A vida passa nos cafés portenhos
“...En él se gestaron partidos políticos y por ellos se difundieron movimientos populares. Y si de sus mesa muchos se levantaron para entrar en las páginas de la historia, su contexto esencial fue el porteno anônimo, el hombre sin rostro y sin nombre con el que se ha ido haciendo y fijando nuestro país” Miguel Angel Scena
FERNANDO DE TACCA
A vida, os fatos históricos, a política, o tango, o futebol, os amores e amizades, enfim, as emoções e algumas razões passam indubitavelmente pelos cafés na cidade de Buenos Aires. Viver em terras portenhas hoje e em tempos passados parece estar ligado umbilicalmente aos lugares de encontro chamados genericamente de cafés. Podem ser hoje pizzarias, restaurantes, resto bar e outras denominações, mas sempre trazem a memória dos cafés. Quando entro em um café reencontro com uma história do meu passado familiar, uma história recontada inúmeras vezes por meu pai: o desaparecimento de meu bisavô paterno em Buenos Aires.
Em buscas recentes encontrei no Centro de Estudios Migratorios Latinoamericanos a data de entrada de meu bisavô, Luigi Tacca, no porto de Buenos Aires. Chegou no dia 30 de agosto de 1887, no navio Perseu, vindo do porto de Gênova, tinha 23 anos e, como profissão, sapateiro. Primeiras informações e únicas em quase 100 anos. Vindo da região do Piemonte, da pequena cidade de Borgamanero, deixou na Itália a esposa com dois filhos e assim que se estabeleceu com alguma condição financeira, chamou seu primogênito, Pietro Tacca, meu avô, para trabalhar e viver com ele na Argentina. Sua esposa, Francesca, e sua filha de mesmo nome viriam depois.
Pietro veio em 1890, com um tio paterno que ficaria no Brasil, no porto de Santos. Sozinho e com apenas oito anos, sentindo-se desamparado, apavorou-se e desceu ao cais. Como uma passagem cinematográfica, conta a lenda familiar que seu tio, ainda na estação de trem, dentro do vagão em movimento, viu o pequeno na estação, não pôde descer, e somente conseguiu amassar algumas notas para lhe jogar na plataforma através da janela. Chegando em São Paulo, partiu imediatamente para o interior, no noroeste paulista, onde relatou o ocorrido para os familiares, e em dois dias estavam todos os homens percorrendo os bairros do Brás e da Mooca à procura do pequeno. Com a descrição de suas roupas, puderam encontrá-lo vagando por uma das ruas desses bairros de imigrantes. Voltando para o interior, novas cartas relatando o caso para o pai desesperado a esperar seu primogênito em terras portenhas. Como nada era muito fácil, passagens caras, algum tempo decorreu, até que chegou uma informação que mudou a vida do pequeno Pietro: seu pai estava em um bar café onde, depois de ocorrer uma briga, tendo como resultado dois mortos, desapareceu. Uma carta que até hoje não encontrei chegou com a notÍcia. Essas foram as últimas informações que Pietro e toda nossa família tiveram de Luigi.
Pedro (nome brasileiro de meu avô) nunca voltou para a Itália, nunca mais encontrou com seus pais, e com 12 anos conduzia carros de boi em meio a cafezais; ficou rico, comprou fazendas, teve gráfica e cinema, e perdeu tudo em 1929. Eu o conheci, um homem brutalizado pelo trabalho pesado e amável com todos. Casou-se com Angelina Fontana, também italiana e coincidentemente da mesma região, de uma vila vizinha à sua na Itália. Depois de mais de cem anos, poucas informações foram agregadas à história do sapateiro Luigi, e eu acabei nascendo em uma cidade industrial de calçados, Franca, e fiz meu mestrado com os operários sapateiros francanos. Freqüentei muitas sapatarias na cidade com meu pai, Luís Tacca (nome dado em homenagem ao seu avô), que me levava para fazer botinas, mesmo sendo as industrializadas mais baratas. Talvez fosse uma forma de encontrar com seu passado perdido, pois foi alfabetizado em italiano, mantendo contatos com primos de além-mar via cartas, e tinha por perto um mapa da Itália que viajava com seu olhar, como um território imaginário em seus sonhos de um dia encontrar rastros de sua memória, e nunca teve oportunidade de ver sua “terra natal”.
