Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 270 - de 18 a 24 de outubro de 2004
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Duas visões sobre a fome


CLAYTON LEVY


O professor Walter Belik: "O que houve foi uma grande concentração de renda" (Fotos: Antoninho Perri)Mais de 50 milhões de pessoas sofrem de desnutrição na América Latina, segundo dados da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) divulgados em 2003. Apesar das profundas transformações ocorridas recentemente nas economias da região, que resultaram num salto da produção e oferta de alimentos, a pobreza, a desnutrição e a insegurança alimentar continuam presentes. No Brasil, os técnicos ainda não conseguiram chegar a um consenso sobre a quantidade exata de famintos. Os números variam de acordo com os critérios e conceitos adotados, indo de dez milhões a 50 milhões de pessoas. Todos concordam, porém, sobre a necessidade de se adotarem políticas públicas mais consistentes, no curto e no médio prazo, traduzindo ações do Estado e não apenas de governos.

É nesse contexto –e aproveitando as comemorações da Semana Mundial da Alimentação – que o seminário “Avaliação de Políticas para a Disponibilidade e Segurança dos Alimentos”, programado para 20 de outubro, a partir das 14 horas, no Auditório “Zeferino Vaz” do Instituto de Economia (IE), buscará aprofundar as discussões sobre o tema. Coordenado pelos professores Antonio Márcio Buainain e Walter Belik, em conjunto com o Fórum Permanente do Agronegócio da Unicamp e com o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Alimentação (Nepa), o evento pretende, ao mesmo tempo, fazer uma radiografia da insegurança alimentar no Brasil e analisar os sucessos e fracassos das políticas de combate à fome.

O professor Antonio Buainaim: "Muitos pobres ganharam casa e continuam sem comer"Durante o evento também será lançado o livro “Políticas de Segurança Alimentar e Nutrição na América Latina”. Organizado por Belik e Patrocinado pela FAO, a obra reúne artigos de vários pesquisadores, que tratam de dez aspectos diretamente ligados ao sucesso de uma nova abordagem para as políticas na região. Os estudos vão desde as matérias ligadas à sustentabilidade da produção rural até questões atinentes aos novos padrões internacionais estabelecidos para a qualidade dos alimentos. O trabalho teve origem nos debates envolvendo mais de 60 especialistas, que discutiram o tema em seminário recentemente organizado pelo IE.

Na introdução que faz ao trabalho, Belik observa que, nos anos 90, 10% da população da América Latina estava em estado de desnutrição, embora o quadro seja bastante heterogêneo, com países como a Argentina exibindo uma proporção inferior a 2,5% e outros países, como o Haiti, com 45%. Baseando-se no conceito de insegurança alimentar, caracterizado pela falta de acesso regular a uma alimentação de qualidade, Belik diz que os números atingem proporções ainda maiores. “Tomando-se o caso do Brasil, observa-se, por exemplo, que o contingente de indivíduos em situação de insegurança alimentar se eleva para 56 milhões de pessoas, atingindo uma proporção próxima a um terço da população”.

“Já não é possível tratar o tema da segurança alimentar sob o prisma estreito da escassez, até porque não seria razoável propor a eliminação da fome sem contar com o apoio da ciência e da tecnologia”, afirma Buainain, que coordena uma equipe de mais de 60 pessoas – entre professores, estudantes e técnicos da Unicamp e de outras universidades – para avaliar os impactos do Programa de Combate à Pobreza Rural (PRPC), na sua versão dois. Trata-se da avaliação de milhares de projetos pontuais de infra-estrutura – água, energia elétrica, moradias, pontes, estradas – em centenas de municípios de quase todos os estados do Nordeste. “É uma pesquisa pioneira num país sem a tradição de avaliar os resultados das ações do Estado”.

Para aprofundar o tema, o Jornal da Unicamp ouviu os dois economistas. Na entrevista que segue, Belik e Buainain antecipam o tom que deverá sustentar os debates programados para o seminário no IE. Fazendo jus ao clima de pluralidade de idéias que caracteriza a universidade, os dois nem sempre defendem os mesmos pontos de vista, principalmente no que diz respeito às políticas públicas de combate à fome. Entretanto, mesmo nas divergências das análises, ambos conseguem expor com clareza o quadro atual, chamando a atenção para a necessidade de ações mais concretas no combate à fome, à desnutrição e à insegurança alimentar.


