os morros, grupos
de crianças atravessaram a estrada Eldorado-Iporanga
para chegar à escola onde estavam hospedados
os visitantes. A algazarra às vezes abafava
o canto sortido da passarinhada e o som dos cursos
dágua que desembocam no rio Ribeira,
situado a menos de meio quilômetro dali, e pouca
coisa mais caudaloso do que de costume por conta da
chuva da noite anterior. A excitação
dava a medida do que representa hoje, para os moradores
de cinco comunidades remanescentes de quilombos do
Vale do Ribeira, os dois projetos desenvolvidos pela
Unicamp na região. São elas, as crianças,
uma das pontas que compõem o arco de ações
que abrangem desde projetos de gestão agroindustrial,
passam por cursos de capacitação de
lideranças e se estendem até atividades
de resgate cultural.
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Mensagem de boas-vindas na sala de aula da escola
de André Lopes, onde pernoitou a equipe
da Unicamp |
As comunidades quilombolas de Ivaporunduva,
Sapatu, André Lopes, São Pedro e Galvão
têm, na mesma proporção, uma história
rica em tradições seculares e em desmandos
perpetrados por alheios. Sua população,
composta de descendentes de escravos que chegaram
no Ribeira no século 18 para garimpar ouro,
vive da agricultura familiar. Nesse universo, a presença
da Unicamp é vista com carinho pelos moradores,
normalmente escaldados com promessas que logo caem
no vazio.
O professor Celso Lopes, da Faculdade
de Engenharia de Alimentos (FEA), sabe o quanto é
frágil a linha que separa o terreno das boas
intenções de uma intervenção
que coloque tudo a perder. Um dilema, explica, enfrentado
por todo agente que pretenda atuar em comunidades
tradicionais, fechadas ou isoladas. Em que medida
é possível conseguir essa inserção
sem transformar valores secularmente arraigados?,
indaga. Embora seja prematuro afirmar, a resposta
pode estar nos dois projetos coordenados por Lopes.
As iniciativas foram tão bem-recebidas que
ganha força a possibilidade de a Unicamp passar
a fazer um trabalho permanente na região. A
presença da Universidade abre margem para projetos
análogos, abre outras perspectivas.
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Crianças em André Lopes: brincadeiras
resgatadas |
Não se trata de uma previsão
diletante. Lopes, um especialista em sistemas integrados
de produção, sabe bem onde pisa. Sua
tese de doutorado, finalizada em 1999, fundamentou-se
no seu envolvimento com uma comunidade florestal composta
por extratores de palmito na reserva ecológica
Juréia Itatins. Lá, coordenou a implantação
de um sistema produtivo sustentável que levasse
em conta critérios ecológicos, sociais
e econômicos. Durante dois anos foram acompanhados
os índices de manejo de rendimento de palmito
nativo.
Esse cartel foi imprescindível
para que Lopes assumisse a coordenação
de um dos projetos da Unicamp no Ribeira, em fase
de implantação em Ivaporunduva. O bairro
abriga cerca de 80 famílias e foi o ponto de
partida da maioria dos ancestrais dos moradores dos
demais quilombos da região. O projeto consiste
na implantação de uma agroindústria
para o processamento da banana, base da economia local,
e o envolvimento da comunidade em todas as etapas
da cadeia produtiva.
Trata-se de uma parceria entre a
Unicamp, através do Núcleo de Estudos
e Pesquisas em Alimentação (Nepa), Instituto
Socioambiental (ISA) e Associação Quilombo
de Ivaporunduva. A Universidade entra com sete pesquisadores
(veja quadro) e mais o aporte de R$ 80 mil do CNPq,
que em julho de 2001, logo depois de iniciado o projeto,
lançou um edital para a viabilização
de um programa de agricultura familiar que buscasse
métodos de gestão de qualidade de produção
certificada para pequenos agricultores.
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Bruna Vasconcelos e Flávio Boni, alunos
da Unicamp, durante trabalho com crianças
no Sapatu |
O pesquisador faz um corte rápido
e volta no tempo. Revela que se mostrou cético
quanto à viabilidade do projeto ao ser procurado
pela primeira vez pelos membros do ISA, cuja proposta
restringia-se à implantação da
fábrica. Lopes não acreditava em soluções
vindas de cima para baixo, saídas do gabinete.
