Pesquisadora da Fundação Getúlio Vargas avalia os legados de ex-presidente
O projeto de Vargas
revisto 50 anos depois
ÁLVARO KASSAB
Promovido pelo Instituto de Economia da Unicamp, o simpósio Vargas, 50 anos depois: História e atualidade reuniu, durante o mês de setembro, especialistas que debateram a trajetória do ex-presidente que por mais de um quarto de século foi o protagonista da cena política brasileira. Para a cientista política Maria Celina Soares D’Araújo, professora e pesquisadora do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea (CPDOC) da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e da Universidade Federal Fluminense (UFF), não foram poucas as marcas deixadas por Vargas. Em entrevista concedida ao Jornal da Unicamp, a pesquisadora avalia o legado de Vargas e diz o que restou do projeto concebido por ele para o Brasil.
Jornal da Unicamp Quais foram, na sua opinião, os legados de Getúlio Vargas?
Maria Celina D'Araújo - Do ponto de vista econômico, seu legado foi a idéia de que o Estado precisa ter um projeto de desenvolvimento. Não só deve ter um projeto, como deve liderar o desenvolvimento econômico do ponto de vista de sua direção e dos recursos. Do ponto de vista social, no primeiro momento, a incorporação dos trabalhadores rurais à organização sindical; no segundo governo, a incorporação dos trabalhadores urbanos à política. O problema é que isto é feito de uma maneira muito controladora. Passa a ser permitida uma organização sindical, se faz uma nova legislação, mas com um custo: toda a tradição sindicalista do Brasil, que era muito forte e vinha desde o século 19, é desmontada. Cria-se uma nova estrutura sindical corporativa, de sindicato único. Essa estrutura sindical enquadra, literalmente, o trabalhador e passa a controlar os sindicatos. Dentro dessa proposta, os sindicatos passam a ser figura de interesse público e não mais instrumento de luta dos trabalhadores no conflito entre o capital e trabalho acabam virando instrumentos do Estado. Essa herança sindical perdurou por muito tempo. Até hoje o sindicalismo que nós temos não quebrou muito esse padrão.
JU A senhora poderia exemplificar?
Maria Celina D'Araújo - O sindicato, por exemplo, sobrevive de imposto. Para que essa estrutura sindical varguista tivesse viabilidade, já que não era combativa, precisava ser financiada. E até hoje temos o financiamento da estrutura sindical. Do ponto de vista social mais amplo, não do ponto de vista sindical, se consolidou uma idéia de direitos, que na verdade não começam com Getúlio, mas que foi muito vinculada a ele pela propaganda do Estado Novo.
JU E do ponto de vista político?
Maria Celina D'Araújo - Acho que a principal influência foi o autoritarismo. Havia uma maneira autoritária de pensar a política, de desautorizá-la. Havia uma negação das práticas da democracia representativa, do liberalismo político. Essa é herança mais visível. São, portanto, diferentes ângulos, diferentes olhares. Não creio que haja um balanço, no geral, negativo ou positivo. É preciso ponderar, são várias as avaliações sobre cada uma dessas facetas. O que me parece grave nisso tudo é que Getúlio Vargas consolidou uma idéia, replicada pelos militares, que é aquela que preconiza que o autoritarismo é melhor do que a democracia para haver crescimento econômico. Isso foi muito ruim para o país.
JU O que restou do projeto nacional de desenvolvimento?
Maria Celina D'Araújo - Restou muita coisa, foi um projeto bem-sucedido, embora não tenha sido justo. Não produziu uma sociedade mais igual, mais equilibrada. Na verdade, produziu uma sociedade industrial muito desigual e injusta. De toda forma, o Brasil no século 20 cresceu muito. Se a gente pensar em termos de crescimento, deu certo, muito embora esse movimento já tivesse começado na década de 20. Houve um aceleramento muito grande com a política industrial de Vargas, particularmente depois da Segunda Guerra Mundial. Quer dizer, deu certo porque a segunda revolução industrial vivida pelo país se deu nos anos 30 e 40. Agora, era um modelo que se esgotou porque tinha limites. Tratava-se de um modelo datado porque dependia de empréstimos estrangeiros, de investimento público. Na medida em que veio a crise fiscal do Estado, que o país deixou de ser atraente e que os juros passaram a ficar altos, perdemos os instrumentos que tínhamos no tempo em que Vargas era o presidente. Foi um projeto que deu certo e se esgotou. Criou-se na sociedade brasileira uma certa percepção de que, sem o Estado dirigista, não há desenvolvimento.