Jornal da Unicamp – Qual o significado e o alcance da segurança alimentar nos dias de hoje?

Walter Belik—Trata-se de um tema fundamental, principalmente na América Latina e no Terceiro Mundo. Embora tenha sido resolvido o problema da oferta de alimentos, existem mais de 800 milhões de pessoas que passam fome no mundo.

Antonio Márcio Buainain – O significado é muito claro. Estamos no século 21 e segundo relatório da FAO lançado esta semana no Dia Internacional da Alimentação, existem 842 milhões de pessoas subnutridas no mundo. O relatório é pessimista, e afirma que a comunidade internacional está fracassando e perdendo a guerra contra a fome. Que futuro pode ter uma sociedade global na qual perto de 1 bilhão de pessoas vivem em insegurança alimentar? No Brasil o problema é mais de má nutrição do que fome.

JU – Entre 1992 e 2001 a América Latina cresceu a taxas de 2,8% ao ano, o que resultou numa expansão de 1,2% ao ano do PIB per capita. Mesmo assim, os indicadores sociais melhoraram muito pouco. Por quê?

Walter Belik – Muitos economistas acreditam que há uma transmissão direta do crescimento econômico para o crescimento social. Mas o que se percebe é que na América Latina isso não aconteceu. Tivemos reformas pesadas nos anos 90, com a liberalização da economia e a abertura comercial, mas isso não se refletiu no bem estar da população. O que houve foi uma grande concentração de renda. É curioso notar que em boa parte a agricultura puxou esse crescimento econômico porque a abertura comercial refletiu diretamente no aumento das exportações, mas a situação das populações vulneráveis à fome piorou. Isso aconteceu porque não se criaram mecanismos capazes de transferir o aumento da riqueza para as populações mais pobres. Nas áreas rurais, os pequenos produtores pouco se beneficiaram com o crescimento da agricultura. Na verdade, o que houve foi um movimento de crescimento econômico sem nenhum planejamento do ponto de vista social.

Antonio Márcio Buainain – Parte da resposta está na própria pergunta. A evolução desfavorável dos indicadores social deve-se ao fato desse crescimento ter sido muito pequeno. Uma evolução de um ponto percentual na renda per capita é um crescimento ridículo para sociedades que têm uma população crescendo, desequilíbrios sociais enormes, déficits de infra-estrutura, enfim, muito por construir. Na América Latina, o crescimento econômico deveria ser superior a 4,5% e por muitos anos seguidos para impactar positivamente os indicadores sociais. De qualquer maneira, não há qualquer automatismo entre crescimento econômico e distribuição de renda. Nós mesmos temos a experiência de vinte anos de crescimento com concentração de renda. Os frutos do crescimento econômico são apropriados por uma minoria.

JU – Há alguma experiência de sucesso que sirva de modelo no combate à fome na América Latina?

Walter Belik – Esse fracasso ocorrido nos anos 1990 trouxe lições importantes. Uma delas é que não dá para imaginar grandes políticas em nível nacional para resolver o problema da fome. É preciso trabalhar políticas regionais e segmentadas de acordo com as características de cada público. Outra conclusão importante é que as políticas de caráter assistencialista não dão certo. A doação de alimentos, por exemplo, que foi muito utilizada na América Latina como ajuda humanitária, pode ser encarada como algo emergencial mas não pode funcionar como política permanente. Por isso está havendo uma mudança de rumo do assistencialismo para as políticas de geração de renda e a auto-sustentação das populações mais pobres. Há iniciativas desse tipo em vários países. O exemplo mais bem estudado é o do México, que trocou a política de distribuição de cestas básicas e subsídios por uma segmentação de programas específicos que passaram a trabalhar focados em público-alvo, oferecendo apoio mas estabelecendo contrapartidas por parte dos beneficiados. No Brasil, o exemplo mais próximo disso foi o Bolsa Escola, através do qual as famílias passaram a receber um subsídio para tirar seus filhos da rua. Em contrapartida, têm de mantê-los na escola.

Antonio Márcio Buainain – Todos os países da América Latina têm problema. Se olharmos para o Haiti, país minúsculo e sem recursos, poderíamos até encontrar justificativas para a fome. No caso do Brasil, um país com tantos recursos, não há qualquer justificativa, além das más políticas, para estarmos enfrentando tantos problemas de pobreza. Há países que souberam lidar melhor com essa situação. A Costa Rica, por exemplo, é um país pequeno que investiu em educação, adotou há muitas décadas políticas econômicas mais consistentes , e o resultado é um país com perfil social superior aos demais países da região. O Chile também apresenta indicadores sociais melhores porque adotou e persistiu em políticas econômicas consistentes desde os anos 1970.

