Ética e estética do desejo
Psicanalista,
que vai participar de encontro no IEL, fala da relação
entre a psicanálise e a universidade
|
O psicanalista Contardo Calligaris: Uma
mudança de perspectiva é o mínimo
que se pode esperar de um diálogo psicanalítico |
A organização da subjetividade
contemporânea em sua relação com
o desejo e o discurso social tem sido tema de discussão
em diversas áreas, entre elas a lingüística,
a psicanálise, a comunicação
e a filosofia . Nos dias 22, 23 e 24 de outubro acontecerá,
no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp,
a IV Jornada Corpolinguagem, que terá como
tema A Est-Ética do Desejo. O Grupo de Pesquisa
SEMA-SOMa, vinculado ao IEL e formado por estudantes
e pesquisadores que estudam as articulações
entre e corpo e a linguagem, tem promovido, desde
2000, encontros anuais com o objetivo de incentivar
reflexões sobre o tema. O encontro deste ano
busca promover uma discussão sobre a ética
e a estética do desejo em sua relação
com a organização da sociedade e da
subjetividade atuais. Para abrir a jornada foi convidado
o psicanalista Contardo Calligaris, autor de diversos
artigos e livros publicados no Brasil.
Na entrevista que segue, concedida
aos integrantes do SEMA-SOMa, Calligaris discute a
relação entre a psicanálise e
a universidade e fala da confusão entre critérios
éticos e critérios estéticos
na sociedade ocidental moderna. Na jornada, diversos
pesquisadores debaterão o tema, agrupados em
mesas temáticas variadas. Para maiores informações,
acessar o site www.unicamp.br/iel/semasoma.
As inscrições são gratuitas e
devem ser efetivadas com antecedência.
Como você pensa a
relação da psicanálise com a
universidade?
Calligaris Um primeiro ponto óbvio é
que a universidade não forma psicanalistas,
mas isso não quer dizer que não seja
possível ensinar psicanálise. É
possível ensinar psicanálise, porque
existe um corpo teórico do qual é possível
falar, falar não só de teoria psicanalítica,
mas de clínica psicanalítica. A única
coisa é que esse ensino não é
suficiente para formar psicanalistas, e de fato não
forma nem tem a pretensão de formar. Além
disso, não há muito o que dizer sobre
a relação entre a psicanálise
e a universidade, a não ser que, a partir dos
anos 60, os institutos de psicanálise ficaram
um pouco preocupados porque acharam que eles podiam
perder a sua relevância social. Se eu posso
aprender psicanálise na Universidade Estadual
de Campinas porque entraria numa sociedade de psicanálise?
A primeira razão é que na Universidade
Estadual de Campinas, ou em qualquer universidade
federal, estadual ou privada, eu não posso
me formar como psicanalista, simplesmente porque eu
não posso inserir num curso universitário,
uma análise pessoal. Apesar disso as associações
e institutos psicanalíticos se preocuparam
muito com a possibilidade de perder seu lugar social
e sua exclusividade e, portanto, foi produzida uma
série de considerações - e a
teoria muitas vezes, ou quase sempre, responde às
necessidades da prática e, às vezes,
responde também às necessidades políticas
- de que haveria uma diferença radical entre
isso que está no discurso universitário
e a maneira de ensinar própria aos psicanalistas
e que, portanto, mesmo os psicanalistas quando eles
ensinassem numa universidade, falariam de um jeito
completamente diferente, subjetivamente diferente.
Qual a sua opinião a esse
respeito?
Calligaris Isso é uma idealização
tanto da universidade quanto das instituições
psicanalíticas, porque se acreditaria que nas
universidades se ensina um saber ou pelo menos a retórica
de uma mestria, uma espécie de domínio
da coisa ou do objeto do qual se trataria na disciplina.
Isso é muito parcialmente verdadeiro, porque
no ensino universitário também se transmitem
incertezas, situações, problemas e questões.
E não é verdade que qualquer professor
universitário só fale a partir de seu
pleno domínio, porque se for um bom professor
universitário, sabe que só se consegue
ensinar alguma coisa que valha a pena, que valha a
pena ser escutada. Não a partir do domínio
do que está transmitindo para os alunos, mas
a partir justamente das incertezas, das perplexidades,
das questões sem resposta.
Nesse sentido, foi veiculada
uma oposição entre psicanálise
e universidade?
Calligaris As duas posições foram
cristalizadas assim: por um lado, a universidade seria
o lugar onde reina um discurso universitário,
um discurso que transmite um saber constituído
e isso não seria o ideal para a psicanálise;
e, por outro lado, nas instituições
e nas associações psicanalíticas
se transmitiria verdadeiramente o discurso, não
universitário, mas psicanalítico, um
discurso diferente, cujo ponto de partida não
seria o saber. Isso é uma idealização
absoluta porque nas instituições psicanalíticas
as pessoas que ensinam muito freqüentemente transmitem
um saber exatamente como na universidade. Durante
15 ou 20 anos se discutiu, propagou-se, alimentou-se,
foi repetida ad nauseam essa teoria que opunha a universidade
às instituições e associações
psicanalíticas ou, melhor dito, o discurso
universitário ao discurso psicanalítico,
mas também acho que ninguém acredita
mais, acho que ninguém deveria acreditar mais.
