ARTIGO
Era uma vez a América
ERIC MITCHELL SABINSON
Meus amigos americanos me avisaram: “Não se irrite com as novas medidas de segurança! Fique na sua!” Assim, durante o vôo que me levou para os Estados Unidos, em janeiro de 2003, diante das perguntas sobre a bagagem e o exame para detecção de explosivos plásticos, tentei manter um ar de humor irônico, como se os arranjos de meus patrícios não tivessem nada a ver comigo.
Recebi uma segunda advertência na noite de minha chegada, enquanto jantávamos. Décadas de sala de aula e perda de audição aumentaram o volume da minha voz. “Fale baixo”, sussurraram enquanto eu fazia algum comentário sobre a política do governo Bush. Os vizinhos de mesa no restaurante poderiam se ofender. Afinal, não moro nos States há 23 anos. Talvez eu não mais entenda as sensibilidades americanas. Com certeza, não compartilho do chauvinismo que tomou conta do país desde 11 de setembro de 2001.
Como se mede o grau de tensão em algum ambiente desconhecido? Quais são os sinais de que um grupo ou uma cultura está doente? Eu tinha visitado familiares em julho. A casa de veraneio de meus pais ficava na encosta de uma montanha em Massachusetts. O cenário pastoril tinha um efeito tranqüilizador. O medo é, no fundo, um fenômeno urbano. Nos Estados Unidos, onde há menos crime de rua do que no Brasil, o processo é insidioso. Em janeiro, enquanto hóspede no apartamento de meus pais na Rua 56, a poucos quarteirões do prédio das Nações Unidas, ouvi no rádio uma discussão acerca de quantas pessoas morreriam caso houvesse um ataque de antraz no centro de Manhattan. Ao ligar o rádio, eu quis saber apenas a previsão do tempo. Naquela manhã o trabalho não rendia. Tudo parecia muito mais difícil, como se eu estivesse me arrastando por um lamaçal de sentimentos desagradáveis.
Em visita a minha velha universidade, em Buffalo, no Estado de Nova York, tomei café no mesmo refeitório onde almoçava e jantava em 1968, enquanto calouro. Naquela época, não havia grandes televisores suspensos no teto exibindo o noticiário interminável para facilitar a mastigação. Foram as legendas que me impressionaram. O locutor poderia estar nos informando sobre o mercado de ações da bolsa de valores em Tóquio ou Hong Kong, que tinham acabado de fechar, ou poderia estar descrevendo uma nova técnica cirúrgica para artérias obstruídas. Contudo, por baixo do som, lia-se, por exemplo, a notícia de que dois paquistaneses haviam sido presos atravessando a fronteira com o Canadá. Procurando nas páginas do jornal local no dia seguinte, não consegui achar a reportagem. Ora, Buffalo sempre foi um lugar de passagem ilícita para os Estados Unidos. Enquanto aluno na graduação, eu ia entrevistar jovens portugueses na casa de detenção. Em fuga da guerra em Angola e Moçambique, ficaram presos a caminho de Newark ou de New Bedford, onde tinham parentes. E estes paquistaneses? Representavam a imigração típica de indivíduos de países pobres para países ricos? Ou será que eram membros do grupo local da Al Qaeda?
“No total,” declarou o presidente dos Estados Unidos, em 28 de janeiro de 2003, durante seu discurso anual sobre o Estado da União, “mais de 3.000 supostos terroristas foram presos em muitos países. Outros tantos encontraram outro destino”. Fez uma pequena pausa antes de continuar: “Digamos assim: não são mais um problema para os Estados Unidos e nossos amigos e aliados”. Houve aplausos. O presidente se jactava, com um sorriso de complacência de lascar, como se tivesse acabado de soprar a fumaça da boca de um revólver calibre 45. “Um por um”, prosseguiu ele, “os terroristas estão aprendendo o significado da justiça americana”.
“Justiça americana”? Lembrei-me de que durante a gestão de George W. Bush enquanto governador do Texas, o estado produziu a maior taxa de execuções da pena capital. Entendi que as medidas de prevenção contra ataques terroristas estavam sendo transformadas na cultura farrista do linchamento, justiça feita no escuro, com as próprias mãos. Uma semana depois do discurso, no dia 5 de fevereiro, segundo o jornal The New York Times, saiu a ordem que enviou para o Iraque a maior parte do 320º Batalhão da Polícia do Exército. A 372ª Companhia da Polícia do Exército, baseada em Cresaptown, Maryland, chegou ao Iraque em maio. Começou a servir na prisão de Abu Ghraib em outubro. Seria ingênuo concluir que o estado mental dos soldados americanos que degradaram e torturaram prisioneiros iraquianos representa apenas um fenômeno localizado. Estes soldados estavam simplesmente passando adiante a lição do governo sobre o significado de “justiça americana”.
Houve relatos de violência policial durante a manifestação de 15 de fevereiro em Nova York, mas nada vi. A Secretaria de Segurança Pública da cidade tinha determinado que o evento poderia ser realizado apenas nos limites da Primeira Avenida. Fiquei no meio de uma multidão de quase meio milhão de pessoas, disposta numa faixa comprida e estreita de dezenas de quarteirões: queríamos mostrar que a invasão do Iraque seria um erro. Fui embora cedo. Eu iria voltar ao Brasil naquela noite, e precisava fazer as malas.
Os policiais na esquina da Rua 56 com a Primeira Avenida não me deixaram descer a rua do prédio. Queriam apenas me apoquentar. Lembrei dos conselhos de meus amigos. “Não questione! Acate tudo!” Dei um sorriso meio brejeiro e meio bobo para os policiais. Voltei as costas e desci calmamente a Primeira Avenida, até a Rua 55, onde virei a esquina.