Para medir o tamanho da (in)segurança alimentar
Metodologia desenvolvida por pesquisadores
da Unicamp e de outras três instituições
deve ser usada em 2004 pelo IBGE
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Menino morador do Vida Nova, um dos bairros estudados
em Campinas |
Durante o contato que mantiveram
com as comunidades que foram alvo da pesquisa que
validou a nova metodologia, os pesquisadores da Unicamp
e das outras três instituições
envolvidas no projeto obtiveram definições
tocantes sobre conceitos e palavras-chave como fome,
segurança alimentar, alimentação
saudável, qualidade dos alimentos, entre outros.
Confira, a seguir, algumas das manifestações
dessas pessoas.
Alimentação
variada
Tem arroz, feijão, carne, farinha,
legumes e frutas
Aquela alimentação que tem tudo
que uma pessoa precisa para ser bem alimentada
Alimentação saudável
O problema é o que você pode comprar
e o que você precisa
Saudável é bem balanceada
Comida que não é muito carregada
no sal e carnes gordas
Qualidade
dos alimentos
Alimento de qualidade tem boa aparência,
é mais caro, é de marca
Tá bonito, tá saudável
Alimento suficiente
Que vai até o fim do mês
É o básico para o mês
O básico está abaixo do suficiente
Depois que paga o aluguel, a luz e a água,
sobra pouco para comprar os alimentos
Dinheiro suficiente
Dá para fazer a compra do mês e
não falta alimento no fim do mês; isso
não acontece
Quando dá pra cobrir as necessidades
Fome
Falta o alimento e não tem condição
de sobrevivência. É a pior doença;
é a pior violência que tem
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MANUEL
ALVES FILHO
"Fome
é a gente chegar em casa e não ter o
que dar
de comer para os filhos que estão chorando.
É ter que bater neles, para que durmam
e esqueçam a barriga roncando."
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A médica Ana Maria Segall Corrêa:
trabalhos desenvolvidos em Campinas, João
Pessoa, Manaus e Brasília |
Dedefinição,
em rima menos pobre do que a realidade de milhões
de brasileiros, é de uma mulher nordestina.
A frase foi coletada por uma equipe de pesquisadores
da Unicamp, que acaba de concluir, em conjunto com
três outras instituições, um projeto
que validou uma metodologia inédita no Brasil
para promover o acompanhamento e a avaliação
das condições de segurança e
insegurança alimentar no âmbito familiar
em área urbana. O instrumento, constituído
de um questionário, estará à
disposição das secretarias de saúde
dos estados e municípios e deverá ser
usado em 2004 pelo Instituto Brasileiro de Geografia
e Estatística (IBGE), na
Pesquisa Nacional
por Amostra de Domicílio (PNAD). A sua inclusão
na PNAD possibilitará o conhecimento mais preciso
sobre o acesso da população brasileira
aos alimentos tanto em termos quantitativos quanto
qualitativos. Esta condição é
necessária para garantir a manutenção
da saúde e do bem estar dos brasileiros, conforme
preconiza a Declaração dos Direitos
Universais da Pessoa Humana, documento elaborado há
55 anos.
Um breve, porém
preocupante panorama do que pode vir a ser apurado
pelo IBGE, foi traçado, em Campinas, a partir
da metodologia já validada. Um inquérito
populacional aplicado junto a 847 famílias
da cidade, no último mês de agosto, mostrou
que a fome não é uma realidade comum
apenas aos moradores do semi-árido nordestino.
Dados preliminares da investigação apontam
que, em Campinas, cidade reconhecida como potência
econômica e tecnológica, um contingente
importante de pessoas tem padrão alimentar
inadequado, quer seja quantitativo ou qualitativo.
Pior ainda: entre as famílias com ganho médio
total abaixo de um salário mínimo, 26,1%
experimentaram, nos 3 meses que antecederam à
pesquisa, insegurança alimentar severa, o que
significa que seus membros (adultos e crianças),
com alguma freqüência, passaram fome neste
período. A dieta habitual dessas pessoas
é insuficiente para garantir uma vida saudável.
Pode-se dizer que não existe segurança
alimentar para famílias com esse rendimento,
afirma a coordenadora geral do trabalho, a epidemiologista
e professora do Departamento de Medicina Preventiva
e Social da Faculdade de Ciências Médicas
(FCM) da Unicamp, Ana Maria Segall Corrêa. Segundo
ela, a pesquisa apontou que, em Campinas, somente
as famílias com renda superior a quatro mínimos
não passam por algum nível de insegurança
alimentar.
Além
de relacionar a segurança e a insegurança
alimentar com o nível de renda familiar, a
nova metodologia também investiga os padrões
de consumo de alimentos. Assim, em Campinas, o inquérito
identificou que a qualidade da alimentação
da maioria da população é inadequada.
Mesmo entre as pessoas que vivem em condição
de segurança alimentar, 26,5% não consomem
frutas diariamente, índice que salta para 93%
quando se trata de campineiros em situação
de insegurança alimentar grave. Ainda segundo
o levantamento, derivados do leite não fazem
parte da dieta das famílias com renda inferior
a um salário mínimo. Destas, 89% também
não consomem carne diariamente.
