Asas do desejo
MANUEL ALVES FILHO
A ilusão de migrar para um país desenvolvido e, com isso, ascender socialmente é uma das maiores motivações para o envolvimento de mulheres brasileiras com turistas estrangeiros que vêm ao país à procura de sexo. A conclusão faz parte de um estudo desenvolvido pela antropóloga Adriana Piscitelli, pesquisadora e coordenadora associada do Núcleo de Estudos de Gênero (Pagu) da Unicamp. A pesquisa, que se transformou em um livro em vias de ser concluído, concentrou-se na cidade de Fortaleza, capital do Ceará. O título provisório da obra, “Circuitos do desejo”, aponta, de maneira sintética, os interesses que movem esse tipo de relação. “Nesse jogo assimétrico, os desejos se cruzam. Enquanto esses homens querem sexo, as mulheres buscam uma oportunidade na vida” afirma a especialista.
A escolha de Fortaleza para a realização da pesquisa, que consumiu nove meses de trabalho de campo, não foi por acaso. A cidade é conhecida como um dos quatro centros do tráfico de mulheres no Brasil. Os outros três são os municípios de São Paulo, Rio de Janeiro e Goiânia. O estudo de Adriana, porém, não investigou a questão do tráfico em si. O foco do trabalho foi o turismo sexual internacional, que envolve mulheres jovens, majoritariamente na faixa dos 20 anos. Abrange, ainda, estrangeiros de diversas nacionalidades, sobretudo italianos, português, holandeses, norte-americanos e, em menor grau, ingleses, alemães e latino-americanos. Entre 1999 e 2002, a pesquisadora visitou os principais pontos de “prostituição chique” de Fortaleza, como a atividade é conhecida, e entrevistou mulheres que estabelecem relacionamentos com estrangeiros, incluindo garotas de programa e seus clientes internacionais.
Durante a investigação, a coordenadora associada do Pagu levantou aspectos interessantes sobre o envolvimento das brasileiras com os turistas estrangeiros. Como já foi mencionado, elas enxergam essa relação como uma oportunidade de migrar para um país do Primeiro Mundo. De acordo com Adriana, muitas não se entendem como prostitutas. Várias não cobram para manter relações sexuais com os turistas, mas aceitam presentes deles. Assim, colocam os homens na categoria de namorados e não de clientes. Não obstante o interesse em ascender socialmente, é comum encontrar jovens que romantizam esse relacionamento. “Várias delas sonham em viajar, casar e ter filhos. Alguns se apaixonam verdadeiramente”, afirma a estudiosa.
Embora a maioria das entrevistadas estivesse na faixa dos 20 anos, a pesquisadora ouviu mulheres de diversas idades, pertencentes a diferentes classes sociais. De acordo com Adriana, algumas tinham mais 35 anos e curso superior. “Estas, embora não se prostituíssem, disseram preferir namorar turistas estrangeiros”, explica. De maneira geral, prossegue a antropóloga, as mulheres tendem a desvalorizar os homens locais. Tanto é assim, que foi possível à pesquisadora identificar durante a sua investigação uma hierarquia estabelecida pelas mulheres no que se refere à escolha dos parceiros. “Elas preferem se envolver com europeus. Na ausência destes, sugerem como opções, pela ordem, os norte-americanos, latino-americanos e brasileiros, sendo que entre estes os do Sudeste levam vantagem sobre os do Nordeste”, conta.
Isso ocorre, entre outros fatores, porque as mulheres nordestinas consideram os homens locais machistas, pouco românticos e violentos. Aos olhos delas, os turistas são mais carinhosos e generosos e menos preconceituosos. Estes, por sua vez, apreciam as brasileiras por considerarem-nas “quentes” e por causa da cor da pele, normalmente mais escura do que a das mulheres de seus respectivos países. Ao contrário da crença geral, os estrangeiros não são velhos e pobres na sua maioria, como constatou o estudo. “Há uma diversidade grande nesse sentido. Muitos deles são jovens e atraentes e vários são estudantes e profissionais liberais”, aponta Adriana. A coordenadora associada do Pagu diz que os turistas sexuais normalmente querem mulheres jovens, mas não necessariamente crianças.
