Vida sobre tela
ANTONIO
ROBERTO FAVA
|
Flávio Thadeu aos 13 anos e, acima, ao
lado de suas obras expostas na Casa do Lago: primeiro
quadro aos 6 anos de idade |
Quando se viu pela primeira vez
diante de um desenho que acabara de fazer, Flávio
Thadeu não imaginava que anos mais tarde inspiraria
um evento dentro de uma universidade: o Arte, Educação
e Filosofia: Flávio, Para além de uma
exposição, que a Unicamp realizou na
semana passada com a participação de
nomes destacados da instituição, entre
eles o filósofo Fausto Castilho, professor
emérito da Unicamp. O evento teve o propósito
de apresentar a vida e a obra do jovem pintor Flávio
Thadeu, hoje com 16 anos, morador do Recanto da Fortuna,
próximo ao Jardim São Marcos, região
quase sempre associada à violência e
à pobreza.
O evento contou com uma exposição
de 30 quadros (óleo sobre tela) de Flávio,
no Espaço Cultural Casa do Lago, no campus
da Universidade, em Barão Geraldo, e com a
participação de pesquisadores e estudiosos
da Universidade.
Tímido, sorriso fácil no rosto, brincos
na orelha esquerda, Flávio revelou que estava
até apreciando a efervescência do acontecimento,
cujo foco é a arte que desenvolve. Uma arte
que começou a ser cultivada há dez anos,
quando desenhou um quadrinho pla primeira vez, pelo
simples fato de gostar de desenhar. A obra pioneira
se perdeu no tempo.
Agora, com a ajuda do Rogério
(de Mello Basali, filósofo), é que começo
a acreditar que talvez eu tenha algum talento para
poder continuar nessa estrada e chegar a vender o
que eu fazia, diz o garoto, cuja produção
artística soma hoje mais de 100 obras. Admirador
de Monet, Picasso, Portinari, Da Vinci, Van Gogh e
Michelangelo, Flávio diz que não trabalha
todos os dias.
E há bons motivos para isso:
estuda à noite, faz o 2º ano do ensino
médio, e à tarde vai para o Direito
de Ser, em Barão Geraldo. Tenho muito
pouco tempo para me dedicar mais à pintura,
ter novas idéias e produzir obras diferentes,
explica.
Idéias O artista acredita em
inspiração. Mas quando surge a idéia,
dependendo do quadro que pretende pintar, pode levar
de dois a três dias para concluir. Se
eu pegar firme mesmo, posso terminá-lo em um
dia. Claro que há obras em que às vezes
demoro um pouco mais. Não importa o tempo,
mas sim o quadro em si. As idéias brotam das
formas mais curiosas possíveis e, às
vezes, nos momentos mais diferentes, como andando
na rua, estudando ou trabalhando, conta.
De
repente vê ou imagina uma árvore, uma
hipotética cena de uma praia, de um mar distante
(coisas que pessoalmente ainda não conhece).
Ficam na cabeça até o momento em que
vai para casa, mune-se de tubos de tinta, pincéis
e uma tela e parte para a elaboração
de mais uma obra. Flávio prefere trabalhar
ao cair da tarde e à noite.
São os momentos em
que posso ficar sozinho, pois muita gente fica transitando
em casa durante o dia, diz. Quando está
trabalhando, transporta-se para uma outra dimensão,
vai para um lugar bem longe. Às terças-feiras,
Flávio Thadeu auxilia nas oficinas do Direito
de Ser, uma ONG que dá assistência às
crianças e adolescentes, com idade entre 7
e 14 anos, da região do Jardim São Marcos.
Diz que ainda tem muito a aprender, e ensinar,
ou passar um pouco do que a gente sabe pode ser um
ótimo exercício para o nosso aprimoramento,
acentua.
Iniciou nas artes pintando paisagens
e alguns animais, como cavalos. Com o passar do tempo,
foi tomando gosto por outros temas e estilos, como
a natureza morta, sua paixão atual e para a
qual centraliza todas as suas energias. Ele acredita
que ao mesmo tempo em que está ensinando, aproveita
para aprender um pouco mais. Nas aulas, vai explicando
as técnicas e nuances básicas para se
obter determinados efeitos numa tela, o uso de equipamentos
e outros materiais. Faz questão de explicar
que medidas o artista deve tomar quando erra ao pintar
uma determinada tela: Num óleo sobre
tela é até possível corrigir,
o que já se torna impossível quando
se trata de uma obra em acrílico.