JU – Na sua avaliação o Bolsa Escola conseguiu atingir seus objetivos?

Walter Belik – Sem dúvida. Com todos os problemas que possam ter ocorrido, é um programa bem-sucedido. Há uma discussão grande entre os economistas entre focalização e universalização. Alguns acham que os problemas sociais devem ser bem focalizados para não haver desperdício de recursos. Outros acham que os programas devem ser universais porque os direitos, e entre eles o direito à alimentação, é universal. O grande mérito das políticas sociais é conseguir mesclar estas duas coisas. O Bolsa Escola consegue isso. Ele é universal na medida em que está disponível para todas as crianças em idade escolar e, ao mesmo tempo, consegue focalizar as mais necessitadas sem discriminá-las socialmente.

Antonio Mário Buainain – A concepção do Bolsa Escola é boa. Sabemos que não há qualquer possibilidade de transformar o país se não mudarmos radicalmente o perfil da educação. É uma tarefa para hoje que dará resultado daqui a vinte anos. Não dá para brincar com isso. Identificou-se que uma das causas da evasão e baixa freqüência escolar era a falta de recursos das famílias mais pobres. Por isso é boa a idéia de condicionar uma bolsa para a família à freqüência da criança na escola. Mas esse programa tem de ser cercado de uma série de outros instrumentos. E a impressão que tenho é que o Bolsa Escola virou um fim em si mesmo, cujo objetivo é elevar o número de bolsas concedidas para mostrar na televisão. Quando a propaganda fica mais importante do que o conteúdo a coisa vai mal. Essa obsessão pela quantidade é um mal dos nossos governantes em geral. A escola precisa ser transformada em instrumento de socialização e inserção social. Tem de deixar de ser uma sala de aula onde professores mal preparados tentam transmitir conhecimentos para estudantes desestimulados. A escola tem de voltar a ser o que foi na minha época de estudante, que só freqüentei escola pública. Um local onde havia serviços sociais, onde as crianças eram vacinadas, participavam dos exercícios esportivos, onde elas se alimentam, fazem planos, sonham e se preparam para um futuro melhor. O Bolsa Escola só ganhará um significado maior na hora em que a escola estiver cumprindo sua função. Hoje há uma total desvinculação entre a bolsa que é dada aos pais para estimular a presença dos filhos na escola e o funcionamento da escola. Tirar as crianças da rua é importante, mas não resolve colocá-las em escolas que não funcionam adequadamente.

JU – E quais seriam as experiências reconhecidamente fracassadas no combate à fome?

Walter Belik – São aquelas que foram voltadas só para o lado da produção e da oferta. A América Latina passou por uma transformação muito grande na década de 1990, caracterizada pelo fato de que boa parte do público necessitado de segurança alimentar passou a concentrar-se nas áreas urbanas. No Brasil esse público representa 74% do total estimado em situação de risco. Por isso as políticas fracassadas são aquelas que focaram situações eminentemente agrícolas visando aumentar a produção e a renda dessas atividades. Não viram que, mesmo a população que trabalha no campo, também tem ligações com a área urbana. O emprego hoje é multifacetado. Quem mora na área rural muitas vezes trabalha na cidade e portanto as políticas de geração de renda podem se dar nas cidades.

Antonio Márcio Buanain – Vou me ater ao Brasil. A distribuição de cestas de alimentos que se fez durante décadas era um paliativo. Não resolvia a deficiência estrutural da população e ao mesmo tempo funcionava como instrumento de dominação política das oligarquias locais. Todos nós sabemos como essas cestas eram trocadas por lealdade política. Isso nós mesmos confirmamos numa pesquisa sobre pobreza rural em vários estados no Nordeste. As famílias experimentam uma sensação de gratidão ao político e ao governo, que não fizeram mais do que a sua obrigação. Além disso, havia o impacto negativo sobre a economia local. A distribuição de cestas de alimentos mata o pequeno comércio local, base de muitas economias. Esse é um exemplo de uma política danosa. A mudança dessa orientação política a partir do segundo mandato do presidente FHC foi um fato muito positivo. Provocou oposição tanto da esquerda, que o acusava de neoliberalismo sem alma, como dos coronéis que poderiam perder poder. Eu até esperaria que essa trajetória houvesse sido aprofundada pelo governo Lula, que sempre fez um discurso de mudar o quadro social. Infelizmente, pelo menos até o momento, o que se vê é um retrocesso. Talvez seja a velha tática do um passo atrás e dois adiante, ou dois atrás e um adiante. Mas o momento é de retrocesso tanto nas concepções como na modalidade de implementação. Quem sabe estão preparando o passo adiante.

