Nobel: muitos acertos, poucas surpresas
CLAYTON
LEVY
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O professor Fernando Costa, pró-reitor
de Pesquisa: parceiro de Peter Agre em dois artigos |
Nenhuma grande surpresa. A lista
dos laureados com o prêmio Nobel deste ano mostra
que a Academia Real de Ciências Sueca mais uma
vez acertou na mosca. A análise é de
professores e pesquisadores da Unicamp, que comentaram
a escolha dos nomes, divulgados no início de
outubro. Entre os premiados, dois já trabalharam
em parceria com professores da Unicamp: o britânico
Anthony Leggett, um dos três ganhadores do Nobel
de Física, assina cinco importantes trabalhos
no terreno da física quântica com o professor
do Amir Caldeira, do Instituto de Física, enquanto
o médico americano Peter Agre, laureado com
o Nobel de Química ao lado de seu compatriota
Roderick Mackinnon, produziu dois artigos com o pró-reitor
de Pesquisa, Fernando Ferreira Costa, sobre alterações
genéticas relacionadas à esferocitose
hereditária, uma anemia hemolítica congênita.
Os mais jovens entre os vencedores
deste ano, Agre, de 54 anos, e Mackinnon, de 47, ajudaram
a desvendar o sistema que controla a entrada e saída
de água e de íons (átomos com
carga) das células de todos os seres vivos.
Agre, da Universidade Johns Hopkins, usou glóbulos
vermelhos para identificar a aquaporina, proteína
que controla o fluxo de água para dentro e
fora das células, enquanto Mackinnon, da Universidade
Rockefeller, usou a cristolografia de raios X para
revelar a estrutura dos canais de íons de potássio.
Os canais de água e de íons decifrados
pela dupla são responsáveis pela manutenção
de mecanismos básicos do organismo humano,
como os impulsos nervosos, constância dos batimentos
cardíacos e a reabsorção de água
pelos rins.
O desvendamento desses sistemas
é muito importante porque mecanismos de transporte
de água são essenciais para todos os
seres vivos, disse o pró-reitor de pesquisa,
Fernando Ferreira Costa. São estruturas
fundamentais em vários tecidos humanos e anormalidades
nesses genes estão relacionados a varias doenças
, completa.
Costa assina com Agre dois importantes
artigos científicos: Linkage of dominant hereditary
spherocytosis to the gene for the erythrocyte membrane-skeleton
protein ankyrin, publicado em 1990 no prestigioso
The New England Journal of Medicine, e Molecular genetics
of the human beta-spectrin gene, divulgado em 1988
no Transactions of the Association of American Physicians.
Os dois trabalhos, produzidos quando Costa fazia pós-doutorado
nos EUA, não estão diretamente ligados
à pesquisa que daria o Nobel a Agre. Entretanto,
seria a partir dela que o americano viria a descobrir
por acidente as aquaporinas.
Na época, pesquisávamos
o gene responsável pela alteração
da forma das hemácias (glóbulos vermelhos
do sangue) nos casos de esferocitose hereditária,
conta Fernando Costa. Segundo ele, Agre, que tem formação
em hematologia, adotou uma estratégia peculiar
para obter as amostras. Ele promovia piqueniques
com uma família de portadores da doença
e aproveitava os passeios para colher sangue,
recorda. Através desse trabalho descobrimos,
pela primeira vez, que a doença é causada
por alterações no gene de uma proteína
da membrana da hemácia, chamada anquirina.
Dessa descoberta, resultaram os
dois artigos publicados por Fernando Costa com Agre.
Partindo do mesmo estudo, o americano, posteriormente,
foi mais além e passou a investigar um dos
antígenos das proteínas que fica na
membrana da hemácia, chamado fator RH. Acidentalmente,
ele descobriu uma outra proteína, a aquaporina,
o que mudou totalmente o foco de sua pesquisa,
explica o pró-reitor. Para Fernando Costa,
o caso de Agre ilustra bem como a pesquisa científica
ocorre.
A descoberta da aquaporina
foi casual, mas só ocorreu devido o espírito
investigativo e preparado do cientista, diz.
O caso de Agre também confirma, segundo o pró-reitor,
a importância da pesquisa básica. Ele
estava fazendo pesquisa com a utilização
de metodologia habitual no mundo todo, inclusive no
Brasil, mas como tinha boa formação
científica, foi capaz de avaliar a importância
de um achado fortuito que o levou ao Nobel,
observa. Na opinião de Fernando Costa, isso
mostra que as descobertas importantes podem ser feitas
a partir de pesquisas relativamente simples. É
por isso que não se pode imaginar restringir
financiamento somente às pesquisas que visam
aplicação prática imediata,
destaca.
Essa mesma opinião é
compartilhada por Amir Caldeira, professor titular
do Instituto de Física da Unicamp. Não
se pode fazer pesquisa pensando apenas em colocar
produtos nas prateleiras, diz. Por essa razão,
a entrega do Nobel de Física ao britânico
Anthony Leggett, na opinião de Caldeira, também
não foi surpresa. Ele realmente merece,
diz. Leggett, que orientou o doutorado de Caldeira
na Inglaterra, dividiu o Nobel de Física com
os russos Vitaly Ginsburg e Alexei Abrikosov.
Trabalhando separadamente, Abrikosov
e Ginsburg desenvolveram abordagens fenomenológicas
para a teoria dos supercondutores, enquanto Leggett
explicou como os átomos interagem e se ordenam
em superfluidos. Materiais supercondutores são
aqueles que, abaixo de determinada temperatura, não
apresentam resistência e permitem que a corrente
elétrica passe sem dissipação.
A superfluidez é quase a mesma coisa,
só que aplicada a fluidos, diz Caldeira.