Exceto os pedófilos convictos, a maior parte não quer envolvimento com menores de idade, pois isso pode acarretar sérios problemas. A estudiosa também não identificou na sua pesquisa casos envolvendo tráfico de mulheres, atividade que pressupõe o uso da violência, fraude ou coação. “As que manifestaram o desejo de migrar disseram que, se a oportunidade surgisse, o fariam voluntariamente”. No universo pesquisado pela antropóloga, todas as garotas de programa disseram conhecer pelo menos um caso bem-sucedido de mulher que foi levada para o exterior por um “namorado”. Isso, evidentemente, ajuda a alimentar o sonho de migração de muitas delas. Além disso, as que “deram certo” normalmente retornam uma ou duas vezes por ano ao Brasil, oportunidade em que exibem sinais exteriores de riqueza.
Ainda como parte da pesquisa, apoiada pela Fundação Guggenheim, Adriana viajou a Milão, na Itália, onde tomou contato com um grupo de brasileiras. Lá, de acordo com a pesquisadora, as mulheres tomam um banho de realidade. Muitas de fato se casam e levam vidas de donas de casa, condição que as italianas não querem mais assumir. Outras, entretanto, acabam abandonadas pelos “namorados” e voltam a lançar mão da prostituição como única alternativa de sobrevivência. As que se casam são “educadas” e “socializadas” pelos maridos. Estes, por sua vez, encontram nessa situação a possibilidade de reiterar um padrão de feminilidade que consideram não encontrar mais entre suas compatriotas.
De acordo com dados obtidos por Adriana junto ao Consulado Brasileiro na região de Milão, entre oito a dez mulheres recorrem semanalmente àquela repartição para solicitar documentos que permitam o casamento com italianos. O movimento, segundo os funcionários da representação diplomática, tem aumentado na mesma medida em que cresce o número de homens que viajam em férias ao Brasil. “O contrário, todavia, não ocorre. Parece que os homens têm menor valor do que as mulheres no mercado matrimonial local”, afirma a coordenadora associada do Pagu.
Embora faça questão de ressaltar que não é a favor do turismo sexual, a antropóloga destaca que as campanhas e as leis contra esse tipo de prática têm surtido algum resultado, principalmente no que se refere ao combate à exploração infantil, mas estão longe de resolver o problema. “Não adianta criticar o turismo sexual e apontar os malefícios que ele pode causar, se não houver uma ação mais ampla que garanta oportunidades para as mulheres. É exatamente isso que elas procuram”, analisa a pesquisadora, que enviará nas próximas semanas os originais do livro para editoras interessadas em publicá-lo.
Websites Além de trabalhar na conclusão do livro sobre turismo sexual, a antropóloga Adriana Piscitelli também tem desenvolvido, com o apoio do CNPq, um estudo sobre as imagens do Brasil veiculadas em sites da web destinados a turistas sexuais. Por meio deles, conforme a pesquisadora, é possível verificar como se dá a mudança geográfica desse tipo de atividade no mundo. “O primeiro ponto de convergência foi o Sudeste Asiático, notadamente a Tailândia e as Filipinas. Depois, esses turistas passaram a procurar o Caribe, promovido inclusive com oferta de pacotes organizados para os interessados”, afirma.
As viagens, assinala Adriana, seguem a lógica mais ampla do turismo, que é oferecer aos consumidores novidades e espaços para aventuras. A antropóloga pretende comparar as imagens veiculadas do Brasil com as de outros países, inclusive da América do Sul. Aqui, a pesquisadora faz um parêntese. Segundo ela, a idéia de que o turismo sexual está vinculado às nações pobres nem sempre é suficiente para explicar a prática. Como exemplos, ela cita Paraguai, Bolívia e Peru, destinos relativamente baratos e onde o turista gastaria pouco com as prostitutas. “Nesses países, o turismo sexual não tem ‘vingado’. Isso demonstra que, para além dos aspectos econômicos, é necessário prestar séria atenção aos aspectos culturais”, analisa. Embora ainda não tenha concluído o estudo, a pesquisadora considera que esses sites estão longe de constituir a principal influência na decisão dos turistas sexuais de virem ao Brasil.