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Lembranças de Paulo Sérgio Pinheiro sobre o Arquivo Edgard Leuenroth remontam a 1971, ainda na ditadura Médici
Histórias pitorescas do AEL,
que está completando 30 anos
LUIZ SUGIMOTO
"O passado é sempre um conjunto de lembranças, de lembranças muito precárias, porque elas não são nunca verdadeiras. Cada vez que me lembro de alguma coisa, não me lembro de verdade, eu me lembro da última vez em que me lembrei disso, eu me lembro da última lembrança”
A partir desta citação de Borges, o professor Paulo Sérgio Pinheiro, um dos fundadores do Arquivo Edgard Leuenroth (AEL), começou a contar os episódios hoje pitorescos que envolveram a compra pela Unicamp da riquíssima coleção de periódicos, panfletos, cartões postais, manuscritos, livros, folhetos e recortes de jornais do líder sindical e anarquista. Coleção que daria origem ao mais ambicioso projeto de coleta e preservação de documentos sobre a história social do trabalho de que se tem notícia no Brasil, e adquirida junto à família Leuenroth debaixo das barbas da ditadura militar. Nos dias 5 e 6 de setembro, o seminário comemorativo aos 30 anos do AEL reuniu protagonistas daqueles episódios, como os professores Marco Aurélio Garcia e Michael Hall, ao lado de ex-diretores do Arquivo e funcionários.
“Ouvi falar da provável e mítica existência do acervo de Leuenroth, pela primeira vez, num encontro internacional de história em Amsterdã, em janeiro de 1971. Foi quando André Villalobos, a quem devo ter vindo para o Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, me falou da Unicamp, do nosso saudoso mestre Michel Debrun e também que Fausto Castilho queria criar um arquivo de documentação social como contraponto ao Cepedoc da Fundação Getúlio Vargas. Foi Michael Hall quem me confirmou a existência do acervo. Na verdade, a história do AEL começa em 1971, e não devemos esquecer que era o final da ditadura Médici”, recorda Paulo Sérgio Pinheiro, hoje no Núcleo de Estudos da Violência da USP.
A resistência dos herdeiros de Edgard Leuenroth, no entanto, só foi superada depois de quatro anos, graças à intervenção do professor Azis Simão, cujas convicções anarquistas ajudaram a quebrar a desconfiança da família. “Quando Michael e eu conseguimos entrar naquele salão sombrio do Brás, de pé direito altíssimo e atopetado de jornais e fotos, era como se estivéssemos numa máquina do tempo”, descreve Pinheiro. A aquisição foi concretizada em 28 de julho de 1974, ao preço de 130 mil cruzeiros da época, sendo 50 mil da Fapesp e 80 mil da universidade. “Aquele dinheiro compraria um apartamento de quatro quartos em Higienópolis, significava algo em torno de 500 mil reais, era dinheiro”, diz o professor.
Nesse ponto, Paulo Sérgio Pinheiro afirma que o reitor Zeferino Vaz merece uma síntese biográfica no site do AEL, pois sua presença foi fundamental para que a Unicamp adquirisse um arquivo anarquista (disfarçado como de história social) debaixo das barbas dos generais. “Sem Zeferino, talvez o arquivo não existisse. A Universidade era bastante vigiada e muitas vezes dávamos aulas com visitas de agentes do SNI. Foi a convivência do reitor com os humanistas que possibilitou obter verba de uma fundação oficial”, afirma. Como exemplo desta boa convivência, Pinheiro lembra de quando trouxe o historiador Eric Hobsbawn, estrela da esquerda mundial, para um seminário na Unicamp em 1975, e de uma conversa noturna da qual participaram vários professores do IFCH: “Zeferino, sem saber que Hobsbawn era nosso camarada, disse-lhe: ‘Veja, professor, são todos comunistas. Todos comunistas, mas extremamente competentes’. Ninguém enganava Zeferino, ele sabia perfeitamente o que estava fazendo”, brinca.
Ainda em relação a verbas oficiais obtidas durante a ditadura, o professor da USP ressalta o nome de Severo Gomes, nomeado ministro da Indústria e Comércio do governo Geisel, ainda em 1974. “Ele fora aluno da Unicamp, que admirava. Mesmo diante do espanto do general, Severo aprovou, através da Secretaria de Tecnologia Industrial, um convênio com o IFCH sobre a história da industrialização em São Paulo. Os fundos do Projeto Minc serviram para manter vivo o AEL, produzindo um acervo iconográfico e documental, sem falar nos filmes do premiado Eduardo Escorel, que ficariam à deriva. Tudo financiado pelo contribuinte através do estado federal em plena ditadura”, ironiza.
Ameaças Os primeiros 12 anos do Edgard Leuenroth, porém, foram de clandestinidade, segundo Paulo Sérgio Pinheiro. “Depois da saída de Berlinck e de Zeferino, o AEL foi considerado um hóspede intruso no IFCH, sendo ameaçado de despejo quase toda semana. Dada a precariedade das instalações, o arquivo vivia sob ameaças de bombas e de incêndio. Por isso, a tarefa primeira e penosa foi microfilmar às pressas tudo o que pudéssemos. Uma cópia foi colocada em caixa-forte, na conta de Michael Hall, outra no Banespa e a terceira eu levei para o Instituto de Amsterdã”, conta o professor.