Garoto como qualquer outro de sua
idade, Flávio gosta de futebol, desenhos animados
na TV, ouve rap (tem preferência pelo grupo
Racionais cujas letras expressam o que
rola pelo mundo da periferia das cidades, do qual
eu também faço parte) ,
samba e rock. Mas quando estou pintando, prefiro
mesmo o silêncio, conclui. Aprecia as
obras de Jorge Amado. Gosta de mitologia grega, hábito
que adquiriu por meio do filósofo Rogério
Basali. Só não lê mais obras do
gênero por absoluta falta de tempo.
-----------------------------------------------
O
coração do pai
O pai de Flávio,
Adauto Gonçalves, 64 anos, metalúrgico
aposentado (antes foi fresador e operador de máquinas),
natural de Aparecida do Norte, tem mais um filho,
Jadilson, três anos mais velho. Conta que queria
que o filho artista estudasse direito, para seguir
os caminhos de uma tia que mora em São Paulo
e também de uma família humilde. Até
que Flávio chegou a pensar no caso. Mas a arte,
com a qual se identificou ainda muito cedo, falou
mais alto.
Flávio
é um bom garoto, aplicado e obediente. Em seu
coração não há um pingo
de revolta, apesar das dificuldades que a vida nos
reservou tempos atrás, conta Adauto.
Diz que graças a Deus a vida da
família melhorou bastante de dois anos pra
cá. A família deixou a favela e hoje
mora numa confortável casa de cinco cômodos,
no Recanto da Fortuna, na região do São
Marcos.
-----------------------------------------------
A mão do filósofo
Vale lembrar que há
dois anos, Flávio foi um dos entrevistados
de um programa sobre crianças superdotadas
exibido pelo Globo Repórter, da Rede
Globo de Televisão. Antes, porém,
havia sido citado em uma reportagem do jornal
Folha de São Paulo, com o título
O país desperdiça seus gênios.
Foi por essa ocasião que Rogério
Basali, na época mestrando em Filosofia
da Unicamp, começou a interessar-se pela
vida de Flávio Thadeu, então com
13 anos de idade. Fiquei tão impressionado
com a história de vida dele que decidi
procurá-lo, conta hoje. Basali
é ligado à Unicamp por meio do
Programa Comunidade Solidária, em conjunto
com o IPES (Instituto de Pesquisas Especiais
para a Sociedade) e prefeitura de Campinas.
Trata-se de um programa de políticas
públicas financiado pela Fapesp, totalmente
desenvolvido na região dos Amarais, onde
Rogério ministra aulas de Desenvolvimento
Pessoal, Ética e Comunicação.
Hoje faz licenciatura na Unicamp.
Ele diz que quando se interessou
pela história de Flávio teve antes
que passar por uma entrevista com os coordenadores
do Direito de Ser e só depois é
que pôde conversar com ele. Naquela época,
Flávio morava num barraco de favela e
dentro havia algumas telas que o artista estava
começando a pintar. Pouco tempo depois,
o garoto perdeu a mãe, doente havia algum
tempo, e Rogério começou então
a estimulá-lo a pintar com mais assiduidade.
Talvez pudesse até algum dinheiro. Procurei
ajudá-lo a adquirir material, por meio
de doações, para que de fato se
desenvolvesse, pois pude perceber que ele era
dotado de um raro talento para a pintura,
conta o filósofo.
E os encontros na casa de
Rogério passaram a ser mais freqüentes,
onde Flávio teve os primeiros contatos
com obras sobre mitologia grega e história
da arte, a partir de histórias e narrações,
quando ambos, mestre e discípulo,
refletiam sobre o que liam. O primeiro tema
que despertou interesse no jovem artista foi
a figura emblemática de Hércules,
herói conhecido pela força, assim
como pelas suas muitas e lendárias façanhas.
Descobriu depois que a mitologia grega era muito
mais que isso, a ponto de narrar trechos da
Teogonia, obra clássica do poeta Hesíodo,
que o impressionara.
Rogério lembra que
a casa onde Flávio morava não
tinha janelas. No entanto, percebeu que muitas
de suas obras lembravam exatamente janelas,
as paisagens vistas através delas. Como
um garoto que nunca foi a uma praia consegue
retratá-las com tamanha originalidade
e precisão?, pergunta o filósofo,
que acredita estar Flávio num processo
de constante aprimoramento. Como todo artista
que se preza.
|