Mudou de idéia depois do comprometimento dos
parceiros em envolver os moradores no programa. O
edital do CNPq dissipou as dúvidas. Descortinei
aí a possibilidade de avançar na linha
de pesquisa, revela Lopes, que em seguida engajou
outros colegas da Unicamp no projeto.
Em miúdos - O objetivo
da equipe, conforme consta no documento formulado
pelos pesquisadores, é aplicar e avaliar,
com a comunidade, metodologia para concepção,
formulação, projeto e avaliação
de sistemas para produção agroindustrial,
constituído por práticas, métodos
e instrumentos de gestão da qualidade e da
produção apropriados a comunidades de
pequenos produtores da agricultura familiar, visando
à geração de renda, ao aumento
da qualidade de vida, à preservação
e conservação ambiental e à obtenção
de produtos com certificação social
e orgânica. Simultaneamente, serão desenvolvidas
as competências necessárias para os produtores
e elaborados os estudos e os projetos executivos para
que os mesmos implantem uma agroindústria para
banana e outras frutas.
O professor troca em miúdos.
É a população definindo
como as coisas devem ser. Diria que trabalhamos como
se fôssemos uma incubadora in sito. Lopes
não é dado a arroubos, mas não
vacila em afirmar que desconhece, no país,
um projeto dessa envergadura que tenha como sustentação
tal abordagem e no qual a interação
entre o proponente e a comunidade funcione como pré-requisito.
Este relacionamento, frisa Lopes, leva em conta as
peculiaridades, os valores subjetivos e a tradição
oral da comunidade, o que não significa que
o rigor científico seja deixado de lado.
Depois de algum tempo parado por falta de recursos,
o projeto foi retomado graças a uma contrapartida
financeira obtida na Pró-Reitoria de Extensão
e Assuntos Comunitários (Preac) e no ISA. A
parte estrutural do prédio já está
finalizada, e os equipamentos, avaliados em R$ 45
mil, estão sendo comprados. A previsão
é de que a fábrica esteja totalmente
instalada entre final de novembro e começo
de dezembro.
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Ponte em Ivaporunduva: natureza exuberante e agricultura
de subsistência |
A planta de processamento vai permitir
a confecção de qualquer produto derivado
da banana, entre eles a banana passa, a banana frita
(tipo chips), a bala de banana (com e sem açúcar)
e o doce de banana mole, o produto mais tradicional
das comunidades remanescentes de quilombos e ainda
feito em tacho, embalado em palha de milho e conservado
em jiraus prateleiras de bambus dispostas em
cima do fogão a lenha.
A forma de conservação
está diretamente ligada ao cotidiano das comunidades.
Às vezes, o doce é conservado por seis,
sete meses. Esse produto, se colocado numa prateleira
de supermercado, não dura mais do que cinco
dias; a lógica da cadeia de produção
e consumo é outra. É isso que estamos
trabalhando, diagnostica Lopes. Os pesquisadores
da Unicamp vão acompanhar todo as etapas do
projeto, até que os moradores assumam de vez
seu próprio negócio.
Lopes observa que os programas da
Unicamp vêm se caracterizando pelo respeito
à diversidade, por uma atuação
mais crítica e pela prática sistemática
de romper de vez com o caráter paternalista
que ainda predomina nas ações sociais
que envolvem comunidades. A nossa relação
é de parceria. Aquilo que é dado e não
conquistado, não é valorizado.
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Wilon Mazalla Neto fala a jovens quilombolas em
André Lopes |
A máxima aplica-se ao projeto
Fortalecimento de Associações
de Remanescentes de Quilombos do Vale do Ribeira,
fruto de parceria firmada entre a Unicamp, através
da Pró-Reitoria de Extensão e Assuntos
Comunitários (Preac), e o Universidade Solidária
(Unisol), com apoio do CNPq.
