Fotógrafos que clicam e teclam
Profissionais
(ou não) começam a associar imagens,
textos e design para fazer do livro seu novo meio
de expressão
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Beatriz Lefèvre, fotógrafa e editora:
livro de fotografia torna-se um novo meio de expressão |
Alguns anos
atrás, a bibliotecária Julia van Haaften
descobriu que a Biblioteca Pública de Nova
York possuía vários livros com originais
fotográficos, especialmente do século
19, dispersos pelas estantes sem que houvesse a preocupação
de classificá-los sob a categoria fotografia.
Ela reuniu o material depois de paciente pesquisa
e organizou uma exposição, fazendo com
que livros de Maxime Ducamp ou Francis Frith passassem
a valer pequena fortuna. Em São Paulo, no ano
2000, Beatriz Lefèvre viu, debaixo do balcão
de um sebo na Rua Teodoro Sampaio, um livro de fotografias
de Gaspar Gasparian, edição original
de 1953, autografada pelo autor. Pensou que estivesse
reservado, mas a vendedora apanhou o livro parecendo
se livrar de um incômodo e cobrou por ele meros
R$ 15,00.
Beatriz Lefèvre
conta estas passagens na introdução
de Livros de Fotografia: história, conceito,
leitura, sua dissertação de mestrado
em multimeios no Instituto de Artes (IA) da Unicamp,
sob orientação do professor Roberto
Berton de Ângelo. Pesquisa, reflexão,
reconhecimento, conceituação, exposição
e promoção são etapas do processo
de produção cultural essenciais para
que os bens culturais sejam reconhecidos. Sem elas,
a produção cultural pode ficar sob
o balcão ou perdida nas prateleiras em
meio a tantos objetos hoje produzidos com a grife
cultura, escreve.
Em sua residência
no bairro de Pinheiros, Beatriz Lefèvre afirma
que tem a vida permeada por textos, imagens e design
gráfico. Formada em economia, ganha o pão
como editora de livros, redigindo e aparando textos
da área. Um curso de especialização
permitiu, porém, que a fotógrafa até
então amadora partisse para a produção
e edição de fotografias em publicações
institucionais, além de trabalhos de documentação
fotográfica, como tem feito em cursos oferecidos
pelo Museu de Arte Moderna (MAM) a pessoas com necessidades
especiais. Também foi convidada a documentar
o Projeto Pró-Várzea, expedição
científica composta por biólogos de
várias instituições, que visa
à delimitação de áreas
de preservação ambiental na Amazônia.
O tema
da dissertação surgiu quando eu procurava
bibliografia sobre livros de fotografia e descobri
que existia quase nada. Apareceram algumas obras sobre
o tema somente no final da pesquisa, recorda.
Segundo a pesquisadora, o livro de fotografia tem
sido pouco estudado no Brasil e no exterior, tanto
pelos que se dedicam à fotografia, sua linguagem
e seus usos, quanto pelos estudiosos do livro e de
sua história. Ela encontrou apenas quatro títulos
dedicados especificamente ao livro de fotografia,
nenhum deles brasileiro.
Beatriz Lefèvre
explica que a fotografia foi descoberta justamente
quando se pesquisavam técnicas de reprodução
de imagens para os livros. A fotografia já
nasce ligada ao livro. Ela vem servindo a livros de
documentação desde meados do século
19 e ganha status de arte a partir do início
do século 20, observa. O primeiro livro
de fotografias, The pencil of Nature, foi publicado
em 1844 por Fox Talbot. O escritor e cientista inglês
foi um dos descobridores da fotografia e seu método,
que permitia a reprodução em série
de imagens fotográficas (o negativo), iniciou
uma revolução que só veio a ser
equiparada muito recentemente, com o surgimento da
câmara digital.
Além do portfólio
A pesquisadora procura conceituar o livro de
fotografia a partir de três categorias: o livro
ilustrado, que já existia antes da fotografia;
o livro de arte, em especial os portfólios
do artista, que também antecedem a fotografia;
e o livro do artista, que se firma a partir dos anos
1960 como uma nova modalidade de produção
artística. Acho necessário expandir
o conceito do livro de fotografia, que segundo a noção
corrente se resume ao portfólio do autor. Trata-se
de uma definição muito restrita para
o universo de publicações que ocupam
cada vez mais espaço nas prateleiras das livrarias,
afirma.
