Acidentes de trânsito, um
problema de saúde pública
LETÍCIA
MARÍN-LEÓN
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Simulação de acidente de trânsito
promovida pela Unicamp no ano passado: jovens
pertencem ao grupo com mais vítimas fatais
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A elevada mortalidade por acidentes
de trânsito (AT) representa um problema de saúde
pública tanto no Brasil como em diversos países.
Os jovens, especialmente do sexo masculino, são
o grupo com maior envolvimento em acidentes de trânsito
fatais. Os acidentes fatais são apenas a ponta
do iceberg; devem ser considerados os acidentes com
seqüelas e os acidentes que evoluem para recuperação
total, mas apresentam longo tempo de internação
precisando, às vezes, de cirurgias. Pesa, ainda,
o afastamento das atividades acadêmicas e laborais.
As seguradoras, conhecedoras do elevado risco de AT
dos jovens, praticam tarifas superiores a veículos
dirigidos por este grupo etário.
A análise de acidentes aponta
o papel preponderante dos fatores humanos, sendo que
as condições das vias de circulação,
a visibilidade e os defeitos nos veículos contribuem
em pequena proporção na ocorrência
de acidentes.
Como o trânsito exige decisões rápidas,
torna-se necessário considerar o estilo de
conduzir, os julgamentos e a tomada de decisões,
entre elas, as de ultrapassar, mudar de pista e avançar
sinal. Nos jovens, a tomada de decisões é
marcada pela impulsividade, ousadia e confiança
excessiva em sua própria destreza. O consumo
de álcool é o fator mais associado a
AT, pois dificulta a tomada de decisões e entorpece
as habilidades psicomotoras.
Embora o Código Nacional
de Trânsito, em vigor desde 1998, constitua
um marco no controle dos acidentes, o decréscimo
observado no período imediatamente após
sua implantação não teve a mesma
intensidade nos anos subseqüentes.
Com o intuito de alertar sobre esta realidade fomos
convidados a divulgar pesquisa realizada com estudantes
da Unicamp no segundo semestre de 1996 e publicada
no presente ano nos Cadernos de Saúde Pública
(vol.19 no.2).
Com base em estudos norte-americanos
e ingleses que mostram que a tendência para
acidentes pode ser prognosticada a partir das infrações
referidas pelo próprio motorista, foi elaborado
um questionário para traçar o perfil
dos comportamentos no trânsito e o antecedente
de envolvimento em acidente enquanto motoristas. Definiu-se
acidente como qualquer impacto do veículo no
trânsito, mesmo sem ferimento de pessoas. Participaram
na pesquisa 2.116 alunos da graduação
com idade entre 18 e 25 anos, sendo 1.214 homens e
902 mulheres.
O perfil demográfico, socioeconômico
e de exposição à direção
diferiu segundo o envolvimento ou não em AT.
Destacou-se a maior freqüência de acidentes
entre os homens (75%). A maior proporção
do grupo de 20 anos e mais entre os acidentados
explicou-se pelo maior número de anos como
motorista. Os condutores com envolvimento em AT pertenciam
em maior proporção a famílias
com renda elevada e provinham, em maior proporção,
de famílias com 3 ou mais carros. Ainda, os
acidentados tinham maior acesso ao uso de carros da
família; usavam carro próprio ou da
família para deslocar-se à universidade.
É maior o risco de AT quando a exposição
ao trânsito é maior; a proporção
de condutores habituais é maior entre os com
antecedente de AT. A Associação Nacional
de Transporte Público observa que quanto maior
a renda, maior é a quantidade de Km/dia percorridos
por veículos particulares. A renda elevada
também pode favorecer a posse de veículos
mais modernos e mais velozes, estimulando a direção
em alta velocidade.
Entre os 1.638 motoristas, aqueles
com história de AT apresentavam um perfil transgressor
marcado - 60% dirigiam em velocidade máxima
igual ou superior a 130Km/h; 57% dirigiam após
beber; 50% avançavam sinal fechado; 46% tinham
sido multados; 30% referiam ultrapassagens não
permitidas; 27% usavam velocidade média igual
ou superior a 120Km/h; 21% dirigiam pelo acostamento;
8% tinham praticado suborno e 7% rachas.
Quanto à velocidade máxima,
destacou-se que 9,9% dos condutores referiram atingir
velocidade de 160km/h ou mais. Utilizando a pergunta
sobre sensações referidas ao dirigir
em alta velocidade, observou-se que a freqüência
de AT foi 12,3% para os que referiram não
dirigir em alta velocidade, e no restante das
categorias, 34,5%. A subcategoria que referiu dirigir
em alta velocidade por economia de tempo teve
50% com antecedentes de AT.
Motoristas de ambos os sexos com
história de AT apresentaram opiniões
e julgamentos que os diferenciaram significativamente
dos motoristas sem envolvimento. As opiniões
dos primeiros foram: ser contrário à
legislação de trânsito mais rigorosa
(41,6% versus 12,1%) e acreditar que motorista
bom deve ser agressivo (25,7% versus 18,2%).