Somente a partir da gestão de Aristodemo Pinotti, o acervo passou a ser disponibilizado, expandido e consolidado. Pinheiro lamenta que tanto gasto de energia e de tempo na proteção do arquivo, mas conforta-se com a contribuição para o estudo de temas fundamentais nas ciências sociais, como a questão das migrações internacionais, formação da mão-de-obra industrial no Brasil, constituição da ideologia trabalhista e a questão do comunismo. “Se até agora foram editadas 180 teses, o AEL conseguiu imprimir uma marca na historiografia nacional. Se fosse só isto, sua existência estaria justificada".
Abrindo o leque temático
Marco Aurélio Garcia, professor do Departamento de História da Unicamp e licenciado para exercer o cargo de assessor especial de Política Externa da Presidência da República, afirma que os rumos tomados pelo Arquivo Edgard Leuenroth e o tipo de pesquisa que acabou por abrigar e suscitar, estão diretamente relacionados com o ambiente histórico que cercou sua criação. “Tendo nascido em meio ao regime militar, a principal preocupação do AEL foi com os movimentos sociais, particularmente o movimento operário e suas correntes políticas e ideológicas”, observa. Segundo o professor, os movimentos sociais que ressurgiram com vigor a partir do final dos anos 1970 despertaram ou tornaram mais visíveis temas que haviam passado despercebidos na historiografia brasileira anterior.
“O AEL contribuiu para esta renovação nos estudos de várias maneiras. Sempre achei que o limite para nosso acervo era o céu. Buscamos tudo sobre movimento operário, recolhendo documentos que muitas vezes estavam condenados à destruição pela repressão ou pela viúva que não queria mais ficar com os papéis do falecido”, recorda. Marco Aurélio Garcia nota, também, que passou a haver uma intencionalidade na busca por papéis. “Com a ajuda de um caminhão da Casa Civil do governo Montoro, trouxemos uma quantidade impressionante de documentos do Instituto de Organização Nacional do Trabalho. Anos antes, aquele material talvez fosse considerado irrelevante, mas tornou-se fundamental quando os temas sobre o trabalho e a classe operária começaram a ser valorizados”, exemplifica.
À medida que crescia a sofisticação e a complexidade dos estudos sobre os movimentos sociais, o AEL foi abrindo o leque de temas e organizando o acervo nesta direção, incentivando os pesquisadores a suscitarem trabalhos afins. “Alguns eram mais evidentes, como a questão de que a classe operária possui dois sexos e era preciso pesquisar a situação da mulher trabalhadora. No entanto, temas que tinham ocupado um lugar muito pequeno na história social, ganharam outras dimensões, como a literatura e o teatro operários, e o seu cotidiano das festas”, diz o assessor da Presidência.
Em relação aos homossexuais, por exemplo, Garcia diverte-se ao relembrar a estranheza que os pesquisadores provocavam quando começaram a freqüentar “apartamentos lúgubres” do centro de São Paulo, deles saindo com caixas de documentos sobre o movimento gay. “Lá pelas tantas, os próprios homossexuais perguntavam se, realmente, queríamos também aquelas revistas ‘barra pesada’. Óbvio que sim, pois anos depois os pesquisadores teriam que constatar qual era o imaginário dos homossexuais naquele período”, conta.
Marco Aurélio ressalta o aspecto dialético de que as fontes permitiram certa renovação da historiografia, ao passo que a historiografia, renovada, permitiu a busca de novas fontes e a revalorização de outras. “Uma coisa que sempre digo aos meus alunos: se há cerca de 60 anos, alguém nos oferecesse o acervo de um hospício e o aceitássemos, seríamos tidos como loucos. Hoje, todos nós receberemos o acervo de um hospício prazerosamente”.
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Em vias de conclusão, uma nova sede permitirá ao Arquivo Edgard Leuenroth realizar suas próprias pesquisas, extrapolando a finalidade inicial de apenas receber demandas dos pesquisadores de outras unidades ou instituições. É este o objetivo anunciado pelo professor Marcelo Ridenti, do IFCH, que assumiu recentemente a direção do Arquivo. O reitor Carlos Henrique de Brito Cruz, presente à abertura do seminário em comemoração dos 30 anos do AEL, assegurou que o prédio será entregue depois de providenciados alguns itens de infra-estrutura, agora que estão superados os problemas na primeira licitação para as obras.
“Buscamos preservar documentos que registram a memória social, política e cultural brasileira, especialmente das lutas e movimentos sociais do Brasil contemporâneo. Se já tínhamos uma ampla documentação sobre o século 20, a última gestão, do professor Sidney Chalhoub, enriqueceu também o material do século 19. Nossa equipe de 20 funcionários tem atendido entre 200 e 300 usuários por mês”, informa Marcelo Ridenti. Segundo o diretor, no AEL estão mais de 60 fundos e coleções, 30.000 livros, 70 títulos de boletins, milhares de títulos de jornais e revistas, fitas de vídeo, 300 películas cinematográficas, 1.500 gravações em cassetes, discos, 600 partituras musicais, 50.000 imagens fotográficas,12.000 cartazes, mais de 300 mapas e milhares de documentos manuscritos.
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