Celso Lopes, que também coordena
este projeto iniciado em junho, entende ser necessário
fazer o devido recorte para mostrar a independência
das duas ações a desenvolvida
em Ivaporunduva e a do Programa Quilombos, que inclui
este bairro e outros quatro, todos banhados pelo Ribeira.
O Unisol é uma ONG, cujo objetivo é
colocar o universitário em contato com uma
realidade diferente, ampliar seu horizonte e comprometê-lo
socialmente como futuro profissional, explica.
Porém, continua o professor, o projeto tem
características próprias, sendo formulado
integralmente na e pela Unicamp, com a participação
das lideranças comunitárias locais.
Os coordenadores propuseram
que juntássemos as cinco comunidades com o
objetivo de integrá-las e capacitá-las,
para que no futuro gerissem projetos. Decidimos então
construir este projeto em campo. O programa,
que se estende até o final de novembro, envolve
11 alunos da Unicamp e a professora Miriam Dupas Hubinger,
da Faculdade de Engenharia de Alimentos (FEA), que
divide a coordenação com Lopes. Os
líderes das comunidades encaminharam duas vertentes
de trabalho. Uma que prevê uma oficina de elaboração
de projetos. A outra é uma oficina para encontrar
meios de aumentar a participação dos
jovens no resgate cultural, conta o pesquisador.
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O aposentado Aristides Furquim: vivendo do artesanato |
Na oficina de elaboração
de projetos, telefonia foi o tema escolhido. No último
dia 27, foi fechada a configuração do
elenco de necessidades para área. Já
a oficina de resgate cultural desencadeou a proposta
da realização de encontros entre as
cinco comunidades, nos quais fosse realizada uma série
de atividades que despertassem a reflexão e
conduzissem ao aprofundamento do tema. Saímos
do senso comum e partimos para a intencionalidade
de identificação de análises
de dados para fazer um diagnóstico mais preciso,
afirma Lopes.
Foram organizadas, neste âmbito,
atividades de resgate das tradições
locais nas áreas do folclore, da culinária,
das danças típicas, dos brinquedos,
das lendas e das práticas de cura, com a catalogação
por exemplo de ervas encontradas na mata. Todo esse
material está sendo documentado em fotos e
vídeos que serão exibidos numa exposição
prevista para o evento final do projeto.
No quilombo O agricultor
José Rodrigues, líder comunitário
de Ivaporunduva, considera fundamentais as ações
da Unicamp nas comunidades remanescentes de quilombo
principalmente ao ensinar aquilo que o povo
não sabe. No caso da planta industrial
de processamento da banana, o agricultor entende que
a iniciativa agrega valor ao produto, disparado a
maior fonte de renda da população local.
Todo mundo aqui tem seu bananalzinho.
Não é exagero. Calcula-se que estejam
plantados, nos 2,7 mil hectares do quilombo, cerca
de 400 mil pés.
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José Rodrigues, da Associação
Quilombo de Ivaporunduva: resistência |
Os moradores vendem em média
600 caixas de 20 quilos por semana. O lucro é
rateado entre as 80 famílias, em sistema que
tem bases cooperativistas. Um caminhão com
capacidade de carregar 8 toneladas adquirido pela
comunidade faz a distribuição do produto
na Ceasa, em São Paulo. A gente vende
duas carradinhas por semana, coisa de
R$ 3 mil. Feitas as contas, vê-se que
o dinheiro dá para o gasto.
A produção é
controlada. Vinte e sete agricultores acabam de obter
o certificado do Instituto Biodinâmico de Botucatu
(IB), que atesta a origem orgânica da banana.
De acordo com o instituto, os produtores atenderam
integralmente às normas e ao padrões
de produção agrícola exigidos
para a certificação. Aqui
não entra veneno, avisa José Rodrigues,
cujos planos incluem a confecção de
doce à base de banana orgânica.
O respeito à natureza é
atávico em Ivaporunduva. Só se chega
ao lugarejo de balsa ou numa canoa que atravessa num
vaivém incessante os aproximadamente 100 metros
que separam as duas margens do Ribeira. Nossos
antigos nos ensinaram a preservar,
relata Rodrigues. A mata nativa permanece praticamente
intacta, a agricultura é de subsistência
e a pesca, feita em canoas cavadas em
madeiras caídas, obedece à
ritualística secular. Rodrigues sabe que a
organização é a única
forma de resistir às incursões predatórias.
