Do anfiteatro sobre o Tejo
EDGAR
DEDECCA
Há
duas semanas o historiador Edgar Salvadori de Decca,
do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
(IFCH) da Unicamp, embarcou para Lisboa na condição
de primeiro professor ocupante da Cátedra Brasil-Portugal
em Ciências Sociais, que recém se instalou
no contexto de um convênio de cooperação
entre a Unicamp e o Instituto Superior de Ciências
do Trabalho e da Empresa (ISCTE). Antes de seu embarque,
o Jornal da Unicamp fez um desafio a De Decca: registrar
seu cotidiano em um diário de talhe clássico,
um exercício de reflexão e observação
do intelectual brasileiro em terras lusas. De Decca
aceitou, viajou e, nem bem desfez as malas, já
enviou seu primeiro texto. Que terá seqüência
nas próximas edições.
|
A
Torre de Belém, em Lisboa, construída
entre 1515 e 1521 |
A cidade é assim conhecida,
pelas sete colinas. Lisboa mais se parece com um anfiteatro
sobre o Tejo. Talvez, para nós brasileiros
o espetáculo se completa no jogo insinuante
da história, ao relembrarmos a partida dos
portugueses rumo ao Atlântico. Deste anfiteatro
da história, me descubro na memória
de um outro, já há tanto tempo por aqui.
A sensação de estarmos em um anfiteatro
presenciando a reapresentação do passado
junto à Torre de Belém é ao mesmo
tempo inquietante e nostálgica.
Li, meses atrás, um autor português que
viveu a maior parte de sua vida no exílio e
que nos fala deste lugar de memória que é
Portugal. Aqui, ao que parece, o tempo se recusa a
passar. Terra da memória, Portugal, segundo
Eduardo Lourenço, é também o
território da saudade. Nem da nostalgia, nem
da melancolia. Ela, a saudade, habita o mesmo espaço,
mas não se confunde com aquelas outras modalidades
de sentimento com relação ao tempo.
A saudade, este sentimento de amor excessivo que se
apossa de todo o tempo do passado, sem permitir esgotá-lo,
parece assumir uma dimensão onírica,
de sonho. Ainda voltaremos a este tema em outra ocasião,
mas é esta saudade, que se senta ao nosso lado,
diante deste anfiteatro da história, que é
a cidade de Lisboa.
Diante dos relatos de viagem dos
negociantes venezianos que vieram espionar Lisboa,
a partir dos idos de 1492, nos perguntamos quais as
lendas contidas nestas margens do Tejo, que projetaram
os portugueses como um povo destinado a realizar uma
missão ao mesmo tempo redentora e civilizatória.
Diante desta indagação, Sergio Buarque
de Holanda iniciou a sua trajetória historiográfica,
em 1936, com o livro Raízes do Brasil, acabando
por concluir este percurso intelectual em 1957, quando
no intervalo de dois meses defendeu duas teses complementares
sobre a sociedade e a cultura portuguesas na época
dos descobrimentos. Uma delas, a ainda inédita
A Formação da Sociedade Portuguesa na
Época dos Descobrimentos, defendida na Escola
Livre de Sociologia e Política, e a outra,
defendida na Universidade de São Paulo, tornou-se,
quem sabe, a sua obra de maior densidade historiográfica,
Visão do Paraíso.
Há alguma coisa de inacabado
em sua tese de mestrado que fascina o leitor. Talvez
seja o olhar incerto e investigativo, tal como aqueles
olhares de mercadores venezianos e genoveses que pelo
estuário do Tejo navegaram. Esta tonalidade
pouco afirmativa e mais flutuante do texto de Sergio
Buarque parece indiciar aquela impertinência
do olhar estrangeiro sobre a Lisboa dos descobrimentos.