De acordo com
a médica Ana Maria, a análise pormenorizada
desses dados mostrará como ocorre a distribuição
da carência alimentar nas diferentes regiões
da cidade, o que fornecerá aos gestores públicos
informações preciosas acerca dos grupos
populacionais de maior risco. Trata-se, portanto,
de um valioso instrumento para orientar futuras políticas
públicas de enfrentamento da fome. De antemão,
no entanto, já é possível tirar
pelo menos uma conclusão a partir das constatações
feitas em Campinas. Os dados revelam que se
o governo e a sociedade quiserem de fato combater
o problema da insegurança alimentar no Brasil,
será necessário desenvolver programas
consistentes de geração de renda para
as famílias atingidas por essa situação.
As ações emergenciais são importantes,
mas não serão capazes de assegurar,
sozinhas, a sustentabilidade de um amplo resgate social,
afirma Ana Maria.
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Representantes de comunidade visitada pelos pesquisadores,
em João Pessoa |
A metodologia
De acordo com a epidemiologista da Unicamp,
todo o trabalho, que culminou com a validação
da nova metodologia e com a posterior aplicação
do inquérito populacional em Campinas, nasceu
da necessidade de criar um instrumento de coleta de
informação capaz de promover o acompanhamento
e a avaliação da política de
erradicação da fome adotada pelo governo
brasileiro. O projeto, sob a coordenação
da equipe da Unicamp, reuniu pesquisadores do Instituto
Nacional de Pesquisa da Amazônia, da Universidade
Federal da Paraíba e da Universidade de Brasília.
Contou, ainda, com a participação de
Rafael Pérez Escamilla, do Departamento de
Nutrição da University of Connecticut,
dos Estados Unidos, que atuou como professor visitante
da Unicamp, graças a uma bolsa concedida pela
Fapesp.
A idéia
inicial, que mais tarde mostrou-se acertada, foi validar
um questionário desenvolvido pela United States
Department of Agriculture (USDA), criado justamente
para medir situações de segurança
e insegurança alimentar. A metodologia já
havia sido testada e validada em países da
África e Ásia. O que nós
fizemos foi encontrar a melhor maneira de adaptar
esse instrumento à realidade brasileira,
explica a médica Ana Maria. Essa adequação
seguiu duas etapas, uma qualitativa e outra quantitativa.
Os trabalhos foram desenvolvidos em quatro cidades:
Campinas, João Pessoa, Manaus e Brasília,
selecionadas para representar contextos econômicos,
sociais e culturais diferentes.
Essas atividades
foram precedidas de três seminários promovidos
na sede da Organização Pan-Americana
de Saúde (OPS), em Brasília, organismo
que custeou o projeto juntamente com o Ministério
da Saúde. Participaram das discussões
representantes dos órgãos financiadores,
bem como dos ministérios de Promoção
e Assistência Social, de Ciência e Tecnologia
e Especial de Segurança Alimentar. A fase qualitativa
de validação foi composta por quatro
painéis de especialistas, seguidos de encontros
de grupos focais com representantes das comunidades
das cidades tomadas para estudo. Nessa fase,
nós fizemos uma revisão geral do instrumento
da USDA. Discutimos estratégias de aplicação
e analisamos a adequação dos indicadores
sociais, demográficos e de consumo alimentar.
Além disso, avaliamos cada uma das perguntas,
modificando a linguagem e as opções
de resposta. Nossa maior preocupação
era que a população entendesse os conceitos
e as palavras-chave, esclarece a epidemiologista
da Unicamp.
Ao final da primeira
etapa, ficou definido que o questionário conteria
15 perguntas. No segundo estágio, envolvendo
a validação quantitativa, os especialistas
optaram por lançar mão de amostras intencionais
de domicílios, selecionados para representar
quatro estratos sociais diferentes (classe média,
média baixa, pobre e muito pobre). As entrevistas
foram feitas por nutricionistas, estudantes de nutrição,
de enfermagem, de engenharia agrícola e de
engenharia de alimentos devidamente treinados e supervisionados.
Ao final dos trabalhos, os pesquisadores concluíram
que o instrumento mostrou-se eficaz para medir o grau
de segurança e insegurança alimentar,
pois reúne características importantes
que vão desde a fácil compreensão
das perguntas por parte da população
até a alta validade na apuração
da situação alimentar das famílias.
Conforme a epidemiologista
da Unicamp, a expectativa das equipes que desenvolveram
todo o trabalho é de que o novo instrumento
seja utilizado também para investigar a situação
de segurança alimentar nos âmbitos municipal
e estadual. Como era o nosso propósito
original, conseguimos validar uma ferramenta que serve
não apenas para diagnosticar situações
relacionadas à fome, mas também para
fundamentar a avaliação dos resultados
das políticas públicas nessa área,
afirma Ana Maria. Segundo ela, os resultados alcançados
foram tão significativos que a OPS e o Ministério
da Saúde já deram o sinal verde para
que o mesmo trabalho seja feito junto à população
rural. O trabalho terá início no dia
31 de outubro, com um seminário marcado para
Campinas.