JU – As políticas de segurança alimentar adotadas pelo atual governo, como o Fome Zero, estão no caminho certo ou precisam de ajustes?

Walter Belik – O Fome Zero tentou incorporar essas novidades surgidas na década de 1990. Ele tem três eixos principais. O eixo da universalização garantindo renda e alimentos para todos; as políticas específicas, incluindo ações emergenciais focalizadas; e a ação regionalizada. Mesmo assim são necessários ajustes. O primeiro ano do programa foi de estruturação. Houve uma mudança radical no país porque o Brasil nunca havia tido uma política de segurança alimentar. O fato de se conseguir desenhar um ministério para trabalhar políticas transversais com outros órgãos de governo foi um grande avanço. Além disso, criou-se o CONSEA – Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional e realizou-se uma grande conferência, com mais de dois mil representantes para discutir e planejar a política de segurança alimentar. No segundo ano houve a necessidade de correr mais rápido com o programa. Algumas coisas que estavam planejadas inicialmente foram deixadas para segundo plano e se colocou o Bolsa Família como um grande guarda-chuva das ações. Hoje já temos cinco milhões de famílias atendidas pelo Bolsa Família. A meta é atender 10,7 milhões de famílias. Acredito que a partir do terceiro ano o grande desafio será fazer com que o Bolsa Família ande automaticamente, cadastrando as pessoas, checando os cadastros, e desenvolvendo outras ações importantes, como o programa de aquisição de alimentos, através do qual o governo compra a produção dos pequenos produtores da reforma agrária e direciona para outros programas, como a merenda escolar e cestas básicas, além de dinamizar a instalação de restaurantes populares e bancos de alimentos. O valor da merenda escolar aumentou em torno de 30% mas precisaria aumentar muito mais. Hoje esse valor é da ordem de 18 centavos diários por criança. Acredito que agora, depois de melhorar os instrumentos de controle, os programas têm tudo para deslanchar.

Antonio Márcio Buainain – Não conheço os resultados dessas políticas. Infelizmente o atual governo está cometendo um erro ao transformar tudo em propaganda. Um cidadão que está de fora não consegue saber o que de fato é resultado e o que não passa de marketing. Até o momento não vi nenhum estudo sério de avaliação dos resultados dessas políticas. Pessoalmente, nunca consegui entender o Fome Zero como programa de política pública. Eu li e gosto de um documento preparado sob a coordenação do professor José Graziano, anterior à eleição do presidente Lula, que tinha esse título e era uma análise da situação nutricional do País. É um trabalho sério. Mas não é um programa de política pública. Qualquer política deve ter objetivos bem definidos, público-alvo, estratégia de ação, instrumentos de atuação, regras, manual de operação etc. Nunca vi isso no Fome Zero. Talvez pela ambição: era tão grande que acabava não definindo bem os objetivos, foco, instrumentos e assim por diante. Num determinado momento tive a sensação de que tudo que esse governo viesse a fazer era parte do Fome Zero. Mas ações de um programa voltado para a segurança alimentar propriamente dita, além daquela no Piauí, que tinha um caráter de piloto, não percebi nenhum desdobramento posterior. Certamente é desinformação minha, que não venho estudando o tema nos últimos tempos.

JU – Até que ponto esses instrumentos de controle estão funcionando corretamente? As recentes críticas envolvendo o ministro Patrus Ananias interferem negativamente?

Walter Belik – Acho que interfere bastante. O que aconteceu é que ao final do governo FHC decidiu-se fazer o cadastro único das famílias. Esse cadastro foi muito mal feito porque não havia formas de checagem. Além disso, o formulário para o cadastro é semelhante ao usado pelo Imposto de Renda. Pessoas mais pobres nem sempre conseguem entender os dados solicitados. Perguntava-se, por exemplo, qual é o CNPJ do empregador. O que o ministro Patrus está vivendo hoje é conseqüência dos problemas do passado. O governo Lula também tem culpa porque, ao desejar implementar o programa com rapidez, não conseguiu evitar falhas no controle dos cadastros. Por isso essas críticas são muito bem-vindas.

