Um zoom na história do
café (e de outras culturas)
LUIZ SUGIMOTO
Para fazer um belo passeio e conhecer a fundo as antigas fazendas de café do Estado de São Paulo, recomenda-se a leitura de Arquitetura do Café, livro rico em informações e imagens de época, resultado de dez anos de andanças e pesquisas do professor André Munhoz de Argollo Ferrão. O autor, que com essa obra acaba de ganhar um prêmio Jabuti na categoria “arquitetura e urbanismo”, tem ainda o mérito de inaugurar a metodologia que inspirou uma nova linha de pesquisa na pós-graduação, ligada a patrimônio e ordenação do território, da Faculdade de Engenharia Civil, Arquitetura e Urbanismo (FEC) da Unicamp. “O resultado do trabalho é gratificante, pois colegas professores vêm adotando o livro para alunos de áreas diversas como arquitetura, engenharias, economia, história e turismo. O método de abordagem transdisciplinar me permitiu dissecar o processo produtivo do café”, afirma.
André Argollo aborda um período de 100 anos do ciclo do café em território paulista (1850 a 1950), fazendo antes uma revisão histórica, desde o primeiro pé que saiu da Etiópia, passou pela Arábia e chegou à Europa. “Quando o café caiu no gosto dos europeus, países como França, Inglaterra e Holanda perceberam o potencial de comercialização e incentivaram seu plantio nas colônias. Trazido para a América Central, o café entrou no Brasil pelas Guianas e de Belém, em 1727, levou quase o século inteiro para chegar ao Rio de Janeiro. Alcançando o Vale do Paraíba no início do século 19, a produção começou a ganhar corpo”, conta.
O professor lembra que o ciclo do café modificou radicalmente a estrutura social e econômica do Brasil, conduzindo o país a um rápido e profundo processo de urbanização e industrialização que praticamente moldou o perfil da nossa sociedade contemporânea. “Logicamente, houve reflexos no desenho na estrutura física das regiões de cultivo, tendo sido o Estado de São Paulo cenário das maiores transformações. De capitania da Colônia desprovida de riquezas e poder político que se concentravam em Pernambuco, Bahia, Rio de Janeiro e Minas Gerais , tornou-se o Estado mais desenvolvido do país”, explica.
Argollo detecta quatro tipologias arquitetônicas. Até a metade do século 19, prevaleceu a típica fazenda de café do Vale do Paraíba, região que os geólogos chamam de “mar de morros”. “Encontramos ali uma fazenda autárquica, sem relação com o meio externo porque produzia todo o necessário para sua subsistência”, ilustra. Na região de Campinas o pesquisador notou uma “tipologia de transição”, que preservava elementos arquitetônicos da fazenda típica, mas já incorporando modernidades que serviriam de modelo para a terceira tipologia, a fazenda com ares de empresa agroindustrial que se instalou no planalto de terras roxas da região de Ribeirão Preto.
Sob a lente Esta evolução arquitetônica, segundo o professor, foi quebrada com a grande depressão de 1929 e a Revolução de 30. “Quando a produção de café foi retomada, a partir da segunda metade da década de 30, as culturas passaram a ocupar o Oeste Novo Paulista, em direção ao norte do Paraná, fazendo nascer cidades como Marília. Surgiu então uma quarta arquitetura, não mais da grande fazenda, mas do sítio de café, diante da nova lógica do processo produtivo”, informa.
Desenhada a paisagem em escala regional, a fase seguinte da pesquisa envolveu o “núcleo industrial da fazenda”. Se a metodologia de Argollo tivesse uma câmera fotográfica como ferramenta, seria como acionar o zoom e focar a lente na casa-grande, no terreiro e na tulha, analisando a evolução da paisagem no interior da fazenda. “No Vale do Paraíba, a casa-grande era suntuosa, para uma elite cafeeira monarquista; havia a senzala para os escravos e as máquinas eram movidas a água ou força animal. Em Ribeirão Preto, a casa-grande era espaçosa mas simples, pois o cafeicultor morava nas áreas urbanas; ao invés da senzala, a colônia para o imigrante europeu, enquanto a eletricidade já movia o maquinário”, compara.