JU - Quais foram as conseqüências disso?
Maria Celina D'Araújo - Este é um dilema, por exemplo, do governo Lula hoje: o dirigismo deve ou não voltar?
JU Alguns teóricos afirmam que os militares desmontaram a base montada por Vargas. A senhora concorda com esta tese?
Maria Celina D'Araújo - Discordo. Os militares, para citar outro exemplo, aprofundaram o modelo econômico da era Vargas, seja do ponto de vista do dirigismo ou do investimento público. A ruptura, na minha opinião, veio do ponto de vista político. Getúlio, principalmente depois do segundo governo, teve uma política mobilizadora dos sindicatos e dos trabalhadores. E isso os militares não fizeram, já que levaram adiante uma política repressora dos movimentos sociais. O que precisamos distinguir são as várias fases da era Vargas.
JU O populismo varguista floresceu à sombra de uma sociedade em transformação. Podemos dizer que este populismo fincou raízes no Estado brasileiro?
Maria Celina D'Araújo - Não gosto muito da palavra populismo, mas Getúlio criou um estilo de fazer política muito tradicionalista, com um hipertrofia do Poder Executivo, assumindo um presidencialismo imperial. Além disso, adotou um estilo de governar que ignorava as instituições liberais. Esse estilo personalista ainda está muito presente na América Latina. O que tem mudado é que não se pensa mais ser factível um presidente governar confiando apenas em sua liderança pessoal, mesmo porque esse estilo de culto à personalidade não tem mais lugar hoje. A sociedade está mais institucionalizada e a democracia mais enraizada. De toda forma, Getúlio ajudou a criar essa idéia do presidente imperial, distante da população. E essa preeminência do Poder Executivo frente aos outros poderes continua no Brasil.
JU - Vargas atrelava fortemente ao governo o sindicalismo e os órgãos criados por ele para a formulação de políticas públicas. Há alguma semelhança com o governo atual?
Maria Celina D'Araújo - O que a gente vive hoje no Brasil era impensável nos anos 40 e 50, com Getúlio. Uma das grandes denúncias que se fez contra Getúlio era exatamente a de que ele queria governar com os sindicatos. Diziam que ele queria replicar a república sindicalista. E Getúlio, no segundo governo, tentou uma aproximação muito grande com os sindicatos. Nomeou sindicalistas para a direção de institutos, entre os quais João Goulart para o Ministério do Trabalho que, depois, como sucessor de Vargas, também teve uma forte ligação com os sindicatos. Grande parte da perseguição política que João Goulart sofreu se deu porque se imaginava que ele era um aliado dos sindicatos, que eram vistos na época como centro de comunistas. Isso mostra que a sociedade brasileira dos anos 40, 50 e início dos 60 não tinha se liberalizado o suficiente para entender que o trabalhador organizado pudesse ser um ator político. Getúlio e Goulart caíram por isso. No caso de Goulart, a questão ganhou outras dimensões, inclusive porque o trabalhador rural se organizava também. A sociedade via comunistas por toda a parte, era inconcebível que os trabalhadores tivessem voz própria. O que vivemos hoje é algo extremamente positivo. Você reconhece que um líder sindical seja presidente da República, assim como que as lideranças sindicais assumam ministérios.
JU Não há hoje então, na opinião da senhora, um atrelamento dos sindicatos ao governo?