Nas vezes em que entro em um café, e o faço sempre, quase todos os dias, a observação aguça e percebo a vida desenrolar com fortes traços culturais no cotidiano portenho, seja nos amigos que se encontram para jogar truco todos os dias por volta das 13 horas no Café El Federal, seja nas jovens que se encontram para um chá no final da tarde no Café El Pilar, ou ainda uma situação que presenciei algumas vezes quando um pai encontra sua pequena filha, talvez trazida pela mãe, no Café Mi Tio, histórias particulares que não sei, mas que transmitem esse conjunto de emoções dos cafés, no abraço da pequena ao encontro dos braços de seu pai, e quando circula sozinha cambaleando pelo café indo até o balcão para pegar uma “media luna” (croissant). Os leitores vorazes de jornais; o velho que fuma mais do que lê parece encontrar o autor em poucas palavras; a jovem mãe que sai de sua casa e traz seu bebê para o café; tudo concorre para uma vida intensa nesses ambientes.
Foram e ainda são categorizados como estudantis, literários, teatrais, tangueiros e, muitas vezes, no começo do século XX, também eram espaços para sessões de cinema. Em cada esquina existe um café com suas imensas vidraças expositoras de suas ambiências, que praticamente misturam-se com o movimento dos pedestres e dos carros, e não são vidros escuros, mas somente um limite físico para uma convivência visual, muitas vezes angustiante com os olhares mortificantes de jovens pais com suas crianças de colo na pobreza atual da Argentina. Na primavera, os cafés alargam-se com as cadeiras nas praças e calçadas; uma tradição européia instalada há mais de dois séculos.
Poucos dos cafés tradicionais ainda sobrevivem e são hoje pontos de atracão turística, mas não somente: em um final de tarde podemos entrar na tradicional Confeitaria Ideal, na rua Suipacha e encontrarmos um grupo de trinta pessoas, homens e mulheres, aposentados bancários, ativos de um grêmio sindical, comemorando um reencontro em que as memórias tornam vivo o espaço no qual a crosta ocre do teto, em tons variados de dourado, marca o volume de alcatrão que ali se impregnou em tantos anos de existência. Ou ainda senhoras de idade avançada, com seus casacos de pele, reminiscência de uma forte classe média de tempos passados, tomando um simples “cortado” (café com um pouco de leite), ou uma “lágrima” (leite com uma gota de café) no Café Tortoni, na Avenida de Maio. Nos espaços tradicionais, nos mais novos com design moderno, ou nos cafés de bairro, encontramos uma vida corrente necessitando da cafeína e da nicotina, carregada de recordações, reencontros, namoros, amizades, paixões, política e, obviamente, futebol. Uma partida de futebol entre equipes argentinas, a qualquer hora do dia, leva uma multidão para dentro de um café, e alguns, talvez sem dinheiro, ou sem muito tempo, ficam a mirar a peleja do lado de fora, onde novamente o vidro é somente barreira física.
Freqüentar e fotografar os cafés portenhos sempre traz de volta o imaginário familiar, e mesmo não sabendo mais informações sobre o que aconteceu depois com o sapateiro Luigi Tacca, tenho fortes sensações de presenças. A vivência em Buenos Aires permitiu emergir o imaginário de minha história familiar e perceber que a memória coletiva portenha passa pelos cafés como um espaço de múltiplos e simultâneos encontros.
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Fernando de Tacca é fotógrafo, mestre em Multimeios (Unicamp), doutor em Antropologia (USP), professor no Departamento de Multimeios/IA, e editor da Revista Studium (www.studium.iar.unicamp.br). Assumiu a Cátedra de Estudos Brasileiros na Universidade de Buenos Aires, com curso de pós-graduação sobre Antropologia e Imagem no Brasil, pelo Programa Cátedras Unicamp & Universidades Espanholas.