Com mais um zoom, o professor focou ainda uma quarta escala, analisando a arquitetura da própria planta de café (rubiácea). “O desenho do pé de café de hoje é bem diferente daquele descoberto na Etiópia há 500 anos, pois a árvore foi sendo geneticamente selecionada pelo homem para atender à demanda de produção. Pode-se compreender a arquitetura da fazenda sem qualquer edificação, apenas pelo desenho do cafezal”, assegura.
Entre o Vale do Paraíba e o Oeste Paulista, Argollo elege Campinas como região de transição. “Temos ainda várias fazendas históricas, que em rápida transformação tecnológica passaram do núcleo industrial movido pela roda d’água para a eletricidade. É em Campinas que surge, por volta de 1870, uma indústria de máquinas de beneficiamento de café. Nos distritos de Sousas e Joaquim Egidio, estudei uma sesmaria que gerou várias fazendas de café, chegando, através de zoons sucessivos, à originária Fazenda Sertão, onde reuni documentos, fotos antigas e depoimentos sobre sua arquitetura”, relembra.
Agronômico O autor dá destaque especial ao Instituto Agronômico de Campinas (IAC), criado por D. Pedro II em 1887, justamente para subsidiar a evolução do processo tecnológico do café. “Com o crescimento da demanda no mercado internacional, a evolução da cafeicultura não podia continuar dependendo apenas das experiências práticas dos lavradores, obtidas na lide do campo”, escreve. Foi o IAC que viabilizou a expansão da cafeicultura para o Oeste e a implantação de outras culturas nas “zonas velhas”, transformando São Paulo num Estado policultor que ofereceria cana, algodão, cereais, trigo, soja, laranja, banana, uva, figo.
André Argollo ressalta que o IAC está na origem de suas pesquisas, há dez anos, quando buscava o tema para o doutorado na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP. “Na ocasião, havia vinte fazendas experimentais pertencentes ao Agronômico e quis saber se elas possuem uma arquitetura típica. Visitei todas, rodando mais de cinco mil quilômetros, e encontrei um material interessante, mas pouco homogêneo para um doutorado. A verdade é que a arquitetura rural, com este enfoque ampliado, nunca chamou a atenção dos profissionais da arquitetura, engenharia ou da academia. Acredito, todavia, que a partir deste método para o estudo da arquitetura do café, esse contexto possa estar se modificando”.
Método é aplicado à uva, vinho e milho
Embora o café tenha sido o mote de seu livro, o professor André Argollo afirma que o método de pesquisa acabou gerando uma nova linha na pós-graduação da FEC, envolvendo a ordenação do território a partir do patrimônio cultural local. Para isso, ele teve de se abrigar no Departamento de Recursos Hídricos e Energéticos, onde foi possível trocar a orientação mais tecnicista por um enfoque interdisciplinar. “Esta área de concentração é interessante porque se trabalha com arquitetura, engenharia, planejamento regional, empreendimentos de turismo e lazer, indústria, enfim, com o meio ambiente”, observa.
Segundo o professor, trata-se de planejar e desenhar paisagens culturais e naturais a partir do conhecimento dos processos, estruturas e funções da natureza e do homem ao longo do tempo. Consideram-se as ações, ferramentas, símbolos e conflitos no âmbito da bacia hidrográfica, projetando-se cenários que valorizam os aspectos naturais e culturais do território, bem como o seu patrimônio.
Argollo já vem orientando mestrados, como o de uma aluna que pesquisa a produção de uvas e de vinho artesanal em Jundiaí. “Estamos documentando o processo nos últimos vinte anos, o que gerou uma arquitetura típica do sítio de uva. Para promover o desenvolvimento regional, é preciso entender os valores culturais locais”, salienta.
Outro estudo de mestrado refere-se à produção de milho na cidade de Serro, no Vale do Jequitinhonha. “Lá temos uma paisagem rica, onde sobressaem os moinhos de roda d’água. A idéia inicial era estudar como cada um dos processos de produção artesanal que lá co-existem e conformam a paisagem, como de queijo minas, marmelada, cachaça e fubá de milho. Mas percebemos que o milho, por si, com características de produção do século 19, já tomaria o tempo do mestrado”, conforma-se.
Argollo observa que um estudo como estes não embutem necessariamente a intenção de “melhorar” os meios de produção. “O que interessa é preservar os processos que trazem um valor cultural intrínseco, que geram um valor arquitetônico importante e acaba atraindo empreendimentos sustentáveis como o turismo rural”, comenta.
|