Quando comparados aos motoristas
favoráveis à legislação
mais rígida, os motoristas não-favoráveis
apresentaram freqüência mais elevada de
alguns comportamentos transgressores - velocidade
média elevada (37,8% versus 29,8%); velocidade
máxima elevada (61,7% versus 46,7%); dirigir
na contramão (6,7% versus 3,1%); dirigir pelo
acostamento (17,2% versus 11,9%); participar de rachas
(8,1% versus 4%); ter sido multado (38,8% versus 26,3%)
e dirigir logo após beber (50% versus 37,2%).
Dados norte-americanos também observam que
os condutores com elevado índice de transgressões
mostram pouco interesse pelas normas.
Observou-se que os condutores que
consideraram que o bom motorista deve ser agressivo,
apresentaram um certo perfil de comportamentos de
risco no trânsito (velocidade média e
máxima elevadas, dirigem pelo acostamento,
subornam e dirigem logo após beber) e acidentam-se
mais. Esses motoristas podem corresponder ao perfil
descrito como aqueles que buscam sensações
fortes.
Fatores externos - Houve
maior proporção de acidentados entre
os que atribuem os AT a fatores externos ao
motorista (problemas de engenharia de trânsito,
excesso de veículos, pedestres) do que entre
os que atribuem os AT a fatores dependentes
do motorista (43% versus 29,2%). Ao julgar os
acidentes em geral, os estudantes tenderam a responsabilizar
mais o condutor, mas, ao avaliar as circunstâncias
que os envolveram em AT, mencionaram circunstâncias
alheias à sua responsabilidade. Esse perfil
remete-nos às teorias de adolescência
que apontam, entre outras características,
a oscilação de humor e o desejo de quebrar
normas.
Os homens referiram maior proporção
de transgressões que as mulheres, sendo a razão
entre as proporções de 4,9 para rachas;
2,5 para dirigir após beber; 2,4 para suborno;
2,3 para velocidade de 130km/h ou superior; 2,1 para
dirigir no acostamento; 1,9 para multas; 1,7 para
ultrapassagens proibidas; 1,1 para avançar
sinal fechado.
Entre os 491 estudantes com antecedentes
de AT, 65,2% referiram um acidente, 20,8% referiram
dois AT e 14%, três ou mais. Entre os 369 condutores
do sexo masculino com história de AT, observou-se
que quanto maior a freqüência de AT, maior
é o perfil transgressor.
Entre nós, há maior
desrespeito ao limite de velocidade que em universitários
de 18 a 30 anos no Reino Unido. As diferenças
dão indícios para que a comunidade e
as autoridades observem melhor a questão do
respeito à legislação. Os resultados
revelam a importância dos comportamentos de
risco no envolvimento em acidentes.
Em resposta à pergunta sobre os fatores que
contribuíram para que se envolvessem em acidentes,
foram poucos os que assumiram terem sido responsáveis
pela ocorrência de AT (distração,
referida por 22,4% dos condutores; imprudência
(5,3%); dirigir alcoolizado (3,5%); dirigir em alta
velocidade (2,9%) e desrespeito à sinalização
(1%).
Com relação ao uso
de álcool, o Centro de Controle de Doenças
nos EUA observa sua presença em 15% dos acidentes
sem lesão. Na presente pesquisa, menos de 4%
reconheceram este hábito entre as circunstâncias
que explicaram seu envolvimento em acidentes, mas
os condutores de ambos os sexos que dirigem após
beber apresentam risco 184% maior de envolvimento
em AT do que os sem esse comportamento. Esse hábito
é muito mais freqüente entre nós
do que no Reino Unido. A relativa baixa prevalência
naquele país pode ser decorrente de medidas
repressivas ou de hábitos e valores peculiares
àquela cultura. Entre nós acredita-se
que esse hábito esteja diminuindo, em decorrência
da nova legislação de trânsito
que inclui entre as infrações graves
dirigir sob o efeito do álcool, e das propagandas
antiálcool mais recentes, veiculando repercussões
sociais dos AT relacionados ao consumo de bebidas
alcoólicas. A censura social se contraporia
à disponibilidade de bebidas alcoólicas
e, dessa forma, diminuiria o hábito de dirigir
após beber.
Mesmo que, após esta pesquisa,
diversas condições tenham melhorado,
como a fiscalização eletrônica,
julgam-se necessárias intervenções
educativas entre universitários, especialmente
do sexo masculino, de classe socioeconômica
elevada e que consomem álcool, com ênfase
aos reincidentes de três ou mais AT, pelo seu
maior perfil transgressor.
Assim, especial atenção
deve ser dada à família e pela família
ao jovem, na busca de ações que apontem
formas socialmente compatíveis e mais criativas
de procurar grandes sensações,
devendo ser trabalhada a mudança de atitudes
(crenças e valores instalados), bem como a
modificação de comportamentos, paralelamente
às medidas legais punitivas que, por si só,
não modificam comportamentos nem promovem mudanças
atitudinais.