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Crianças em Terra, de Sebastião
Salgado |
Na opinião de Beatriz Lefèvre,
hoje os fotógrafos usam cada vez mais o livro
como meio de expressão. Encontram no livro
maior liberdade que em suas áreas de atuação
profissional, onde se sujeitam à pauta, ao
estilo e ao crivo do editor de determinada publicação.
Fotógrafos estão usando o livro
como um meio de arte. Além de expor seus trabalhos
fotográficos, eles fazem do próprio
livro uma obra, observa a editora.
Um dos exemplos deste novo conceito,
analisado na dissertação, é o
livro Silent Book (Cosac & Naify), de Miguel Rio
Branco. Espanhol radicado no Brasil, Rio Branco é
considerado o fotógrafo da cor e utiliza sua
técnica para tornar mais nítidos os
contornos das imagens da pobreza, prostituição
e marginalidade estilo comparado ao do pintor
italiano Caravaggio, que elegeu gente das ruas para
o ocupar o lugar de santos em suas telas. Silent
Book não é apenas um livro que dá
suporte à imagem fotográfica, tanto
que Rio Branco ganha o crédito não apenas
pelas fotos, mas pela concepção editorial.
Ele usa páginas duplas e dobras para associar
imagens. Não vemos uma frase, uma legenda sequer.
É o discurso da imagem, ilustra Beatriz
Lefèvre.
Diálogo inteligente
Mais dois livros são abordados na dissertação:
Terra, de Sebastião Salgado, e Impressões
de um Japão Incomum, de Maureen Bisilliat.
Salgado, fotógrafo brasileiro reconhecido mundialmente,
recorre a poemas de Chico Buarque, a textos de José
Saramago e cuida ele mesmo das legendas. São
três tipos de texto que dialogam com a imagem.
Um diálogo inteligente, que juntamente com
as fotos nos faz viajar com o tema de maneira muito
rica. Lendo e vendo o livro, vemos uma história,
uma trajetória de luta no campo, e no final
uma mensagem de esperança em imagens de crianças
com forte apelo emocional, descreve a editora.
Em 55 imagens captadas em apenas
duas semanas, a fotógrafa inglesa radicada
no Brasil Maureen Bisilliat retrata um Japão
arcaico, agrário e milenar, surpreendente para
os estrangeiros impressionados com os emblemas da
contemporaneidade espalhados pelo país. Ela
escolheu o formato horizontal para o livro e textos
de Lafcadio Heam, escritor grego que adotou o Japão
como pátria aos 41 anos de idade. Cem
anos separam o texto das imagens. Mas o que me chamou
a atenção foi o projeto gráfico,
pródigo em inovações, com a apresentação
na orelha do livro, imagens emolduradas ou sangradas,
cores diferentes em páginas e letras, tudo
conduzindo a relação entre textos e
imagens. Há uma unidade muito forte a cada
virada de página, afirma a pesquisadora.
Bons improvisos Para
não se restringir à dissertação,
Beatriz Lefèvre busca na estante mais dois
livros. Rua dos Inventos (Editora Francisco Alves),
é uma pesquisa da fotógrafa Gabriela
de Gusmão Pereira sobre inventos de rua. Ela
associa fotografias, desenhos e textos de diversos
tipos, dentre eles poemas e declarações
dos próprios inventores de rua, compondo uma
narrativa superinteres-sante, ressalta a editora.
Nesta linha, a atriz Regina Casé
produziu o livro Já (DBA), reunindo imagens
à exaustão tiradas de uma Polaroid e
selecionadas entre um acervo de mais de 3 mil fotos
pessoais. Não são fotos de qualidade,
mas tipo álbum de família: da atriz,
dos parentes e de amigos, tiradas em casa, em viagens
e no trabalho. A própria Regina Casé
se encarregou das legendas, muito rápidas,
e acabou nos oferecendo uma autobiografia em imagens.
A fotografia não precisa ser uma obra de arte
para que o livro, bem editado, se torne um poderoso
instrumento de comunicação, insiste
Beatriz Lefèvre.