Antonio Márcio Buainain – A informação de que as crianças não estavam indo à escola é muito grave. É a velha visão de tratar o pobre como um cidadão de segunda e não cobrar nada dele. Essa postura paternalista precisa ser rompida e vinha sendo rompida no governo anterior. O que se esperava era um rompimento mais radical de um governo que sempre fez um discurso de defesa de dignidade dos pobres. É um pouco surpreendente e contraditório que esse governo esteja dando um recuo tão grande numa área que era fácil acertar. A atual gestão encontrou um cadastro unificado pronto para ser implementado. Mas entendeu que não servia: era um cadastro tucano, neoliberal, de direita. É evidente que esse cadastro tinha falhas, mas era um bom começo. O que se fez foi jogar fora o cadastro neoliberal e fazer um novo, de esquerda, puro, ou coisas deste tipo. Infelizmente não deu bons resultados e parece que voltaram a trabalhar com o cadastro antigo. O ideal seria que a atual gestão tratasse esse programa como política de Estado, e não como política de governo que pelas regras democráticas é transitório.

JU – O presidente Lula apresentou em setembro, na reunião da Ação Global contra a Fome e a Pobreza, em Nova York, propostas para o financiamento da luta contra a fome. Entre elas, algumas polêmicas, como a taxação de armas pesadas. Como o senhor avalia essa proposta?

Walter Belik – A proposta é boa, mas de difícil execução. Sabe-se quem são os grandes fabricantes de armas. São empresas legais. O problema é que não há uma autoridade mundial capaz de exercer essa taxação. Isso só funcionaria se houvesse de fato a participação de todos os países assinando um acordo e estabelecendo um xerife mundial, como por exemplo o FMI, que pudesse ter a autoridade para exercer essa função de taxar. Mesmo assim seria difícil. De toda forma, a iniciativa é válida pois coloca o tema na mesa de debate e provoca a necessidade de encontrarmos uma solução.

Antonio Márcio Buainain – Acho isso irrealista. O mundo não trata impostos como o Brasil trata. Além disso, os gastos com armas não são revelados publicamente. Haveria muita dificuldade para operacionalizar a proposta. Também acho esquisito combater a fome com o dinheiro da venda de armas porque para obter mais recursos seria necessário vender mais armas. É estranho associar o combate à fome a mecanismos de destruição. Eu tenho a impressão que o objetivo é chamar a atenção do mundo para a situação absurda de gastar bilhões de dólares para matar gente (essa estória que arma é para defesa é balela) enquanto milhões de pessoas têm problemas nutricionais.

JU – As políticas de redução da pobreza rural que vêm sendo implementadas no país incorporam a preocupação com a segurança alimentar?

Walter Belik – Acredito que sim. Essa é a nova dimensão. Os programas que deram errado na América Latina não estavam enxergando essa dimensão. Eram políticas produtivistas. Mas no caso do Brasil, por exemplo, o problema não é a produção de alimentos. Precisamos de políticas que permitam às famílias rurais se fixarem na terra com qualidade de vida, garantir educação, saúde e um equilíbrio campo-cidade. São políticas que muitas vezes não se pode medir pelo resultado comercial da produção. Com o Pronaf (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar), por exemplo, garantiu-se que uma família que produza para sua auto-suficiência conte com financiamento. Isso seria impensável no passado.

Antonio Márcio Buainain – Não incorporam. A maior parte dessas políticas estão focadas em dotar as comunidades pobres de uma infra-estrutura básica da qual eles não dispõem. Uma casa, uma escola, uma via de acesso, uma cisterna, uma barragem. A preocupação básica é essa. Há um ligeiro impacto porque, por exemplo, quando se leva a água às populações do semi-árido nordestino é possível melhorar as condições alimentares. Mas há muitos pobres que ganharam casa e água e continuam sem alimentos. Não há um foco explícito em reduzir a insegurança alimentar da população.

JU – Qual o tamanho exato do público alvo das políticas de segurança alimentar no Brasil?