Olhares maravilhados com o seu cosmopolitismo, como
o daquele viajante jesuíta Giovanni Botero,
segundo o qual Lisbona, che pure è la
magior cittá d´Europa, accentuandone
Parigi e Constantinopoli. Acentua-se em todos
os relatos de viajantes o caráter extrovertido
de Lisboa, cidade cheia de vida, que contrasta com
a desolada paisagem do interior do país. Um
outro viajante italiano, Filippo Sasseti, por volta
de 1578, também se surpreende com a agitação
constante da cidade: aportam aqui barcos em
profusão infinita, saídos da Dinamarca,
do Báltico, da Holanda e da Flandres inteira,
de Inglaterra e toda a costa da Bretanha e França,
trazendo de tudo, mesmo ovos e galinhas, sem falar
nas somas de dinheiro, e levando de volta especiarias
,
mas também percebe o contraste de Lisboa com
os interiores do país: A bondade do porto
a tudo daria remédio se fôra natural,
e não o é, a esterilidade do país,
pois vêm dos mares gélidos as vitualhas
que o sustentam
De que serve, pois, querer forçar
a todo o custo a própria terra? Porquê
tamanha lida, se as coisas hão de chegar a
seu tempo ao porto do mais belo rio da Europa inteira,
no meu entender?.
Destas e de outras indagações se ocuparam
os viajantes estrangeiros e assim também podemos
compreender a tese inédita de Sergio Buarque
de Holanda, hoje sob guarda do Siarq (Arquivo Central)
da Unicamp. Com um elemento adicional: a viagem de
Sergio ao passado pretendeu encontrar aquele Portugal
que nos deu a nossa forma cultural e os nossos traços
psicossociais. Ao final de sua tese, o autor se indaga
sobre este Portugal enigmático e movediço
e espera descobrir, nesta atitude especular, a imagem
de nós mesmos, no momento de nossa formação,
para além dos mares atlânticos.
A procura da imagem de nós
mesmos é inevitável, quando percorremos
pela primeira vez as ruas de Lisboa. Em cada rosto
que passa pelas ruas vamos atrás de nossas
semelhanças e, hoje, mais do que em outros
tempos, nos encontramos a cada esquina.
Este tema merece uma atenção
especial, pois é muito grande a quantidade
de brasileiros que hoje se emprega no setor de serviços
da cidade. O efeito bumerangue que Portugal havia
experimentado com as suas antigas colônias africanas,
parece aplicar-se hoje aos ex-colonos brasileiros.
A situação nem sempre é confortável
e percebemos em todos os lugares a preocupação
com os negros africanos e com os brasileiros imigrantes.
Ainda voltarei a este tema numa próxima oportunidade,
por ser de grande interesse político e acadêmico.
Apenas posso antecipar o contexto social da imigração
em uma experiência vivida pessoalmente.
Depois de ser muito bem recebido
pela presidência do Instituto Superior de Ciências
do Trabalho e da Empresa (ISCTE), dando início
à Cátedra Brasil-Portugal em Ciências
Sociais, pelo convênio de cooperação
com a Unicamp, precisei tomar providências para
a abertura de uma conta bancária. Para isso,
tive que me dirigir à Loja do Cidadão
(o Poupa-Tempo português) para fazer o meu número
de contribuinte e deparei, apesar do título
que ostenta, com o mau trato aos cidadãos,
principalmente se este for imigrante. A funcionária
pública, além de me tratar com desdém,
me censurava por eu não ter me informado, junto
a outros imigrantes brasileiros, dos trâmites
burocráticos. Após quase uma hora de
desconfianças, informei-lhe que eu não
era um trabalhador imigrante, mas um professor convidado
do IXQTÊ (é assim que eles pronunciam
ISCTE). Imediatamente, tudo se modificou e a funcionária
passou a me tratar com cordialidade (olha aqui aonde
estão as raízes do Brasil, meu caro
Sergio Buarque), oferecendo-me seu telefone para que
eu me comunicasse com o Instituto.
Esta ambígua relação,
que oscila entre a hospitalidade e a hostilidade,
tem sido freqüente na minha primeira semana em
Lisboa e essas modalidades de sentimento variam na
proporção direta da inserção
social de cada um, isto é, como convidado ou
imigrante. Diante desta duplicidade de inserção
social, lembro-me da condição da cidadania
de segunda ordem, onde aquele que está em situação
inferior acaba por ouvir sempre a famosa frase: Cidadão,
mostre-me a identidade! Mas, deixo para uma outra
ocasião a abordagem deste e de outros temas
que fazem convergir os interesses do ISCTE e da Unicamp.