Maria Celina D'Araújo - Acho que não é bem assim. Hoje, os sindicatos por lei não são mais órgãos do Ministério do Trabalho, foi praticamente a única coisa que mudou na legislação sindical. O que a gente tem é um grande acordo entre o presidente e os dirigentes sindicais de várias colorações, no sentido de que esses dirigentes dêem um voto de confiança no governo e garantam a governabilidade. A gente observa duas coisas interessantes nesse contexto: de um lado, não há greve, não há protesto. As lideranças estão sendo desmobilizadas pelo governo no sentido de impedir as greves. Há essa negociação de facilitar as coisas para o governo, criando uma certa trégua grevista. De outro lado, há também um pacto de colocar os sindicalistas em posições importantes, quer do ponto de vista político, quer do ponto de vista do dinheiro. Há então uma série de sindicalistas em conselhos de empresas, em conselhos de estatais, todos muito bem remunerados. Com isso, vão se acomodando os interesses do setor. É diferente de Getúlio, porque havia não só uma cooptação política, mas também uma subordinação formal. Hoje, não há uma subordinação formal, mas há uma cooptação política. E essa cooptação é mais eficaz do que a feita por Getúlio no segundo governo.
JU Por quê?
Maria Celina D'Araújo - No segundo governo de Vargas, tínhamos greves expressivas. Em 1953, tivemos uma grande greve no Brasil, tanto que João Goulart depois anuncia 100% de reajuste e vai para a porta da rua. E não eram greves do setor público apenas, mas de todas as categorias, que pediam aumento do salário mínimo, concedido por Getúlio. Hoje, não temos o atrelamento, mas temos uma cooptação mais eficiente, mais articulada.
JU Outros fatores também pesam?
Maria Celina D'Araújo - Sem dúvida. Num momento de desemprego e crise econômica, o trabalhador fica muito acuado, se desmobiliza naturalmente. É a soma dos dois fatores: o medo da demissão e atuação do governo.
JU Nesse contexto, não deixa de ser irônico que muitas das conquistas da CLT e do chamado sindicalismo combativo possam deixar de existir com a reforma trabalhista?
Maria Celina D'Araújo - Vamos colocar as coisas nos seguintes termos. Há um debate na sociedade brasileira, há mais ou menos 20 anos, de que é necessário mexer em alguns pontos da legislação trabalhista. Isso implica em flexibilizar férias e em outra série de mudanças. Não acho que isso signifique tirar direitos. A CLT no imaginário popular é a corporificação dos direitos do trabalho. Mexer na CLT é maculá-la. É uma questão tabu para sindicalistas e para grande parte da sociedade. Não para Lula, que começou a carreira política dizendo que a CLT era o AI-5 dos trabalhadores. Depois, nas campanhas políticas, ele mudou. Antes, ele sustentava que a CLT impedia a negociação direta porque atrelava o sindicalismo ao Estado.
JU Não há então contradição entre os dois discursos?
Maria Celina D'Araújo - Lula foi a primeira liderança no Brasil a querer o sindicalismo de resultados. E, para isso, ele precisava se livrar da CLT, que impunha uma série de restrições. Na medida em que vai entrando na política, Lula vai mudando esse discurso. E na medida em que assume a posição de oposicionista, ele não quis ir contra o que desejava a maioria do eleitorado , que acha intocável a CLT. Agora, com todos os problemas que o governo vem enfrentando, sobretudo no campo previdenciário, e para desonerar o custo do trabalho, surgem as propostas de mudanças. Acho que só o governo pode mexer nessa caixa de marimbondos. É contraditório? Sem dúvida. Afinal é um governo do PT, o Partidos dos Trabalhadores, que vai mexer na CLT, que é tida como símbolo dos direitos do trabalhador. Mas veja bem: mexer na CLT não quer dizer mexer no direito do trabalhador. Não vejo dessa maneira. De toda a forma, o governo Fernando Henrique não conseguiu fazer nada. Na verdade, o que a gente vê é um debate. A impressão que eu tenho é que não se quer fazer uma grande mudança. Se Lula dizia que a CLT era o AI-5 dos trabalhadores, hoje a realidade é outra. O PT precisa muito da estrutura sindical. Foi em cima dela que o partido cresceu. Criar uma outra estrutura pode significar dar um tiro no pé.