Walter Belik – Isso é importante porque há vários conceitos que se confundem. Temos os conceitos de fome, subnutrição, desnutrição e segurança alimentar. O conceito de segurança alimentar é mais amplo. Se formos investigar o número de pessoas famintas no Brasil, a chamada fome endêmica, encontraremos casos muito localizados em algumas regiões do Nordeste. Fome endêmica, como existe na África, não existe no Brasil. Mas existem no Brasil casos de desnutrição. E há também casos de pessoas obesas, porém mal nutridas. Já a segurança alimentar significa a possibilidade de as pessoas terem acesso ao alimento. Por isso, a situação de insegurança alimentar é subjetiva. Uma família pode ter renda hoje para adquirir determinados alimentos, mas sente-se insegura porque não sabe se haverá emprego no futuro. Ou seja, ter a possibilidade de alimentar-se hoje sem a garantia de que poderá alimentar-se amanhã. Nós fizemos alguns cálculos e chegamos à conclusão de que há cerca de 56 milhões de pessoas em situação de insegurança alimentar no Brasil. Esse número acabou subsidiando o projeto Fome Zero. Já a Fundação Getúlio Vargas estima em 53 milhões, e o IPEA estima em 25 milhões. Os números variam segundo os critérios. Aferir a renda é uma forma de calcular, mas às vezes há rendas ocultas que não são computadas. Um cidadão, por exemplo, que cria galinhas para sua auto-suficiência tem uma renda que não é monetária. Nós trabalhamos com dados da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílio), do IBGE, que tenta aferir essas características superando as dificuldades.

Antonio Márcio Buainain – Isso é extremamente difícil. O que nós temos é o número de pessoas pobres. Se escolhermos um critério que defina a pobreza como uma situação abaixo de uma determinada renda teremos um certo número de pessoas nessas condições. Se aumentarmos ou reduzirmos essa renda, teremos outros números. O último estudo nutricional divulgado no Brasil foi feito pelo Endef (Estudo Nacional da Despesa Familiar) na década de 1970. De lá para cá nunca mais se fez nenhum estudo nutricional abrangente. O que se sabe é que ser pobre não significa necessariamente passar fome. Há pessoas com renda elevada e mal alimentadas. Por isso ninguém sabe qual é esse número.

JU – Ao tomar posse o atual governo disse que seria possível reverter o quadro de fome no Brasil até o final do mandato. O senhor acha isso possível?

Walter Belik – Acho que sim. A questão de ter uma política de segurança alimentar fica estabelecida. O Bolsa Família tem o objetivo de garantir de fato transferência de renda para dez milhões de famílias. E não está longe disso. O grau de efetividade do Bolsa Família será dado por todas estas questões políticas e técnicas que foram colocadas. Transferir renda é possível fazer. Mas garantir que a criança esteja na escola será uma batalha que teremos de vencer. Essas condicionalidades terão de ser garantidas pela sociedade através de comitês e órgãos fiscalizadores. Ao mesmo tempo, estamos estruturando uma política de estoques reguladores, um sistema nacional de bancos de alimentos. Enfim, uma rede de proteção social que garanta a segurança alimentar dessas famílias. Eu acredito que há dinheiro, instrumentos e massa crítica para atingir essa meta até o final do governo Lula.

Antonio Márcio Buainain – Acho que não será possível porque não sabemos ao certo de que universo estamos falando e porque o programa está se dispersando. Os números com os quais se trabalhou na campanha, apontando para 43 milhões de pessoas em situação de fome são completamente irrealistas. Aí se cometeu um primeiro erro. Não houve a preocupação de se fazer um levantamento sério sobre a população com problemas nutricionais. O Brasil tem pessoas com problema de segurança alimentar. Como começaríamos uma política dessas? Se temos 40 milhões de necessitados não podemos atender a todos ao mesmo tempo. Teríamos de adotar critérios para orientar as ações e definir as populações mais necessitadas, os grupos mais vulneráveis. Isso vinha sendo feito na gestão anterior com programas direcionados a grupos mais vulneráveis, por exemplo, as parturientes. Aí se identifica uma vulnerabilidade porque a insegurança alimentar tem efeitos mais nocivos. Por isso acho que faltou foco ao Fome Zero. Confundiu-se muito vários programas com a questão da insegurança alimentar. No fundo tudo que gera renda e emprego tem efeito sobre a segurança alimentar,e faltou definir linhas de ação específicas e consistentes para tratar a questão da fome e má nutrição.

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