O que resta dessa história é o óbvio,
ou seja, que não se formam psicanalistas nas
universidades, o que não quer dizer que não
se possa ensinar psicanálise na universidade,
como em qualquer outro lugar.
Você é articulista
na Folha de São Paulo, publicando artigos e
formulando questões em torno do laço
social. Você pensa seus artigos como uma forma
de produzir um outro olhar sobre esses fatos sociais?
Calligaris Sim, sem dúvida. Espero que
seja o que acontece de melhor. Quando você comenta,
às vezes não se trata nem de comentar,
mas de descobrir ou de recordar um momento da sua
vida cotidiana, um momento de nossa vida social e
política para que valha a pena comentá-lo.
Em princípio é porque se espera que
você tenha uma visão um pouquinho diferente
da dos outros. Uma visão que talvez desloque
algumas evidências recebidas e que permita às
pessoas se situarem de uma maneira um pouco diferente.
Isso é o que se espera da psicanálise,
a psicanálise é uma técnica que
pratica constantemente isso. Se o psicanalista serve
para alguma coisa é porque ele nos sugere que
vale a pena falar para alguém que de vez em
quando retorna, nos devolve alguma coisa que nos permita
pensar os problemas que temos de uma maneira um pouco
diferente, que nos desloque um pouco. Uma mudança
de perspectiva é o mínimo que se pode
esperar de um diálogo psicanalítico.
A psicanálise sem dúvida muda o olhar
da gente.
Sua conferência tem como
título A Est-Ética do Desejo.
Calligaris O título contém uma
espécie de trocadilho deliberado e acho isso
muito pertinente. Um dos temas que desenvolvi num
seminário interno nos EUA era a confusão
entre critérios éticos e critérios
estéticos que orientam as nossas condutas.
Eu tentava mostrar, primeiro, que era normal e esperado
que numa sociedade organizada pelas aparências
- e digo isso num tom, se for possível, constatativo,
não necessariamente crítico - não
é nada estranho que razões estéticas
orientem os nossos comportamentos, as nossas condutas,
a ponto de ter um valor propriamente de razões
morais. Primeiro não é estranho e segundo,
às vezes os critérios estéticos
de fato podem ser excelentes critérios morais.
Existem critérios estéticos que podem
ser valores éticos. Por exemplo, linchar alguém
a pedrada não é bonito, antes disso
deveria ser errado moralmente, mas numa situação
cultural em que não é óbvio que
o critério moral tenha um valor coletivo, ele
pode ser substituído por um critério
estético, que, como todos os critérios
estéticos, sobretudo modernos, são movediços.
O critério estético é uma coisa
que faz e se desfaz o tempo inteiro, mas ele pode
ter uma função parecida com a função
que antigamente tinham os critérios éticos.
Como você pensa isso em
relação ao desejo?
Calligaris Quando você pensa o desejo
humano, tomando o desejo no sentido mais amplo como
o que motiva a nossa conduta, você pode imaginar
que nosso desejo seja orientado, por exemplo, pelos
ideais que nos foram transmitidos, isso seria um tipo
ético de orientação. Numa sociedade,
numa cultura em que o desejo é cada vez mais
orientado pela expectativa da aprovação
dos outros - que é exatamente como se define
uma sociedade narcisista, porque nós agimos
na procura do olhar dos outros - essa expectativa
pode também ter exatamente o mesmo efeito de
direção de nossa ação
que tinham os critérios ideais numa cultura
diferente.
E os efeitos disso na sociedade
e na subjetividade individual?
Calligaris A organização narcisista
da personalidade, ou seja, o fato de que a subjetividade
contemporânea é fortemente dirigida pelo
olhar do outros, isso não é uma coisa
sobre a qual nós tenhamos a possibilidade de
ter uma posição ideológica, porque
isso é a realidade subjetiva da sociedade ocidental
moderna, não sei se temos o que escolher. Sempre
tem como ser do contra, mas não sei se quando
tecemos elogios dos ideais não estamos simplesmente
adotando uma posição nostálgica.
Um dos defeitos da consciência crítica
ocidental que nasceu no século XIX é
a idéia de pensar que a posição
mais atraente é a posição negativa.
Em geral, a psicanálise, a partir da experiência
clínica, tem uma atitude um pouquinho diferente:
a questão do psicanalista em relação
ao paciente é o que é possível
fazer que valha a pena, que seja interessante, que
não seja uma vida chata a partir das cartas
que um paciente tem nas mãos, que alguém
tem nas mãos, as cartas que lhe foram dadas?.
Pensar sempre em jogar o baralho fora, ou então
parar a mão e redistribuir as cartas, é
uma posição que pode se tornar bastante
estéril até porque, nem sempre, na verdade
quase nunca, a gente tem o poder de redistribuir as
cartas. O que a gente pode fazer é jogar a
melhor partida possível com as cartas que recebeu.
Se a subjetividade contemporânea é uma
subjetividade narcisista, muito bem, a partir disso
como se organiza um mundo possível em que seja
interessante viver? Isso me parece muito mais ao nosso
alcance e de fato mais interessante do que uma posição
negativa. Por isso me interessa pensar quais são
os critérios de conduta, qual é a ética
possível a partir desses critérios estéticos.