Caldeira, que fez o doutorado sob
orientação de Leggett na Inglaterra,
também assina cinco importantes trabalhos em
parceria com o britânico: Influence of damping
on quantum interference an exactly soluble
model (PHYSICAL REVIEW A; Path integral approach to
quantum Brownian-motion (PHYSICA; Quantum tunneling
in a dissipative system (ANNALS OF PHYSICS); Probabilities
for quantum tunneling through a barrier with linear
passive dissipation comment (PHYSICAL REVIEW
LETTERS) e Influence of dissipation on quantum tunneling
im macroscopic systems (PHYSICAL REVIEW LETTERS).
Medicina Enquanto
na Química e na Física os destaques
ficaram por conta da pesquisa básica, na Medicina
o Nobel foi para uma técnica de diagnóstico.
Os laureados deste ano são o químico
americano Paul Lauterbur e o físico britânico
Peter Mansfield, pelo desenvolvimento dos exames de
ressonância magnética (MRI). Mais de
60 mil MRIs são feitos anualmente nos 22 mil
equipamentos disponíveis em todo o mundo. O
dispositivo pode fornecer um mapeamento detalhado
de todos os órgãos com uma grande vantagem:
é indolor e não-invasivo.
A premiação
é justa, mas chega atrasada, diz Renato
Sabbatini, diretor associado do Núcleo de Informática
Biomédica da Unicamp e editor científico
das revistas Informática Médica e Intermédic.
Ele lembra que as descobertas fundamentais para a
ressonância magnética foram feitas no
final da década de 60. Em sua opinião,
embora Lauterbur e Mansfield mereçam o prêmio,
a academia sueca teria cometido uma injustiça
ao deixar de fora o médico americano Raymonds
Damandian. Os dois (Lauterbur e Masfield) fizeram
a parte básica, mas foi Damandian quem desenvolveu
a primeira máquina que funcionasse e a lançou
no mercado, destaca.
A escolha do americano Robert Engle
e do galês Clive Cranger para o Nobel de Economia
também não surpreendeu. A dupla elaborou
métodos de análises de séries
temporais econômicas com volatilidade estacional,
conhecidas pela sigla ARCH. Por esse método,
os dados são usados pelos economistas como
seqüências cronológicas para evidenciar
as relações e provar as hipóteses
de uma teoria econômica. Essas séries
temporais mostram o desenvolvimento do Produto Interno
Bruto, dos preços, das taxas de juros, das
cotações de ações e de
outros parâmetros.
Estes estudos representam
um grande salto na econometria, diz o professor
José Maria F.J. Silveira, do Instituto de Economia
da Unicamp, que também dirige o Núcleo
Interno de Métodos Quantitativos Aplicados
à Economia. Segundo Silveira, antes deles não
havia clareza, por exemplo, se era a produção
que causa a exportação ou a exportação
que provoca a produção. Era mais ou
menos como o dilema do ovo e da galinha, brinca.
Eles não apenas estabeleceram conceitos
importantes de causalidade, mas também formas
concretas para se trabalhar estes conceitos,
explica.
Entre os nomes laureados, o único
que soou como surpresa é o da iraniana Sharin
Ebadi, advogada muçulmana de 56 anos que desafiou
aiatolás radicais na defesa dos direitos da
mulher e da criança no Irã. Mas, para
quem conhece a situação dos povos que
vivem sob os regimes fundamentalistas e a ameaça
constante da guerra, a escolha caiu como uma luva.
É uma indicação que consegue
cutucar tanto o mundo islâmico quanto os Estados
Unidos, diz o pesquisador Paulo César
Manduca, do Núcleo de Estudos Estratégicos
da Unicamp. Trata-se de uma mulher, oriunda
de um país atingido pela guerra, e que vive
numa nação islâmica, completa.
Para Manduca, assim como as indicações
anteriores para o Nobel da Paz, esta também
tem um grande componente ideológico. No
ano passado, a indicação do ex-presidente
Jimmy Carter foi justamente um contraponto à
política do atual presidente dos Estados Unidos,
George W. Bush, observa. No caso da Iraniana,
Manduca diz que, apesar de pouco divulgada, Sharin
mereceu o prêmio. É incrível
como tenha conseguido sobreviver num país fundamentalista,
defendendo os direitos da mulher e protestando contra
a guerra.
Coetzee, um Rubem Fonseca nobelizado
Quando abreviou seu nome para
J. M. Coetzee, o sul-africano John Maxwell Coetzee
já exercitava aquilo que mais caracteriza
seu texto: a síntese. Mas esta seria
uma virtude neutra se não viesse acompanhada
de outras: no caso de Coetzee, a clareza, o
interesse da ação e um realismo
que está longe de subestimar a subjetividade.
Desonra, de 1999, talvez seu
romance mais importante, poderia ser confundido
com um best-seller se o leitor não deparasse,
em cada parágrafo, com uma prosa límpida
em que nenhuma palavra parece dispensável.
A ênfase é obtida pela economia.
Ele consegue realmente entrar no cerne da desgraça
de um professor universitário e, no curso
de sua viagem interior, contar o drama de um
país que ainda elabora a sua barbárie.
Se há um estilo brasileiro
que se parece com o de Coetzee (ou o contrário,
pois J. M. é quase 20 anos mais moço),
é o de Rubem Fonseca. A mesma secura,
o mesmo gosto por situações-limite,
nenhum preconceito contra o diálogo.
Mas, vamos admitir, falta a Fonseca um elemento
que torna a prosa de Coetzee mais densa, mais
robusta e mais valiosa: é a capacidade
de introduzir poesia onde ela não é
esperada. Nisto Coetzee é um mestre.
Os velhinhos da Academia Sueca desta vez acertaram.
(Eustáquio Gomes).
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