Está na história.
De acordo com dados do ISA, Ivaporunduva
integra uma região que concentra o maior
número de comunidades remanescentes do Estado
de São Paulo. Este quadro, ainda segundo
o ISA, é decorrente, sobretudo, da mineração
do ouro que predominou na região em meados
do século 18. Segundo levantamentos do instituto,
com a abolição da escravatura, os escravos
permaneceram na área como lavradores.
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Marcelo Mazolla fala aos líderes comunitários:
telefonia em questão |
Rodrigues fia-se na tradição
oral para narrar a história do lugar. Conta
que uma fazendeira conhecida como Maria Joana ficou
doente e voltou para Portugal, deixando para trás
os escravos. Parte deles permaneceu em Ivaporunduva
e a outra embrenhou-se pelos fundões,
espalhando-se depois por outras comunidades. O quilombo
abriga duas relíquias arquitetônicas
da época. Uma igreja construída no século
18, a de Nossa Senhora do Rosário, e um cemitério
cercado por um muro de taipa e encravado no meio da
mata.
A área a que se refere o
estudo do ISA é parte de um ecossistema riquíssimo,
Patrimônio Natural da Humanidade desde 1999.
De acordo com documento formulado pelos pesquisadores
da Unicamp, o Vale do Ribeira concentra a maior área
contínua de Mata Atlântica do país.
Abriga 2,1 milhões de hectares de florestas,
150 mil de restingas e 17 mil de manguezais, o mais
conservado banco genético das regiões
Nordeste, Sudeste e Sul e a mais importante reserva
de água doce dos estados de São Paulo
e do Paraná. Em contrapartida, os indicadores
sociais colocam a região como a mais pobre
do Estado.
O Ribeira, único rio vivo
paulista, vem sendo ameaçado com freqüência
nos últimos anos. O Ibama indeferiu, no último
dia 25, o pedido de licenciamento ambiental feito
pela Companhia Brasileira de Alumínio (CBA),
do Grupo Votorantim, para o funcionamento da Usina
Hidrelétrica Tijuco Alto.
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Vista de Ivaporunduva, comunidade às margens
do Ribeira, onde a Unicamp desenvolve projeto
de gestão agroindustrial |
Segundo Rodrigues, que integra o
MOAB (Movimento dos Ameaçados por Barragens),
a construção de uma barragem no Ribeira
causaria prejuízos irreparáveis ao meio
ambiente e à população ribeirinha.
Num boqueirão como o nosso, a água
cobriria de morro a morro e devastaria nossa agricultura,
toda ela desenvolvida às margens de afluentes
do Ribeira. Dados do ISA corroboram a tese.
Estudos preliminares indicam que a Hidrelétrica
de Tijuco Alto inundaria uma área de 11 mil
hectares composta de maciços de matas nativas,
cavernas, além de alterar significativamente
o regime hídrico, o que afetaria todo o complexo
estuarino do Lagamar.
As barragens são apenas um
capítulo da saga fundiária protagonizada
pelos quilombolas. Em poucos minutos de conversa,
José Rodrigues enfileira outros exemplos. O
problema foi em parte minimizado com a concessão
do título definitivo de terra em algumas comunidades,
incluída aí a de Ivaporunduva. Nem todos,
porém, tiveram a mesma sorte.
O aposentado Aristides Furquim,
por exemplo, morador do bairro de André Lopes,
não sabe se vai viver o suficiente para ter
direito à terra que um dia foi de seus tataravós.
Furquim mora numa casa de pau-a-pique a não
mais que um quilômetro da Caverna do Diabo.
Sobrevive do artesanato feito à base de palha
de banana, outra fonte de renda na região.
Para variar, faz também cestos
de frutas e bodoques, arma rudimentar de seus ancestrais.
É outro quilombola que vê na Unicamp
uma parceira. Não por acaso, sua mulher, dona
Santina, foi vista ensaiando uns passos de fandango
numa oficina de resgate cultural no bairro do Sapatu.